Havia algo de errado com Thomaz naquele dia, e Elise sabia disso. Seu empenho em manter o rolê nos eixos, os segredinhos com Rita, a maneira com que parecia analisar minuto a minuto quem chegava e quem ia embora. Que aquele grupo era estranho isso era um fato, mas Thomaz estava mais estranho do que o comum, o que poderia ser ignorado, se não fosse a sensação de déjà-vu que vinha sentindo. O caminho até o mercadinho foi marcado pelo som das respirações de Elise e Lucas ao longo do trajeto, o que era de se esperar depois da carga de emoção que ocorreu. Elise ainda se perguntava se podia ter dito o que disse, mas sabia que uma hora ou outra Lucas merecia saber a verdade; a diferença é que saber, naquele exato momento, era arriscar comprometer a diversão para Lucas, que precisaria lidar com a lembrança constante da mãe mentindo para ele há anos, mesmo que para protegê-lo da ideia de ter um pai… pedófilo e abusador. Elise podia sentir o frio tocando sua pele, mesmo por baixo do casaco. E
— Esse é um dos novos. — Ele disse.Thomaz podia não lembrar de tudo que acontecera das outras vezes. Era difícil. Às vezes impossível. Mas, ao longo dos anos, ele aprendeu que, em algum lugar da sua mente, as informações estavam lá. E seu cérebro daria sinais do que deveria estar acontecendo e do que, provavelmente, só está acontecendo naquele momento. Ele nunca soube interpretar totalmente os sinais, mas havia aquela sensação, bem no seu íntimo, de que Hugo não deveria estar ali. — O filho de uma… — Rita não conseguiu terminar a frase. Ela não estava vendo apenas Hugo saindo do carro. Por mais distante que o carro estivesse. No final da rua, há alguns bons 15 metros, Lucas e Elise saíram do mesmo carro, quase no mesmo instante que Hugo. Rita encarou o olhar confuso de Thom, mas não mencionou sua própria confusão. Tudo bem, ela poderia estar no mesmo lugar que Hugo estivesse. Ele era só mais um cara com quem ela teve alguma coisa. — Não vai dar um oi? — Thomaz perguntou, iron
Aquilo nunca foi algo que ele escolheu ou sequer pediu. Estava gravado em seu sangue, ou em sua cabeça; talvez em partes de seu corpo que ele próprio desconhecia. Era algo que se espalhava por tudo ao seu redor: seus amigos, sua família, sua cidade. Na verdade, provavelmente ia muito além, alcançando um raio indefinido... só Deus sabia até onde. O mundo ao redor permanecia imutável. As notícias se repetiam, o álcool continuava com o mesmo teor, a maconha ainda era ilegal onde sempre foi, e as drogas ilícitas, tão comuns, podiam ser encontradas até na esquina da prefeitura. Nada parecia mudar, não realmente. Thomaz, no entanto, era uma ruptura nessa normalidade — não um herói, longe disso, apenas alguém que ainda não compreendia o próprio papel.Ele mal lembrava a motivação que o colocara em movimento, quando aquilo tudo começou, mas sabia que encerrou assim que as coisas voltaram ao normal. Seria fácil esquecer daquela época em que ele tinha seis anos, principalmente agora que sentia
Aquilo não estava certo. Em menos de 48h, Thomaz esteve bêbado. Nesse exato momento, ele também está. Seu olhar procurava por algo no interior reluzente da geladeira, uma garrafa de água para ser mais específico, porém seu olhar pousou em uma latinha de Tiger que ele não tomava fazia meses, não importava de quem eram três dolorosas latas de cerveja, uma agora era dele.— Acho que você precisa pedir permissão para pegar isso aí. — Ele ouviu a voz por trás dele assim que tocou na superfície gélida da latinha.Pedro estava bem atrás dele, com o olhar sob seu ombro, analisando o mesmo cenário que Thomaz: uma geladeira semi vazia de um jovem solteiro cuja renda mensal era duvidosa.Ele tirou a cerveja da prateleira e fechou a porta, virando-se para Pedro que o fitava, esperando uma reação.— Permissão?Pedro sorriu, pousando a mão sobre o ombro de Thom.— Eu tô zoando.Aquela seria a segunda vez que os dois estavam sozinhos no mesmo cômodo e, como da primeira vez, aquilo também fazia borbo
