Corações em frenesi
Corações em frenesi
Por: Belarmino Felipe
Capítulo um

Havia uma certa peculiaridade naquele chão, algo que refletia o olhar abatido e silencioso de um jovem de 23 anos prestes a encarar a si e não mais enxergar a mesma pessoa de 15 minutos atrás. Seu rosto, antes pálido, de olheiras notáveis e lábios na maior parte do tempo comprimidos pela insegurança e timidez (com exceção das noites sob o efeito do álcool), de um nariz marcante e cabelos negros ondulados que oscilavam entre o popular e a invisibilidade, agora refletia no piso carmesim sem estes traços. Agora, Thomaz encarava alguém que a princípio ele não conhecia, mas que, depois de um longo silêncio e a pressão do gotejar que ecoava perfurante através do banheiro, ele sabia que só não lembrava. Aconteceu de novo, e dessa vez ele tinha idade o suficiente para entender e refletir acerca disso; idade para não reverberar a dor, mas causá-la, porque não havia nada até aquele momento que o machucaria mais do que ele mesmo. Thomaz quase se confundiria com os azulejos perolados das paredes se não fosse seu peito, que se enchia e esvaziava lentamente (ainda que os azulejos também parecessem respirar sob os olhos do jovem), mas principalmente pelos tons de vermelho que em um canto ou outro destronavam o perolado — em especial no piso.

...

Era a terceira música seguida de “Poesia acústica” que Saulo colocava na TV Smart

e, estranhamente, Elise não estava criticando. Rita dançava no meio da sala de estar, os cabelos castanhos escuros se movendo no mesmo ritmo acima de seus ombros. Há uma garrafinha de ice, que já havia secado há tempos, em sua mão e que, agora, estava preenchida com uma mistura de vodca, refrigerante de laranja e energético. Otto lhe fazia companhia, segurando um cigarro entre os dedos de uma das mãos e um copo descartável com a mesma mistura na outra. Do sofá, há menos de 2 metros, Lucas já observava todo o cenário sonolento ao lado de Saulo, que estava escolhendo a quinta música seguida, segurando o controle com afinco e vendo as thumbnails deslizando na tela da televisão. 

Pedro, por sua vez, parecia perdido em seus pensamentos. Os olhos azuis fixados em algum lugar no tapete da sala, sua mão esquerda repousada sobre a coxa enquanto a direita segurava uma latinha vazia de Tiger. Quando Rita quase esbarrou nele, seu olhar ganhou foco para a garota.

— Meu Deus, descuuuulpa — disse pedinte, apesar do sorriso nos lábios, e então sussurrou: — Que músicas são essas, amigo?

Pedro entendera o recado.

— Muda essa playlist, mano! — Ele disse, tomando o controle da televisão das mãos de Saulo.

— Ei?!

— É... mudan... — Rita concordou, enrolando as palavras enquanto as proferia — Não dá pra... daaançar com isso não...

No canto da sala, sentado em uma cadeira acolchoada, Thomaz ergueu-se e caminhou até o corredor, passando por Elise, que vinha da cozinha abrindo uma latinha de Tiger enquanto mexia os quadris sutilmente. A pele negra brilhava na meia luz do corredor, enquanto as tranças em seus cabelos a deixava com um ar mais jovial do que Elise realmente possuía.

— Está com sono? — Elise sussurrou para Thomaz, esboçando uma expressão clara, que Elise reconheceu como de descontentamento com a qualidade do último tiro.

— Ironicamente. — Ele respondeu, e os dois seguiram.

O som mudou para um funk anos 2000, o que pareceu surtir um grande efeito dos movimentos de Rita. Otto cambaleou, derramando um pouco da sua bebida no piso, se desculpando logo depois.

— Relaxa, man. — disse Saulo. — Vou pegar um pano, calma.

Lucas fechou os olhos por alguns segundos e se imaginou em casa, em sua cama, longe da música e das pessoas com quem não tinha afinidade, mas também longe de Otto. Em sua mente, uma canção de ninar, que sua mãe cantava para ele quando criança, surgiu como que invasiva. Nostalgia

— O que houve? — A voz de Otto o fez abrir os olhos.

