Dos três paredões dispostos, cada um a uma distância "confortável", era impossível ouvir apenas um, ainda mais agora que só tinham uma garrafa e meia de vodca entre os amigos de Thomaz (por mais que aquilo fosse uma festa avulsa informal, cada galera que lidasse com as próprias bebidas e drogas). Rita parou um momento na frente do paredão mais próximo, procurando por alguém especifico, até encontrar o dono do carro do outro lado com alguns amigos. Ela passou por um casal aos beijos e puxou conversa com o homem que mais parecia ser uns 10 anos mais velha que ela.
— Oi — Ela chamou. O cara virou-se para ela no mesmo instante. — Você o dono desse som? — Sua voz soava propositalmente sensual.
O cara assentiu, dando um gole na sua longneck enquanto analisava Rita dos pés até a cabeça – a comendo com os olhos, como ela diria posteriormente.
— Será que eu posso conectar meu celular alguns minutos? Prometo que será rápido.
— O que eu ganho em troca?
Elise notou quando Luíza se aproximou em passos rápidos e rígidos de Rita, que agora estava dançando aos beijos com um cara aleatório, ali perto. Ela notara a estranheza da irmã desde que a viu questionar algo a Thomaz e o outro garoto com quem ele estava, mas ainda que tentasse ouvir o que Luiza dizia, nada chegava ao seu ouvido. Quando Luíza se afastou de Rita, ainda nervosamente, Eli se dirigiu até ela.
— O que houve? — Questionou Lucas, enquanto ela se distanciava com afinco.
— Coisa rápida. — Respondeu.
O som era alto o suficiente para que Eli não conseguisse ouvir a irmã até que estivesse perto o suficiente, quando esta estava tentando Rita a ajudá-la a lembrar onde havia colocado algo... algo consideravelmente importante, a julgar pelo nervosismo em sua voz. Eli já sentia o alívio da sua irmã quando pôs a mão no próprio bolso.
— Está procurando isso aqui? — Disse, mostrando a ela o aparelho celular da irmã.
Rita também ficara aliviada. Seu olha, ainda que sem querer, encontrou o do cara que acabara de beijar. No que ele sorriu para ela e se aproximou com intenções claras.
— Quer dar uma volta? — Ele parecia certo de que ela toparia, afinal, para ele, Rita tinha demonstrado todos os sinais de que ficar com ele havia sido bom o bastante para algo mais
não muito longe dali.Ela então segurou a mão direita dele, erguendo-a levemente.
— Não. — Respondeu, consistente, tocando delicadamente no anel dourado no dedo anelar na mão dele, largando-a em seguida e se dirigindo até Otto e Lucas.
Claro, ela havia notado o anel muito antes do primeiro contato, só guardou a informação para quando quisesse se abster. Felizmente, aquele era um dos exemplos de caras que vinham de cidades diferentes apenas pela farra com alguns amigos e, obviamente, por ter maior liberdade de seja lá qual for sua prisão pessoal (na verdade, essa última parte servia para todos ali).
Se aproximando de Otto, Rita abriu um sorriso e questionou:
— Que tal um tiro, garotão? — E então tocou a ponta do nariz dele, sorrindo.
Elise parou ao lado de Rita no mesmo instante, respirando fundo.
— Vou deixar minha irmã e os amigos no início do loteamento, só avisando.
— Que coincidência, vamos dar um tiro longe de todo mundo, podemos aproveitar a carona. — Otto respondeu, sorrindo para Rita.
Lucas não gostava da ideia de o namorado usar certas coisas, por mais que já tivesse experimentado, porém, já tivera esse debate e obviamente perdera.
— Vou ficar aqui com o Saulo. — Disse ele.
Otto o encarou com um olhar questionador.
— Achei que não gostasse dele.
— Não gosto mais ainda dessas coisas... — respondeu, referindo-se as drogas ilícitas.
— Você toma ansiolítico sem prescrição, Lucas. — Rebateu Otto. — E nem mesmo sei onde consegue, já que não é comigo.
— Vão logo! — Exclamou.
Os três se dirigiram até Thomaz, que parecia estar em um diálogo de extrema importância com outro garoto, encostados no carro do cara que Rita ficara. Rafael era mais novo do que Thomaz uns 3 anos, a mesma faixa etária de seus outros três amigos: Luíza – irmã de Elise com quem Rita havia debatido sobre aceitar a presença dela –, Marcos e Elizabeth.
