Capítulo dois

O silêncio da rua foi rapidamente substituído por algumas risadas vindo da esquina mais distante, que dava para o fim da cidade. Depois dali, só havia calçamento para se terminar e muita, mais muita grama: o lugar perfeito para um serial killer ou um grupo de jovens alcoólatras como aquele. Não havia muito o que se observar na cidade inteira, em especial durante a noite, quando maior parte dos moradores ou estavam dormindo, ou transando, ou bebendo nos bares não-familiares dispostos a cada meia dúzia de casas, porém, em épocas como essa, onde a noite era tomado por um frio quase doloroso (considerando que o calor dominava durante o dia), uma cerveja gelada às 00h não parecia uma boa ideia.

Thomaz sabia que, naquele horário, o único depósito de bebidas que estava aberto não possuía itens baratos, por isso agradeceu internamente quando se lembrou do dinheiro que havia guardado atrás da capinha do celular. Tal qual foi sua surpresa quando, ao tatear o bolso frontal esquerdo, sentiu falta do seu guerreiro.

Thomaz parou no meio da rua, uma estátua por cinco segundos,  até os amigos olharem para ele e perceber sua expressão contida e suas mãos tateando freneticamente os bolsos.

— Não... — Rita disse. — Você não perdeu seu...

E enfim uma expressão de alívio quando Elise ergueu o aparelho na frente dele.

— Você pediu para eu guardar, lembra? Quando estava conversando com a atendente virtual do banco, e claramente não estava digitando coisa com coisa?

Não seria a primeira vez que Thomaz achava que tinha perdido o celular aquela noite, felizmente não seria dessa vez que seria oficial (e ele torcia para que nunca acontecesse).

Ele encontrou a nota de R$ 20,00 por dentro da capinha do celular e a entregou a Pedro, que já devia estar com uns cinquenta reais somados dos demais, um avanço e tanto para quem saiu do loteamento com apenas uma vodca furtada e meia bala.

— Então, compro o quê? — Pedro perguntou, encarando os demais com um brilho no olhar que apenas Thomaz prestou atenção naquele momento.

— Além do álcool? Mais álcool. — Elise respondeu.

— E salgadinho — Lucas disse, refletindo por um instante que, talvez, o dinheiro não fosse o bastante. — Se der...

Pedro bateu continência e apressou o passo. Sobravam apenas Thomaz, Saulo, Rita, Otto, Lucas e Elise, afastando-se pouco a pouco do amontoado de gente que rodeavam o carro de som que fez a trilha sonora deles até então. De onde estavam, eles ainda conseguiam ver as silhuetas da galera que havia ficado, assim as luzes que ornamentavam o som do carro e que em algum momento aquela noite preencheu todo o ambiente graças a Rita e Otto que não saiam de casa sem um bom alucinógeno no bolso.

Os pés de todos doíam, em especial os de Rita, que dançara a noite toda (e ainda ganhou um machucado nos joelhos), mas foi Thomaz o primeiro a reclamar disso.

— Sinceramente, — disse ele — eu pegaria carona com o primeiro ser que passasse por nós.

— Nós sabemos exatamente quem você gostaria de pegar... — disse Rita, esvaziando seu copo com a mistura e já procurando com quem estava a garrafa.

— Rita... — Thomaz a repreendeu.

— Estou mentindo, Eli? — Disse em um tom de voz que provavelmente metade da rua ouvira.

Elise riu por alguns segundos, evitando uma resposta, e então virou a garrafa de vodca em sua na boca e deu alguns bons goles. Ela levantou a garrafa em direção a Thom, que andava ao seu lado, mas este balançou a cabeça em negação, mostrando o copo ainda pela metade com a mistura de sempre – vodca, energético e refrigerante de laranja. Ela deu de ombros, relaxando o braço.

— Mas quer saber... — disse Elise. — E se for verdade? Ele é hétero, não?

— Gente… — Thom virou os olhos rapidamente na direção de Saulo, perdido na discussão que se desenrolava.

— Calma, Thomzinho, — Rita aproximou-se de Thom, tocando sua bochecha com o dedo indicador e empurrando para o lado oposto; ele, por sua vez, deu uma “tapinha” para afastar a mão da amiga. — Ninguém tá citando nomes.

— Mas acho que tá meio óbvio, não?

— Até você, Luke?