Lucas encarou o rosto do namorado diante dele.

— O quê?

— Estava dormindo? Está com sono?  — Otto perguntou. Atrás dele, Rita parou ao ouvir a palavra “sono” e lançar um olhar de censura na direção de Lucas.

— Não, é só que… — ele começou a dizer, então refletiu sobre seus pensamentos e continuou. — Não estou com sono, estava pensando na hora. — Otto tocou sua mão. — Você está gelado.

— Está frio.

VAMO ESQUENTAR! — Rita disse em voz alta.

— Menos, gata. — Elise surgiu do corredor.

Otto puxou Lucas, que parecia desmotivado apesar da insistência de Ritta e Otto. Elise se aproximou dos três no centro da sala, dançando. Pouco a pouco Lucas era encurralado pelos corpos dos amigos.

— A vontade de dançar não pode ser passada por osmose, pessoal. — Lucas ria enquanto proferia as palavras. Estranhamente, a sensação de estar preso naquele contexto o fazia repensar sua desmotivação. — Eu não gosto de dançar…

— Ah, vamos, Lu! — Rita exclamou. — Não é todo dia que você pode dormir fora.

— E se eu te der isso. — Otto vira-se para o namorado e o beija, colocando sua mão livre atrás do pescoço de Lucas. É um beijo rápido, significativo.

— Pegue de volta, não quero ficar doidão. — Lucas diz ao fim do beijo, falando como se segurasse algo em sua língua.

— É só chiclete, bobão.

Lucas mastiga a coisa em sua língua, aliviado.

— Toma. — Elise empurra a Tiger na direção de Lucas, que aceita sem hesitar.

— Eu vou tomar uma água. — Pedro levanta do sofá, a latinha vazia continua em sua mão. Ele olha para Saulo, entretido com o corpo das meninas se movendo na estranha tentativa de levantar o ânimo de Lucas. — Quer algo?

Saulo parece não ter o escutado.

...

Em menos de 48h, Thomaz esteve bêbado. Nesse exato momento, ele também está. Seu olhar procurava por algo no interior reluzente da geladeira, uma garrafa de água para ser mais específico, porém seu olhar pousou em uma latinha de Tiger que ele não bebia fazia meses, não importava de quem eram três dolorosas latas de cerveja, uma agora era dele.

— Acho que você precisa pedir permissão pra pegar isso aí. — Ele ouviu a voz por trás dele assim que tocou na superfície gélida da latinha.

Thomaz tirou a cerveja da prateleira e fechou a porta, virando-se para Pedro atrás dele.

Aquela seria a segunda vez que os dois estavam sozinhos no mesmo cômodo e, como da primeira vez, aquilo também fazia borboletas voarem dentro do estômago de Thomaz, que nunca se sentia confortável o bastante sozinho com alguém que não fosse sua melhor amiga, Rita. Para completar, Pedro tinha um tom de voz que parecia reduzir os 1,80 metros de altura de Thomaz à metade perto dele, assim como sua postura e o olhar azul penetrante. A regata deixava a mostra os músculos bem desenhados, mas não era para eles que Thomaz geralmente olhava; eram os lábios que mais pareciam ter sido desenhados por algum pintor-gênio ao estilo "o sorriso de Monalisa", com traços delicados e uma tinta rosada com óleo sobre a tela.

— Quer uma também? — Thomaz questionou, feliz por responder consideravelmente rápido, apesar do rosto de Pedro estar há poucos centímetros do seu, o que normalmente o faria perder - metaforicamente - a fala.

Pedro sorriu, se posicionando ao lado de Thomaz e abrindo a geladeira novamente, o que fez Thomaz se afastar para que ele pudesse concluir o ato. Thom respirou fundo e puxou o lacre da latinha de cerveja, dando um longo e silencioso passo em direção à sala.

— Ei... — chamou, Pedro, fazendo Thomaz parar por um momento. — O que a Rita disse... É verdade?

Thomaz engoliu em seco. 

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