O silêncio da rua foi rapidamente substituído por algumas risadas vindo da esquina mais distante, que dava para o fim da cidade. Depois dali, só havia calçamento para se terminar e muita, mais muita grama: o lugar perfeito para um serial killer ou um grupo de jovens alcoólatras como aquele. Não havia muito o que se observar na cidade inteira, em especial durante a noite, quando maior parte dos moradores ou estavam dormindo, ou transando, ou bebendo nos bares não-familiares dispostos a cada meia dúzia de casas, porém, em épocas como essa, onde a noite era tomado por um frio quase doloroso (considerando que o calor dominava durante o dia), uma cerveja gelada às 00h não parecia uma boa ideia.
Thomaz sabia que, naquele horário, o único depósito de bebidas que estava aberto não possuía itens baratos, por isso agradeceu internamente quando se lembrou do dinheiro que havia guardado atrás da capinha do celular. Tal qual foi sua surpresa quando, ao tatear o bolso frontal esquerdo, sentiu falta do seu guerreiro.
Thomaz parou no meio da rua, uma estátua por cinco segundos, até os amigos olharem para ele e perceber sua expressão contida e suas mãos tateando freneticamente os bolsos.
— Não... — Rita disse. — Você não perdeu seu...
E enfim uma expressão de alívio quando Elise ergueu o aparelho na frente dele.
— Você pediu para eu guardar, lembra? Quando estava conversando com a atendente virtual do banco, e claramente não estava digitando coisa com coisa?
Não seria a primeira vez que Thomaz achava que tinha perdido o celular aquela noite, felizmente não seria dessa vez que seria oficial (e ele torcia para que nunca acontecesse).
Ele encontrou a nota de R$ 20,00 por dentro da capinha do celular e a entregou a Pedro, que já devia estar com uns cinquenta reais somados dos demais, um avanço e tanto para quem saiu do loteamento com apenas uma vodca furtada e meia bala.
— Então, compro o quê? — Pedro perguntou, encarando os demais com um brilho no olhar que apenas Thomaz prestou atenção naquele momento.
— Além do álcool? Mais álcool. — Elise respondeu.
— E salgadinho — Lucas disse, refletindo por um instante que, talvez, o dinheiro não fosse o bastante. — Se der...
Pedro bateu continência e apressou o passo. Sobravam apenas Thomaz, Saulo, Rita, Otto, Lucas e Elise, afastando-se pouco a pouco do amontoado de gente que rodeavam o carro de som que fez a trilha sonora deles até então. De onde estavam, eles ainda conseguiam ver as silhuetas da galera que havia ficado, assim as luzes que ornamentavam o som do carro e que em algum momento aquela noite preencheu todo o ambiente graças a Rita e Otto que não saiam de casa sem um bom alucinógeno no bolso.
Os pés de todos doíam, em especial os de Rita, que dançara a noite toda (e ainda ganhou um machucado nos joelhos), mas foi Thomaz o primeiro a reclamar disso.
— Sinceramente, — disse ele — eu pegaria carona com o primeiro ser que passasse por nós.
— Nós sabemos exatamente quem você gostaria de pegar... — disse Rita, esvaziando seu copo com a mistura e já procurando com quem estava a garrafa.
— Rita... — Thomaz a repreendeu.
— Estou mentindo, Eli? — Disse em um tom de voz que provavelmente metade da rua ouvira.
Elise riu por alguns segundos, evitando uma resposta, e então virou a garrafa de vodca em sua na boca e deu alguns bons goles. Ela levantou a garrafa em direção a Thom, que andava ao seu lado, mas este balançou a cabeça em negação, mostrando o copo ainda pela metade com a mistura de sempre – vodca, energético e refrigerante de laranja. Ela deu de ombros, relaxando o braço.
— Mas quer saber... — disse Elise. — E se for verdade? Ele é hétero, não?
— Gente… — Thom virou os olhos rapidamente na direção de Saulo, perdido na discussão que se desenrolava.
— Calma, Thomzinho, — Rita aproximou-se de Thom, tocando sua bochecha com o dedo indicador e empurrando para o lado oposto; ele, por sua vez, deu uma “tapinha” para afastar a mão da amiga. — Ninguém tá citando nomes.
— Mas acho que tá meio óbvio, não?
— Até você, Luke?