— Thom, — chamou Rita. — Vamos acompanhar os mole... — ela se interrompeu por um momento, já que estava diante de um deles. — A galera até a próxima rua?
Rafael comprimiu o olhar na direção dela.
— Ela tá só zoando. — Disse Thom, apelando pela amiga e então dirigindo sua atenção a ela. — Estamos falando de só acompanhar?
Tanto Rita, como Otto e Eli negaram com a cabeça.
Thomaz, Rita e Otto acompanharam os mais demais até uma rua mais distante de onde todo o rolê acontecia e então se despediram deles, parando ali mesmo enquanto a silhueta dos mesmos desaparecia uma rua depois da outra num piscar de olhos. Elise, por sua vez, seguiu com os demais até um pouco além, por um dos envolvidos ser justamente sua irmã (ainda que esta tivesse insistido para não se importar). Eles já estavam um pouco distantes naquele momento, mas agora em um ritual que se tornara comum nos últimos meses e que garantiam que eles tivessem energia até não terem mais álcool — ou um pouco mais.
Parando em um meio fio da rua onde haviam se despedido, um pouco distante dos paredões e das pessoas, os três sentaram formando um triângulo ao redor da capa do celular de Otto, disposta no chão como uma "mini mesa" como um banquete de açúcar para formigas. Mas não havia nenhuma formiga visível, nem mesmo se tratava de açúcar. Aquela coca não passava da única disponível em toda a cidade que não chegava a ser tão ruim, e Otto sabia disso tão bem quanto qualquer um ali.
— Quem vai primeiro? — Ele perguntou.
Thomaz encarou Rita, que havia passado os últimos 15 minutos esperando por esse momento, mas agora só conseguia pensar em como Otto era tão perfeccionista em dividir o pó branco e moldá-lo em fileiras quase tão perfeitas...
— Okay, eu vou.
Ele pegou a capinha do celular, onde as 6 fileiras de cocaína estavam dispostas na parte traseira. Já havia enrolado uma nota de R$ 20,00 (afinal ninguém ali era rico, Otto já disse uma vez), então colocou o dinheiro próximo a uma das narinas, inclinando-se sobre a sua obra de arte. Após inspirar a primeira fileira, levantou o rosto, ainda com a nota de vinte na narina, e voltou a inspirar novamente, dessa vez com mais avidez.
Rita observou a cena como se esperasse que algo acontecesse no meio tempo em que ele se preparava para a segunda fila, mas ela sabia que nada aconteceria. Era apenas pó.
Após passar todo o equipamento para Rita, ela fez o mesmo processo, mas preferiu jogar para dentro suas duas carreiras de uma só vez, passando a nota em formato cilíndrico pela superfície da capa do celular, no espaço que correspondia às duas linhas brancas destinadas à garota. Otto exclamou algo inaudível, e quando era a vez de Thomaz, este respirou fundo, testando qual de duas narinas estava melhor aquela noite.
Thomaz foi o último a cheirar a pequena linha de cocaína disposta na capa do celular de Otto, mas fora o primeiro a ver, de longe, a silhueta de Elise voltando ao lugar onde haviam se dividido. Seu nariz queimou por alguns segundos, e sua garganta era incapaz de descrever que tipo de remédio explicava seu sabor de maneira tão exagerada, ainda que se assimilasse a todos os remédios que já tivera experimentado. Primeiro ele viu Eli, logo depois alguém não muito distante de sua memória.
— Isso é o Pedro? — Otto disse, no que Thomaz não sabia se era uma pergunta ou uma afirmação. Ele gostaria que fosse apenas uma pergunta mesmo.
Quando Elise e Pedro se aproximaram, todos já estavam de pé e o “serviço” já havia sido concluído.
— Tem mais disso aí? — Pedro perguntou.
— Trinta e é seu, dez e é nosso. — Otto respondeu no mesmo instante.
— Comprei bebida — Disse ele, erguendo a sacola que continha o que parecia ser uma vodca e um refrigerante. — Só me restou vinte.
— Eu tenho troco.
— O Saulo tá aí? — Perguntou Pedro.
— Mais um nariz e o troco volta pro meu bolso.
Rita soltou uma gargalhada, mas logo a interrompeu.
— Promoção: — disse ela. — Comprando o pó, cê leva o Thom.
— RITA?! — Thomaz exclamou.
— Tô brincando, bebê.
Pedro sorriu, timidamente, e após ponderar disse:
— Faz as carreiras.
