Aquilo nunca foi algo que ele escolheu ou sequer pediu. Estava gravado em seu sangue, ou em sua cabeça; talvez em partes de seu corpo que ele próprio desconhecia. Era algo que se espalhava por tudo ao seu redor: seus amigos, sua família, sua cidade. Na verdade, provavelmente ia muito além, alcançando um raio indefinido... só Deus sabia até onde. O mundo ao redor permanecia imutável. As notícias se repetiam, o álcool continuava com o mesmo teor, a maconha ainda era ilegal onde sempre foi, e as drogas ilícitas, tão comuns, podiam ser encontradas até na esquina da prefeitura. Nada parecia mudar, não realmente. Thomaz, no entanto, era uma ruptura nessa normalidade — não um herói, longe disso, apenas alguém que ainda não compreendia o próprio papel.Ele mal lembrava a motivação que o colocara em movimento, quando aquilo tudo começou, mas sabia que encerrou assim que as coisas voltaram ao normal. Seria fácil esquecer daquela época em que ele tinha seis anos, principalmente agora que sentia
Aquilo não estava certo. Em menos de 48h, Thomaz esteve bêbado. Nesse exato momento, ele também está. Seu olhar procurava por algo no interior reluzente da geladeira, uma garrafa de água para ser mais específico, porém seu olhar pousou em uma latinha de Tiger que ele não tomava fazia meses, não importava de quem eram três dolorosas latas de cerveja, uma agora era dele.— Acho que você precisa pedir permissão para pegar isso aí. — Ele ouviu a voz por trás dele assim que tocou na superfície gélida da latinha.Pedro estava bem atrás dele, com o olhar sob seu ombro, analisando o mesmo cenário que Thomaz: uma geladeira semi vazia de um jovem solteiro cuja renda mensal era duvidosa.Ele tirou a cerveja da prateleira e fechou a porta, virando-se para Pedro que o fitava, esperando uma reação.— Permissão?Pedro sorriu, pousando a mão sobre o ombro de Thom.— Eu tô zoando.Aquela seria a segunda vez que os dois estavam sozinhos no mesmo cômodo e, como da primeira vez, aquilo também fazia borbo
O tempo acontecia diferente para Thomaz, ele sabia. Da mesma maneira que o cérebro, as emoções, o ritmo cardíaco, a voz, o corpo, mudam com o tempo, o tempo também mudava em um ritmo caótico que apenas Thom conseguia notar em seus momentos de não-sobriedade. As vozes do passado reverberavam em sua mente ao longo dos anos, como anotações de coisas que ele deveria lembrar, mas sempre coisas que realmente aconteceram. As lembranças de outros momentos, momentos que ele não vivera, se apagavam como cinzas quando o vento soprava sobre elas. E o vento era Thom – até Pedro e ele se tocarem, naquele momento exato.Foi tudo de repente: em um momento, Thomaz batia o cotovelo na quina da pia, ignorando a dor; no outro, empurrava Pedro contra a parede, distante de si, e o olhava no fundo dos olhos como se nada daquilo fizesse sentido; como se Pedro fosse o elo entre o que ele era e o que ele podia lembrar que foi.Pedro não conseguiu encontrar palavras para questionar Thom sobre sua ação, mas sua
Thomaz bateu à porta do banheiro ao sair, o som seco ecoou entre as ondas da música pop que vinha da sala, e caminhou desconcertado até a sala. Havia algo de irreal na forma como seus pés tocavam o chão. Como se o tempo estivesse maleável, e ele fosse o único que não sabia mais andar sobre ele. Talvez nunca soubesse, afinal de contas.Foi então que encontrou o olhar de Rita. Silencioso, consternado. Os olhos dela não pediam explicação — eles sussurravam compaixão e empatia.Todos voltaram os olhos para o rosto dele primeiro, encharcado da água da pia, mas a verdadeira interrupção na atmosfera veio ao notarem suas mãos, e o vermelho que a coloria.— Thom, — Elise disse, sem desviar os olhos — o que você fez?Thomaz desmoronou. O chão o puxou como se reconhecesse nele uma culpa antiga, que nem mesmo ele sabia que possuía, mas que a aceitou, pois só restava isso a se fazer. Chorou de joelhos. As mãos no rosto, o sujando ainda mais com o sangue de Pedro.Houve uma comoção imediata. Sapato