Lucas se retraiu, olhando para Otto de soslaio enquanto lançava um risinho que logo desapareceu ao notar o namorado ao celular. Lucas ignorou, voltando a caminhar.
Para Lucas, era estranho caminhar à noite, mesmo com amigos, principalmente depois que se assumiu para os pais. Na época, Otto estava sempre com ele, eram praticamente melhores amigos, mas pouco após começarem a namorar, alguma coisa foi mudando lentamente e encarar Otto distraído com a tela do W******p era como reviver a época em que Lucas era apenas Lucas: no armário, distante, antissocial, nerd.
— Otto? — Chamou Eli.
Ele levantou o rosto, procurando por alguns segundos por Elise; a última vez que olhara ela estava atrás dele, agora estava adiante. Por quanto tempo tivera distraído no celular sem tropeçar?
— O que você acha? O Thom deveria investir em um cara hétero ou não?
Silenciosamente, Otto considerou sua resposta. Não sabia se Eli estava se referindo a Saulo ou a Pedro, ou qualquer dos últimos doze caras que apareceram no rolê deles, em que metade saiam do papel depois da oitava dose. Pensando bem, até Thomaz saia do papel depois da oitava dose.
— Acho que o Thom é bem grandinho pra saber em quem investir. — Disse Otto, devolvendo o silêncio à rua por um instante.
Lucas se adiantou na frente dos outros, estendendo a mão para que Elise o entregasse a vodca, o que ela religiosamente fez. Otto apenas observou, enquanto o namorado – que não suportava vodca pura – preenchia um copo descartável de 300ml sem uma gota de refri.
— Quer dividir comigo até chegar na casa dele? — Disse Lucas, dirigindo-se à Rita, que logo respondeu com um enorme sorriso e uma frase que ela teria usado a noite inteira a cada pessoa que lhe ofereceu bebida.
— Manda, Papí! — Rita respondeu euforica. — E é “cafofo” não “casa”.
Lucas agradeceu mentalmente a correção.
— Nossa —, Saulo disse de repente — até que é bom não ter que lidar com toda aquela gente. — Ele limpo a garganta e questionou: — De onde conhecem aquela galera toda?
Elise respondeu de imediato.
— Nem nós sabemos.
E realmente não sabiam. Depois dos últimos meses, depois da pandemia, aquele que seria o lugar mais reservado para as “reuniões alcoólicas reservadas” do grupo, se tornou um ponto de encontro comum para maioria do pessoal da região, desde grupos de adolescentes que se divertiam com uma garrafa de coquetel de uva barato, até “influencers” que tiravam o fim de semana para chamar atenção com seu carro de som enorme com caixas de som maiores ainda – os belíssimos “paredões” —, e hoje todos parecem uma comunidade hippie contemporânea dividindo a mesma ilha. Nem todos se conheciam, e nem precisava.
A cidade estava crescendo, mas as obras eram lentas o suficiente para que toda a diversidade de jovens e adolescentes passassem a aproveitar das ruas do loteamento onde estavam por, justamente, ser o mais reservado e calmo para um encontro entre amigos. Pelo menos era assim que funcionava para o círculo de amigos de Thomaz até aquilo virar um festival não oficial ao estilo Projeto X. Entretanto, não era algo exatamente ruim, afinal, não havia nada mais satisfatório do que um som enorme e uma quantidade – quase – infindável de álcool para sustentar os dias e as noites tediosas da cidade pequena.
— Chame de sincronicidade, lei da atração ou até mesmo efeito borboleta —, Otto projetou a voz, levemente embargada pelo cigarro cuja fumaça se esvaia de sua boca enquanto falava — acredite ou não, até a menor das ações, mesmo que em segredo, pode gerar ondulações sutis no tecido da realidade.
Rita encarava Otto com desdem, enquanto os demais pareciam estar perdido na explicação.
— Que vi-a-gem! — Saulo disse, pausadamente.
— O que foi? — Disse, em resposta à expressão de Rita? — Faz sentido, não faz?
Rita compreendia o que Otto queria dizer. Mas, convenhamos, a ideia de sair para beber e não se envolver em certos diálogos filosóficos (ou de física quântica) lhe atraia bem mais.