O tempo acontecia diferente para Thomaz, ele sabia. Da mesma maneira que o cérebro, as emoções, o ritmo cardíaco, a voz, o corpo, mudam com o tempo, o tempo também mudava em um ritmo caótico que apenas Thom conseguia notar em seus momentos de não-sobriedade. As vozes do passado reverberavam em sua mente ao longo dos anos, como anotações de coisas que ele deveria lembrar, mas sempre coisas que realmente aconteceram. As lembranças de outros momentos, momentos que ele não vivera, se apagavam como cinzas quando o vento soprava sobre elas. E o vento era Thom – até Pedro e ele se tocarem, naquele momento exato.Foi tudo de repente: em um momento, Thomaz batia o cotovelo na quina da pia, ignorando a dor; no outro, empurrava Pedro contra a parede, distante de si, e o olhava no fundo dos olhos como se nada daquilo fizesse sentido; como se Pedro fosse o elo entre o que ele era e o que ele podia lembrar que foi.Pedro não conseguiu encontrar palavras para questionar Thom sobre sua ação, mas sua
Thomaz bateu à porta do banheiro ao sair, o som seco ecoou entre as ondas da música pop que vinha da sala, e caminhou desconcertado até a sala. Havia algo de irreal na forma como seus pés tocavam o chão. Como se o tempo estivesse maleável, e ele fosse o único que não sabia mais andar sobre ele. Talvez nunca soubesse, afinal de contas.Foi então que encontrou o olhar de Rita. Silencioso, consternado. Os olhos dela não pediam explicação — eles sussurravam compaixão e empatia.Todos voltaram os olhos para o rosto dele primeiro, encharcado da água da pia, mas a verdadeira interrupção na atmosfera veio ao notarem suas mãos, e o vermelho que a coloria.— Thom, — Elise disse, sem desviar os olhos — o que você fez?Thomaz desmoronou. O chão o puxou como se reconhecesse nele uma culpa antiga, que nem mesmo ele sabia que possuía, mas que a aceitou, pois só restava isso a se fazer. Chorou de joelhos. As mãos no rosto, o sujando ainda mais com o sangue de Pedro.Houve uma comoção imediata. Sapato
O relógio de parede marcava seis da tarde e alguns minutos. Havia barulho por todo lado, apesar dos adultos tentarem apaziguar a energia das crianças. Tânia era a responsável por uma das turmas, a que Pedro fazia parte, para ser mais exato. Todos com idade similar: dos 5 aos 8 anos. Às vezes, Pedro parava para observar a mulher e lembrava dos dias que enrolava o cabelo dela nos dedos e às vezes até cheirava, mas há um bom tempo não repetia, parecia “criança demais” para ele. Tânia nunca reclamou.Ele estava cansado. Nem brincou tanto durante a tarde, mas sentia como se tivesse feito. Vez ou outra uma das garotas se aproximava dele para tentar convencê-lo a participar do jogo de “casinha” delas, mas da última vez uma delas o beijou na bochecha e ele fez xixi na calça de tanta vergonha. Não queria ser visto beijando uma menina pelos outros garotos, mas acabou sendo visto fazendo xixi na roupa, e isso foi bem pior. Isso faz tempo, na verdade. Bastante tempo. Foi na mesma época que parou d
Pedro acordou de um sonho. Um sonho extremamente ruim. Suas mãos tremiam e ele suava frio. A cama estava molhada — e não apenas de suor. Queria esquecer o pesadelo, mas agora os lençóis o lembravam dele o tempo inteiro. Olhou ao redor, procurando por Saulo – há quanto tempo eles haviam ido deitar? – e, por fim, recuou em sua busca, sabendo que seria zoado pelo amigo pelo resto da vida, se ele soubesse que, dessa vez, Pedro não fizera xixi apenas nas calças.Levantou-se lentamente, ainda na inocência de seus gestos, retirando os lençóis sem fazer barulho. Queria chorar, mas sua mente insistia: qualquer som, por menor que fosse, poderia acordar as outras crianças. E não havia nada pior do que o bullying que duraria, no mínimo, o resto do ano. E as cervejas? Quantas beberam? Foram poucas, não foi?Nunca pensou no termo “sono pesado”, mas sabia que os únicos adultos que ficavam ali durante a madrugada geralmente tinham isso. Não deveria ter bebido. Sua cabeça fervia com a sensação de arre