— Pra já.
Ainda que a timidez de Pedro fosse duvidosa, Thomaz sabia que, ao menos, o incomodo que ele sentira com o que Rita dissera não havia se dissipado. O que ele não sabia, é que Pedro lembraria disso posteriormente.
Otto encontrou Lucas no poste mais distante, enquanto urinava nas plantas, distante de toda a galera que parecia aumentar a cada hora que passava, desde a chegada do primeiro carro – quando eles já estavam lá; eles e apenas eles. — Quer uma ajudinha? — Otto disse há alguns metros de distância, aproximando-se conforme Lucas parecia acomodar seu membro dentro da roupa. Lucas deu uma risadinha sem graça. — Chegou atrasado. Ele virou-se para o namorado, que agora estava cara a cara com ele, respirou fundo e beijou rapidamente Otto nos lábios, afastando em seguida em direção onde a galera estava reunida. — Pera, — disse Otto. — É só isso? — Eu não estou no clima, amor. Ansiedade, acho. — Você não tomou seu remédio, tomou? Lucas respondeu balançando a cabeça negativamente. — Não tomo quando saio pra beber, cê sabe. — Humrum... — Vou tentar falar com a Ri, ela deve ter alguma coisa. Otto se aproximou de Lucas, colocando seu braço ao redor de seu pescoço delicadamente. Os dois se
Aquilo não era exatamente o que Rita esperava para aquela noite, mas havia prometido a Saulo desde o último rolê, quando citou, sem querer que estava disposta a dar ¼ do seu doce a Saulo em troca de uma dose da bebida dele – “péssima troca” Otto dissera no dia, mas Rita amava um gim com tônica, e não era sempre que aquele tipo de bebida surgia no rolê; estavam acostumados com vodca barata, refrigerante e, na maioria das vezes, um energético para segurar a noitada. Eles já estavam distantes de toda a galera e todo o som quando Saulo se dignou a perguntar: — Precisava ser tão longe? Rita sentou-se na grama do campo de futebol que ficava na margem de todo o loteamento, tirando seu celular do bolso, com um embrulho pequeno feito de papel alumínio. Saulo a observou, sentando-se ao seu lado, na esperança de que não estivesse próximo há nenhum formigueiro. — Sabe o que dizem sobre distância? — Ele não respondeu, mas, para Rita, aquilo era esperado. — É só questão de se mover. Saulo esqu
— Verdade ou desafio? — Perguntou Rafael. O garoto tinha a mesma altura que Thom, apesar de ser mais novo. Seus óculos de aro dourado e redondos, refletia as luzes da cidade à distância. Thom gostava dos cabelos castanho-claro de Rafa, e de como os fios desmaiavam sobre seu rosto ocasionalmente. Se ele o beijasse, ele pensou, quando ele o beijasse, colocaria seus dedos naqueles cabelos e sabia que iria sentir como se tocasse o céu - ou os cabelos de Pedro. Ele afastou a ideia da mente quando Rafael repetiu a pergunta. Thomaz hesitou por um instante. Não estava bêbado o suficiente para cumprir qualquer desafio, mas também não queria parecer careta demais; entretanto, aquela seria sua primeira verdade ainda, o que diminuía o peso em sua consciência. — Verdade. Rafael refletiu, não conhecia Thom o suficiente para elaborar uma boa pergunta. — A bebida acaba e essa pergunta não sai. — Elizabeth comentou. — Calma. — Respondeu Rafa. — Então... é verdade que você já foi apaixonado pe
Houve um tempo em que Thomaz temia interações como aquelas. Até os 18 anos, suas amizades eram resumidas em uma ou duas colegas de escola e alguns vizinhos com quem jogava FPS online, mas nada disso se comparava ao que ele passou a ter quando decidiu sair da própria bolha. Tão logo passou a fazer as escolhas que o colocavam de frente à construção de uma identidade própria, acabou por parar nesse momento: lá estava ele, dando toda a atenção do mundo para os recém-chegados amigos de Luiza. Thomaz conhecia a irmã de Elise há um tempo, assim como Marcos; porém, se perguntado, Thom diria que Rafael era o rosto menos conhecido dali. Uma bela de uma mentira, considerando que ele e Lucas já haviam conversado sobre o garoto há um tempo, quando usavam Grindr para julgar os gays do aplicativo (e, vez ou outra, aliviar a tensão). Rafael não parecia diferente da foto, muito dificilmente seria difícil de reconhecê-lo, com ou sem filtro, mas o que chamou a atenção de Thom, quando os quatro se aproxi