Enquanto se aproximavam da rua onde Saulo morava, Thomaz pensou no fato de ir até lá não estar em seus planos originalmente. Uma canção de ninar soou em sua mente, como se estivesse fadado a esquecer algo que precisava lembrar.
Dos três paredões dispostos, cada um a uma distância "confortável", era impossível ouvir apenas um, ainda mais agora que só tinham uma garrafa e meia de vodca entre os amigos de Thomaz (por mais que aquilo fosse uma festa avulsa informal, cada galera que lidasse com as próprias bebidas e drogas). Rita parou um momento na frente do paredão mais próximo, procurando por alguém especifico, até encontrar o dono do carro do outro lado com alguns amigos. Ela passou por um casal aos beijos e puxou conversa com o homem que mais parecia ser uns 10 anos mais velha que ela.— Oi — Ela chamou. O cara virou-se para ela no mesmo instante. — Você o dono desse som? — Sua voz soava propositalmente sensual. O cara assentiu, dando um gole na sua longneck enquanto analisava Rita dos pés até a cabeça – a comendo com os olhos, como ela diria posteriormente.— Será que eu posso conectar meu celular alguns minutos? Prometo que será rápido.— O que eu ganho em troca?Elise notou quando Luíza se aproximou em p
Otto encontrou Lucas no poste mais distante, enquanto urinava nas plantas, distante de toda a galera que parecia aumentar a cada hora que passava, desde a chegada do primeiro carro – quando eles já estavam lá; eles e apenas eles. — Quer uma ajudinha? — Otto disse há alguns metros de distância, aproximando-se conforme Lucas parecia acomodar seu membro dentro da roupa. Lucas deu uma risadinha sem graça. — Chegou atrasado. Ele virou-se para o namorado, que agora estava cara a cara com ele, respirou fundo e beijou rapidamente Otto nos lábios, afastando em seguida em direção onde a galera estava reunida. — Pera, — disse Otto. — É só isso? — Eu não estou no clima, amor. Ansiedade, acho. — Você não tomou seu remédio, tomou? Lucas respondeu balançando a cabeça negativamente. — Não tomo quando saio pra beber, cê sabe. — Humrum... — Vou tentar falar com a Ri, ela deve ter alguma coisa. Otto se aproximou de Lucas, colocando seu braço ao redor de seu pescoço delicadamente. Os dois se
Aquilo não era exatamente o que Rita esperava para aquela noite, mas havia prometido a Saulo desde o último rolê, quando citou, sem querer que estava disposta a dar ¼ do seu doce a Saulo em troca de uma dose da bebida dele – “péssima troca” Otto dissera no dia, mas Rita amava um gim com tônica, e não era sempre que aquele tipo de bebida surgia no rolê; estavam acostumados com vodca barata, refrigerante e, na maioria das vezes, um energético para segurar a noitada. Eles já estavam distantes de toda a galera e todo o som quando Saulo se dignou a perguntar: — Precisava ser tão longe? Rita sentou-se na grama do campo de futebol que ficava na margem de todo o loteamento, tirando seu celular do bolso, com um embrulho pequeno feito de papel alumínio. Saulo a observou, sentando-se ao seu lado, na esperança de que não estivesse próximo há nenhum formigueiro. — Sabe o que dizem sobre distância? — Ele não respondeu, mas, para Rita, aquilo era esperado. — É só questão de se mover. Saulo esqu
— Verdade ou desafio? — Perguntou Rafael. O garoto tinha a mesma altura que Thom, apesar de ser mais novo. Seus óculos de aro dourado e redondos, refletia as luzes da cidade à distância. Thom gostava dos cabelos castanho-claro de Rafa, e de como os fios desmaiavam sobre seu rosto ocasionalmente. Se ele o beijasse, ele pensou, quando ele o beijasse, colocaria seus dedos naqueles cabelos e sabia que iria sentir como se tocasse o céu - ou os cabelos de Pedro. Ele afastou a ideia da mente quando Rafael repetiu a pergunta. Thomaz hesitou por um instante. Não estava bêbado o suficiente para cumprir qualquer desafio, mas também não queria parecer careta demais; entretanto, aquela seria sua primeira verdade ainda, o que diminuía o peso em sua consciência. — Verdade. Rafael refletiu, não conhecia Thom o suficiente para elaborar uma boa pergunta. — A bebida acaba e essa pergunta não sai. — Elizabeth comentou. — Calma. — Respondeu Rafa. — Então... é verdade que você já foi apaixonado pe