Lucas se retraiu, olhando para Otto de soslaio enquanto lançava um risinho que logo desapareceu ao notar o namorado ao celular. Lucas ignorou, voltando a caminhar.

Para Lucas, era estranho caminhar à noite, mesmo com amigos, principalmente depois que se assumiu para os pais. Na época, Otto estava sempre com ele, eram praticamente melhores amigos, mas pouco após começarem a namorar, alguma coisa foi mudando lentamente e encarar Otto distraído com a tela do W******p era como reviver a época em que Lucas era apenas Lucas: no armário, distante, antissocial, nerd.

— Otto? — Chamou Eli.

Ele levantou o rosto, procurando por alguns segundos por Elise; a última vez que olhara ela estava atrás dele, agora estava adiante. Por quanto tempo tivera distraído no celular sem tropeçar?

— O que você acha? O Thom deveria investir em um cara hétero ou não?

Silenciosamente, Otto considerou sua resposta. Não sabia se Eli estava se referindo a Saulo ou a Pedro, ou qualquer dos últimos doze caras que apareceram no rolê deles, em que metade saiam do papel depois da oitava dose. Pensando bem, até Thomaz saia do papel depois da oitava dose.

— Acho que o Thom é bem grandinho pra saber em quem investir. — Disse Otto, devolvendo o silêncio à rua por um instante.

Lucas se adiantou na frente dos outros, estendendo a mão para que Elise o entregasse a vodca, o que ela religiosamente fez. Otto apenas observou, enquanto o namorado – que não suportava vodca pura – preenchia um copo descartável de 300ml sem uma gota de refri.

— Quer dividir comigo até chegar na casa dele? — Disse Lucas, dirigindo-se à Rita, que logo respondeu com um enorme sorriso e uma frase que ela teria usado a noite inteira a cada pessoa que lhe ofereceu bebida.

— Manda, Papí! — Rita respondeu euforica. — E é “cafofo” não “casa”.

Lucas agradeceu mentalmente a correção.

— Nossa —, Saulo disse de repente — até que é bom não ter que lidar com toda aquela gente. — Ele limpo a garganta e questionou: — De onde conhecem aquela galera toda?

Elise respondeu de imediato.

— Nem nós sabemos.

E realmente não sabiam. Depois dos últimos meses, depois da pandemia, aquele que seria o lugar mais reservado para as “reuniões alcoólicas reservadas” do grupo, se tornou um ponto de encontro comum para maioria do pessoal da região, desde grupos de adolescentes que se divertiam com uma garrafa de coquetel de uva barato, até “influencers” que tiravam o fim de semana para chamar atenção com seu carro de som enorme com caixas de som maiores ainda – os belíssimos “paredões” —, e hoje todos parecem uma comunidade hippie contemporânea dividindo a mesma ilha. Nem todos se conheciam, e nem precisava. 

A cidade estava crescendo, mas as obras eram lentas o suficiente para que toda a diversidade de jovens e adolescentes passassem a aproveitar das ruas do loteamento onde estavam por, justamente, ser o mais reservado e calmo para um encontro entre amigos. Pelo menos era assim que funcionava para o círculo de amigos de Thomaz até aquilo virar um festival não oficial ao estilo Projeto X. Entretanto, não era algo exatamente ruim, afinal, não havia nada mais satisfatório do que um som enorme e uma quantidade – quase – infindável de álcool para sustentar os dias e as noites tediosas da cidade pequena. 

— Chame de sincronicidade, lei da atração ou até mesmo efeito borboleta —, Otto projetou a voz, levemente embargada pelo cigarro cuja fumaça se esvaia de sua boca enquanto falava — acredite ou não, até a menor das ações, mesmo que em segredo, pode gerar ondulações sutis no tecido da realidade.

Rita encarava Otto com desdem, enquanto os demais pareciam estar perdido na explicação.

— Que vi-a-gem! — Saulo disse, pausadamente.

— O que foi? — Disse, em resposta à expressão de Rita? — Faz sentido, não faz?

Rita compreendia o que Otto queria dizer. Mas, convenhamos, a ideia de sair para beber e não se envolver em certos diálogos filosóficos (ou de física quântica) lhe atraia bem mais.

Enquanto se aproximavam da rua onde Saulo morava, Thomaz pensou no fato de ir até lá não estar em seus planos originalmente. Uma canção de ninar soou em sua mente, como se estivesse fadado a esquecer algo que precisava lembrar.

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