Algo naquele lugar escuro, no Deserto de Chihuahua cheirava bem. Helena gostava do aroma. Dario a servia de um caldo de legumes, batido e leve. Guiou as mãos dela até a borda da tigela e da colher, mas ela não tinha firmeza nas mãos, tremia muito, ainda sem forças.
— Me permita ajudá-la, senhora. - Dario tomava a frente, alimentando-a, colher por colher. Ela se fartou com pouco, o estômago cheio. - Amanhã, vamos partir e levar você até a fronteira. - Ele anunciou, precisava resolver aquela militar antes que ela identificasse o caminho. - Não se preocupe, você estará em casa, com sua criança, antes do anoitecer. — Não tenho uma criança, amigo. - Ela respondeu, curtamente. — Mas tem uma cicatriz no ventre. - Ele seguiu, aplicando o gel sobre a queimadura e o colírio nos bonitos olhos daquela mulher. — Oh! Isso. - Ela piscou os olhos, já não ardiam mais e nem sentia tanta dor. O ferimento no braço era o mais incômodo. Dario limpou o ferimento, cobrindo-o com gaze. — Não precisa falar, se isso a incomoda. Eu estava puxando conversa, Helena. - Ele disse, tranquilo. — Obrigada por entender. - Ela sorriu, havia um algo amargo naquele arco no rosto da militar. — Disponha. - Ele respondeu. - Quer tomar um banho? Deve ser sentir melhor agora. - Ele ofereceu. — Não, amigo. Se estarei na base amanhã, um dia a mais ou a menos de pele grudenta não fará diferença. - Ela respondeu, voltando o rosto para baixo. Sentiu a mão gentil dele firmar seu rosto e erguê-lo. — Não é bom olhar para baixo assim com essas queimaduras. Certifique-se de procurar um médico assim que entrar na sua base. - Ele afirmou. - Vou tentar levar você o mais perto possível de sua base. — É o suficiente. Obrigada. - Ela agradeceu. - Posso me deitar? Estou exausta. - Pediu educadamente. A voz dela era algo que o fazia sentir uma coisa diferente. Ele a pegou no colo e a levou para a cama, acomodando a mulher ferida e a cobrindo. Na parede, do quarto escuro, um borrão mais claro, em que sombras e manchas se moviam, era impossível discernir. Helena dormiu, despreocupada. Ela acordou em um furgão, vestida com suas roupas limpas, em movimento, não enxergava nada. — Bom dia, princesa dorminhoca. - A voz de Dario a recebia. A ansiedade daquele despertar dissipava no ar. — Bom dia, amigo do deserto. - Ela respondeu. — A cabeça ainda dói? - Ele disse, a fala interrompida e fofa, mastigava algo. Pão, talvez. — O que está comendo? - Ela perguntou, aquilo cheirava bem. — Sanduíche. Quer um pedaço? - Ele perguntou. — Quero. - Ela tateou o ar, no sentido da voz, recebia dele o sanduíche, já mordido, mas cheirava bem e tinha bom sabor. Pão, ovos, bacon, queijo. Ela se fartava. — Está nem vendo o que está comendo? - Ele se divertiu, brincando com ela. — Veja o lado bom: Se você for o maior bandido de todo Oeste, eu não saberia quem é. - Ela devolveu a brincadeira, lhe apontando o dedo, como uma arminha. "Minha Helena também fazia isso." Ele se ria. Ela lhe devolvia o sanduíche depois de algumas mordidas. — Sem apetite, Tenente? - Dario lhe perguntou, recebendo a comida. — Acho que não me recuperei do choque com o deserto. - Ela sentia o cheiro do café, quente. - Café? — O melhor da fronteira! Pare a mão e lhe entrego a garrafa. - Ela manteve o punho firme. Tomou um gole do café forte e amargo. — Açúcar. Maias, incas e astecas desconhecem açúcar. - Ela fazia uma careta com o amargo. - Putz, eu daria um braço por um cigarro. — Está tendo. - Ele disse. - Vai? — Aceito. - Ela respondeu. Recebeu o maço e o isqueiro, acendeu um e