Elizabeth está com aquela mesma sensação de ter esquecido algo, mesmo agora, enquanto vai de encontro à concentração de pessoas desinteressantes com gostos por carros de som, luzes coloridas e álcool. O que quer que ela tenha esquecido, não tem relação com aquele momento, ou pelo menos, é isso que espera. Ao imaginar aquele rolê, em sua mente, o lugar estaria praticamente vazio. Ela respira fundo enquanto Marcos parece notar um pouco atrasado que estavam caminhando em direção a um formigueiro de pessoas – e pior: certamente, uma grande maioria desconhecida. — Isso não era para ser um rolê pequeno? A mão de Luiza já estava começando a doer com o peso da sacola que segurava. Os quatro tiveram uma pequena votação para decidir quem levaria as sacolas com bebidas – duas, no total, onde um par de vodca sabor blueberry e um par de refrigerante de limão estavam divididos – e Marcos e Luiza haviam perdido a votação. Não que isso importasse. Naquele momento, ninguém mais do que ela estava est
Thomaz certamente não estava no clima para beber – ainda. Ele tinha em sua cabeça, o pensamento de que aquela rua estaria cheia em pouco tempo, mas deu um longo gole em sua mistura alcoólica quando cogitou a possibilidade de que ele estaria lá. Não um ele qualquer, mas alguém cuja memória Tom não conseguia abandonar. — O que está pensando? — Questionou Lucas, que estranhamente estava com um cigarro aceso entre os dedos. Tom o encarou, alternando o olhar entre o rosto de Lucas e o cigarro, e então de um para o outro. — Eu sei... — disse Lucas, percebendo a estranheza da situação. — É só esse. Vocês dizem que é bom pra ansiedade, né? Eles formavam um semicírculo no chão, mas Rita não estava junto. Ela observava a luz oscilante de um poste ao longe, estado ela há apenas alguns passos do grupo. Otto também não havia voltado de seu momento no “banheiro público”, o que fazia Lucas querer ir ao seu encontro e dar-lhe um tapa. — Não é o cigarro em si, — disse Elise. — É o controle. — Vo
Assim que abriu os olhos, logo que soou o primeiro alarme do seu celular, a primeira coisa que Rita procurou, no criado mudo ao lado da cama, foi seu celular. La tela, a mensagem de Tom, enviada na madrugada daquele mesmo dia, às 4h. “Rolê hoje?”. Rita não iria, pelo menos não até o dado momento em que sua mãe a questionou se pretendia sair. Era um milagre, e posteriormente ela descobriria que, realmente, era um milagre. Não um milagre qualquer, mas considerando que sua mãe raramente a incitava a simplesmente sair, encontrar os amigos e... beber; aquela situação foi, no mínimo, inesperada. Rita só respondeu à mensagem duas horas depois, e passara o resto da manhã e da tarde, ansiosa com a ideia de que hoje poderia encher a cara e curtir as últimas semanas na cidade com os amigos. Fazia uma semana que Rita não saia de casa, a não ser para a universidade. Precisava de permissão maioria das vezes para encontrar com os amigos, e, às vezes, nem podia demorar. A simples ideia de não saber
Aconteceu tão logo Thom reconheceu a silhueta de Elise, Lucas e Otto. O casal sentado em duas cadeiras em frente à conveniência, enquanto Elise, de pé, bebia uma cerveja. Uma Tiger, ele notou de longe. Aquele fora o verdadeiro gatilho - a latinha de Tiger. A memória, inicialmente turva, começou a ganhar forma, cor, sabor... Thomaz sentiu lentamente seu coração palpitar em seu peito, mas ele não conseguia evitar continuar caminhando. Ele estaria em frente à conveniência logo, e precisaria que aquilo desaparecesse o mais rápido possível; que ele lembrasse de tudo de uma vez, ou simplesmente não lembrasse.Thomaz respirou fundo. Há poucos passos de Elise, a garota jogou as tranças, antes sobre seus ombros, para trás, movendo o rosto e vendo, no exato momento em que fez isso, Rita e Thom se aproximar. Ela sorriu e correu para abraçá-los. Sem abraços, Thomaz pediu mentalmente. Sem abraços. Mas era tarde demais. Elise já estava sobre ele. As lembranças veio em uma torrente.Pedro. Pedro.