Houve um tempo em que Thomaz temia interações como aquelas. Até os 18 anos, suas amizades eram resumidas em uma ou duas colegas de escola e alguns vizinhos com quem jogava FPS online, mas nada disso se comparava ao que ele passou a ter quando decidiu sair da própria bolha. Tão logo passou a fazer as escolhas que o colocavam de frente à construção de uma identidade própria, acabou por parar nesse momento: lá estava ele, dando toda a atenção do mundo para os recém-chegados amigos de Luiza. Thomaz conhecia a irmã de Elise há um tempo, assim como Marcos; porém, se perguntado, Thom diria que Rafael era o rosto menos conhecido dali. Uma bela de uma mentira, considerando que ele e Lucas já haviam conversado sobre o garoto há um tempo, quando usavam Grindr para julgar os gays do aplicativo (e, vez ou outra, aliviar a tensão). Rafael não parecia diferente da foto, muito dificilmente seria difícil de reconhecê-lo, com ou sem filtro, mas o que chamou a atenção de Thom, quando os quatro se aproxi
Elizabeth está com aquela mesma sensação de ter esquecido algo, mesmo agora, enquanto vai de encontro à concentração de pessoas desinteressantes com gostos por carros de som, luzes coloridas e álcool. O que quer que ela tenha esquecido, não tem relação com aquele momento, ou pelo menos, é isso que espera. Ao imaginar aquele rolê, em sua mente, o lugar estaria praticamente vazio. Ela respira fundo enquanto Marcos parece notar um pouco atrasado que estavam caminhando em direção a um formigueiro de pessoas – e pior: certamente, uma grande maioria desconhecida. — Isso não era para ser um rolê pequeno? A mão de Luiza já estava começando a doer com o peso da sacola que segurava. Os quatro tiveram uma pequena votação para decidir quem levaria as sacolas com bebidas – duas, no total, onde um par de vodca sabor blueberry e um par de refrigerante de limão estavam divididos – e Marcos e Luiza haviam perdido a votação. Não que isso importasse. Naquele momento, ninguém mais do que ela estava est
Thomaz certamente não estava no clima para beber – ainda. Ele tinha em sua cabeça, o pensamento de que aquela rua estaria cheia em pouco tempo, mas deu um longo gole em sua mistura alcoólica quando cogitou a possibilidade de que ele estaria lá. Não um ele qualquer, mas alguém cuja memória Tom não conseguia abandonar. — O que está pensando? — Questionou Lucas, que estranhamente estava com um cigarro aceso entre os dedos. Tom o encarou, alternando o olhar entre o rosto de Lucas e o cigarro, e então de um para o outro. — Eu sei... — disse Lucas, percebendo a estranheza da situação. — É só esse. Vocês dizem que é bom pra ansiedade, né? Eles formavam um semicírculo no chão, mas Rita não estava junto. Ela observava a luz oscilante de um poste ao longe, estado ela há apenas alguns passos do grupo. Otto também não havia voltado de seu momento no “banheiro público”, o que fazia Lucas querer ir ao seu encontro e dar-lhe um tapa. — Não é o cigarro em si, — disse Elise. — É o controle. — Vo
Assim que abriu os olhos, logo que soou o primeiro alarme do seu celular, a primeira coisa que Rita procurou, no criado mudo ao lado da cama, foi seu celular. La tela, a mensagem de Tom, enviada na madrugada daquele mesmo dia, às 4h. “Rolê hoje?”. Rita não iria, pelo menos não até o dado momento em que sua mãe a questionou se pretendia sair. Era um milagre, e posteriormente ela descobriria que, realmente, era um milagre. Não um milagre qualquer, mas considerando que sua mãe raramente a incitava a simplesmente sair, encontrar os amigos e... beber; aquela situação foi, no mínimo, inesperada. Rita só respondeu à mensagem duas horas depois, e passara o resto da manhã e da tarde, ansiosa com a ideia de que hoje poderia encher a cara e curtir as últimas semanas na cidade com os amigos. Fazia uma semana que Rita não saia de casa, a não ser para a universidade. Precisava de permissão maioria das vezes para encontrar com os amigos, e, às vezes, nem podia demorar. A simples ideia de não saber