tragou. - Deus! Isso é sensacional. Será que já sou dada como "perdida em ação"? — Vai saber. E se for? - Dario perguntou, fingindo inocência. — Nesse caso, há uma recompensa. - Ela respondeu. - A que faz jus, inclusive, amigo do deserto. — Dinheiro nunca é ruim. - Ele respondeu. - Ainda vai tomar o café? — Não. Meu paladar prefere óleo de motor. - Ela lhe mostrava a língua. Muito trejeitos dela lhe lembravam sua Helena. Eram muitas coincidências, mas, naquela situação, informação costumava ser controlada. Não era raro receberem recompensas por perdidos ou mortos em ação na fronteira, especialmente, depois do fechamento do cerco na fronteira com o Texas. — Você é incrível, Tenente. - Ele disse. - Vou deixar meu número marcado. Quando melhorar, podemos tomar uma cerveja juntos. Se quiser, claro. - Ele a convidava. — Quem sabe? - Ela sorriu, fechou os olhos e recostou a cabeça no banco mais uma vez. Adormecia, com o balanço do carro. Ele conduzia. Chegava ao posto da imigração, descarado. Ela dormia, pesadamente. Dario olhou para o lado, apresentava as placas de identificação dela. Era escoltado até a base da imigração. Helena acordou nos braços da equipe médica. — Tenente Brown. Sou eu, o Capitão Médico Stuart. A senhora foi trazida do México por um courier. Vamos examiná-la. - O homem a carregava. Dario se identificou, nome falso: Carlos Martinez. Deixou seu número e recebeu a recompensa. Um "Perdido em Ação" pagava tão bem quanto um grupo de cinco pessoas de ilegais e dava muito menos trabalho. Ele partiu, deixando as coisas dela, inclusive armas e munição. Helena, em pânico, era revirada pela equipe médica. Exceto pelos antibióticos, nada mais foi feito. O ferimento cicatrizava bem e havia sido bem cuidado. Dias se passaram até que ela voltasse ao seu posto. Ainda se lembrava da gentileza do Amigo do Deserto, misterioso, que, agora, tinha um nome e um telefone. No escritório, foi recebida como heróina. Graças à sua ação, ninguém se feriu gravemente. — Tenente "Hellish Joker" Brown! - O Major da unidade a recebia, de braços abertos. - Seja bem vinda. Você me fez ganhar uma bolada! Apostei que voltava à ativa. — Comandante Renard! - Ela o cumprimentava, em um aperto de mãos efusivo. - Agradeço a consideração da equipe de campo. - Ela gargalhou debochada. Seu sargento a olhava, pasmo. — Soube que ficou uns dias para conseguir acertar o café na xícara. - Ele animava. O lugar tinha uma faixa de boas vindas e comes-e-bebes de recepção. Ela se apresentava, digna, em fardamento formal, bem alinhada, com o cabelo em um coque justo e impecável, como a suave maquiagem, que lhe escondia as pesadas queimaduras no rosto.Um dia no trabalho e o relatório da ação indicava falha na ação. Em seu escritório recebia o comandante, com o braço que repousava, fora da tipóia, sobre a mesa.— Como está, Helena? - Renard perguntou, fechando a porta atrás de si. — Ah, Peter! Cara! Tive muita sorte. - Ela suspirou. - Fomos emboscados. Ou errei feio nos cálculos do planejamento ou vazou informação. De qualquer forma, a sindicância vai encontrar o problema e me cortar ou achar o boca aberta. Fiz o que pude para livrar a equipe. No time, só eu não tenho família. Sabe como é difícil dar notícia de "Morto em Ação" para quem sobrevive. — Helena, mesmo assim, deveria ser mais cautelosa com esses imprevistos. - Peter a repreendia, suave e amistosamente.— Vou tentar na próxima, Peter. - Ela respondeu, massageando os olhos sob as pálpebras. — Complicadas essas queimaduras nos olhos. Coçam um inferno. - Ele puxava conversa. — Começou aqui. No deserto, esse cara que me resgatou, tinha um colírio que foi excelente. - Ela r