O relógio de parede marcava seis da tarde e alguns minutos. Havia barulho por todo lado, apesar dos adultos tentarem apaziguar a energia das crianças. Tânia era a responsável por uma das turmas, a que Pedro fazia parte, para ser mais exato. Todos com idade similar: dos 5 aos 8 anos. Às vezes, Pedro parava para observar a mulher e lembrava dos dias que enrolava o cabelo dela nos dedos e às vezes até cheirava, mas há um bom tempo não repetia, parecia “criança demais” para ele. Tânia nunca reclamou.Ele estava cansado. Nem brincou tanto durante a tarde, mas sentia como se tivesse feito. Vez ou outra uma das garotas se aproximava dele para tentar convencê-lo a participar do jogo de “casinha” delas, mas da última vez uma delas o beijou na bochecha e ele fez xixi na calça de tanta vergonha. Não queria ser visto beijando uma menina pelos outros garotos, mas acabou sendo visto fazendo xixi na roupa, e isso foi bem pior. Isso faz tempo, na verdade. Bastante tempo. Foi na mesma época que parou d
Pedro acordou de um sonho. Um sonho extremamente ruim. Suas mãos tremiam e ele suava frio. A cama estava molhada — e não apenas de suor. Queria esquecer o pesadelo, mas agora os lençóis o lembravam dele o tempo inteiro. Olhou ao redor, procurando por Saulo – há quanto tempo eles haviam ido deitar? – e, por fim, recuou em sua busca, sabendo que seria zoado pelo amigo pelo resto da vida, se ele soubesse que, dessa vez, Pedro não fizera xixi apenas nas calças.Levantou-se lentamente, ainda na inocência de seus gestos, retirando os lençóis sem fazer barulho. Queria chorar, mas sua mente insistia: qualquer som, por menor que fosse, poderia acordar as outras crianças. E não havia nada pior do que o bullying que duraria, no mínimo, o resto do ano. E as cervejas? Quantas beberam? Foram poucas, não foi?Nunca pensou no termo “sono pesado”, mas sabia que os únicos adultos que ficavam ali durante a madrugada geralmente tinham isso. Não deveria ter bebido. Sua cabeça fervia com a sensação de arre
Havia uma certa peculiaridade naquele chão, algo que refletia o olhar abatido e silencioso de um jovem de 23 anos prestes a encarar a si e não mais enxergar a mesma pessoa de 15 minutos atrás. Seu rosto, antes pálido, de olheiras notáveis e lábios na maior parte do tempo comprimidos pela insegurança e timidez (com exceção das noites sob o efeito do álcool), de um nariz marcante e cabelos negros ondulados que oscilavam entre o popular e a invisibilidade, agora refletia no piso carmesim sem estes traços. Agora, Thomaz encarava alguém que a princípio ele não conhecia, mas que, depois de um longo silêncio e a pressão do gotejar que ecoava perfurante através do banheiro, ele sabia que só não lembrava. Aconteceu de novo, e dessa vez ele tinha idade o suficiente para entender e refletir acerca disso; idade para não reverberar a dor, mas causá-la, porque não havia nada até aquele momento que o machucaria mais do que ele mesmo. Thomaz quase se confundiria com os azulejos perolados das paredes
O silêncio da rua foi rapidamente substituído por algumas risadas vindo da esquina mais distante, que dava para o fim da cidade. Depois dali, só havia calçamento para se terminar e muita, mais muita grama: o lugar perfeito para um serial killer ou um grupo de jovens alcoólatras como aquele. Não havia muito o que se observar na cidade inteira, em especial durante a noite, quando maior parte dos moradores ou estavam dormindo, ou transando, ou bebendo nos bares não-familiares dispostos a cada meia dúzia de casas, porém, em épocas como essa, onde a noite era tomado por um frio quase doloroso (considerando que o calor dominava durante o dia), uma cerveja gelada às 00h não parecia uma boa ideia. Thomaz sabia que, naquele horário, o único depósito de bebidas que estava aberto não possuía itens baratos, por isso agradeceu internamente quando se lembrou do dinheiro que havia guardado atrás da capinha do celular. Tal qual foi sua surpresa quando, ao tatear o bolso frontal esquerdo, sentiu falt