Peter a fez companhia. Stuart foi chamado e chegou o quanto antes, examinou Helena. Parecia bem. — Tenente Brown, a senhora está esgotada e passou por eventos importantes recentemente. - Ele informou, friamente. - Minha dificuldade está em traçar o claro limite entre Burnout e TPT. - Ele disse, direto. — Impossível, Capitão. - Peter interveio. - Ela estava bem ontem. — Ontem? Eu apaguei vinte e quatro horas? - Helena perguntou, impressionada. — Aí é que estamos. - Stuart pontuava. - Você já tinha passado mal assim antes, quando seu marido morreu e você, por pouco, não foi a terceira vítima daquele caminhão. O que a fez saber que ia desmaiar? - O médico investigava. — Senti um desequilíbrio, minha visão turvou de uma vez, como se eu estivesse, não sei, flutuando no ar. - Ela respondeu. — Você precisa tirar algum tempo para si. - Stuart recomendou. - Encontre algum apoio, talvez o comandante. Ao que me parece, são amigos chegados. - O médico se virou para Peter. - Certifique-s
Helena e Dario passaram a tarde conversando sobre a vida no Deserto. Ele dizia ser Geólogo. Estudava áreas como aquela, desérticas, o que fazia sentido para ele. Ela era formada em filosofia, algo inusitado para uma militar. Riam daquilo. Quando Peter chegou, Helena parecia bem melhor, mais alegre também. — Vejo que o Capitão estava certo. - Peter parou na porta. Em seu uniforme, para o escritório, era um homem irremediavelmente bonito, aparência impecável que refletia sua posição de autoridade, algo, de pouco mais de um metro e oitenta de altura, postura ereta e disciplinada, resultado de anos no serviço militar. Os cabelos, castanho-claros, sempre bem penteados, já começavam a mostrar sinais de grisalho nas laterais, adicionando um ar de maturidade elegante. Seus olhos azuis, penetrantes, carregam uma mistura de autoridade, luxúria e mistério, com a expressão, geralmente, séria. Havia aquele charme nele, que Helena achava encantador. Peter sempre foi cuidadoso com sua imagem púb
Sem toda a farda, Peter era um tipo bastante atraente. Helena, uma garota, viva e meiga, fora do Deserto, caminhava agarrada ao braço de Peter. Ela já não morava perto da base tinha muito tempo. Peter gostava da nova vizinhança dela, cheia de senhorinhas curiosas e pequenas famílias. Era um bem viver.— O que quer cozinhar? - Peter perguntou.— Você quem sabe. Eu faço fotossíntese. - Ela brincou mas Peter sabia que havia alguma verdade naquilo. - Vou ali na farmácia, me espera.— Analgésicos? - Ele perguntou. — No! Preservativos para a noite toda. - Ela provocou. Escandalizando duas velhinhas que o encararam, coradas. Helena o constrangida, descaradamente. Peter perdia a compostura, envergonhando-se. Maneou cabeça em um aceno para as velhas que desviaram o olhar dele. Ela levou algum tempo para sair dali, com um pequeno pacote na mão. - Pronto! Preparado! - Ela gargalhou, divertia-se às custas do amigo. — Você me mata, sabia? - Peter disse, sem jeito. No mercado, ela pegou alguns i
— Seu cheiro é tão gostoso, Helena. - Peter disse baixinho, segurando as mãos dela contra a pia. Com o queixo, afastou os cabelos dela e lhe mordiscou o pescoço. Sentia o corpo daquela mulher estremecer. — Pete. - Ela disse séria. - Se a gente continuar com isso, não vai ter volta. - Ela arqueou-se sob aquele domínio, com a mordida em seu ombro, mais firme. Sentia-o quente, pressionando seu corpo contra o dela, excitado.— Você não quer, minha doce Helena? - Ele rosnou, entre os dentes. - Podemos ser amigos ainda, no café da manhã. — Pete. - Ela gemeu, sentindo a ponta da língua daquele homem percorrer o desenho de sua orelha. Por cima da blusa, via os mamilos excitados dela, ela já estava tomada pela luxúria. Peter perdeu os sentidos com o contexto, girou Helena sob seu comando, a colocando de frente para si. Ele beijou sua boca, era doce, com os lábios mornos do vinho. Ele intensificou a exploração do manancial que lhe saciava a sede daquele beijo, tão necessário em sua vida. Hele
— O que são todas essas coisas? - Peter notava Gregory separar os frascos e cartelas em grupos. — Remédio para dormir, calmantes, indutores de sono, antialérgicos, remédio para digestão, cardíacos. - Ele identificava grupo. - Com álcool, apagam um elefante, individualmente. Em conjunto, são pior do que entorpecentes sintéticos. Faz sentido ela desmaiar com frequência. - Ele analisou.— Isso me preocupa, Greg. Como ter uma líder entorpecida? - Peter se percebia: poderia não ter havido vazamento de informações, mas falha de cálculo, na execução do planejamento dos riscos. Helena poderia estar dopada quando pôs a estratégia em ação. - Preciso voltar para o escritório, Capitão? - Peter se levantou, atordoado, retornando ao escritório. Em seu gabinete, solicitou os documentos de planejamento e os relatórios da operação. Revisava, fase por fase. Apesar de tudo, o plano era perfeito, não havia erro. Restava a segunda hipótese: a operação havia sido sabotada, fosse por erro na execução ou u
Helena deu seu jeito de entrar no transporte intermunicipal, rumo oeste. Havia um motel, investigado um sem número de vezes naquela rota, em um lugar ermo, fora das rodovias principais. Cruzar a fronteira a identificaria e ela sentia aquela angústia de voltar ao deserto. Não raciocinava. Não teve dificuldades para chegar, ainda que fosse incapaz de fechar os olhos, secos e dolorosos. A dor, pelo corpo, a torturava. Tinha a garganta seca e aquela angústia de chegar ao deserto. As rotas oficiais estavam fora de cogitação. Estava confusa e aquela única noite de descanso genuíno, sob os cuidados do "Amigo do Deserto", fora algo vital para ela. No motel, pagou a dinheiro, sem perguntas. Não era um lugar luxuoso, mas estava fora dos radares oficiais. Ela tomou um longo banho, comprou um maço de cigarros e uma garrafa de tequila e ligou seu celular. As mensagens caiam, enlouquecidas, ela as deixou entrar, sem, contudo, desbloquear o aparelho. Tanto Dario quanto Peter recebiam a notificaçã
Peter esperou ela se acalmar. Afastou o rosto dela do peito, ambos os olhos estavam tomados pelo sangue, era difícil de encarar a mulher. — Me diz o que consegue ver, bebê. - Ele pediu. — Nada, Pete. - Ela enxugou o nariz com o braço, estava muito sensível. - São borrões de cores e manchas. Eu... - Ela voltava a se emocionar. - Pete, eu não sei o que fazer. Cega, estéril, sozinha. - Ela voltava a chorar. - Não quero virar uma veterana apodrecendo num asilo, esperando a morte me buscar. Eu prefiro morrer. - Ela se agarrou a camiseta do homem. — Aceita um pouco de ajuda deste palhaço aqui, Helena. - Ele suplicou. - Vou ligar para o Greg. — Não! Ele vai me enfiar numa clínica psiquiátrica, não quero viver assim. - Ela se agitava, a cor sumia dela. — Calma, Helena. Respira. Você vai desmaiar assim. - Ele aconselhou. - Respira comigo, gatinha. - Ele cadenciava a respiração. Helena o obedecia, sem pensar. - Isso! Assim. Continua. Se eu o fizer prometer que não vai arrastar você par