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PARTE 03: CRIATURA DO ESCURO

Podia-se ver dois metros de faixa de pedestre à frente de Bill e ele estava parado na calçada da avenida Amister, observando aquelas linhas simétricas, por um motivo curioso. Era uma manhã de segunda, dois dias depois da misteriosa morte de seu amigo-cão e da ligação estranha. Bill vesta sua jaqueta de lã favorita, roupa aquela que usava há cinco anos, por todo o outono e princípio de inverno. Ele nunca trocara, afinal, também nunca engordou um quilo sequer. Um carro passou na rua, causando uma corrente de ar e Bill observou a fumaça que saia do escapamento, mas logo sua atenção voltou para as listras da faixa de pedestre. Elas estavam estranhamente irregulares, como se fizessem ondas. Para Bill, pareciam cobras brancas, e isso o deixava assutado. Ele pensou por alguns segundos, que tipo de droga sua mãe poderia ter colocado nos ovos mexidos que comera no café da manhã. Ela sempre lhe preparava algo decente, mas quando estava com pressa, costumava deixar duas fatias de pães cobertas por uma camada fina de geleia de morango, a qual Bill não gostava, mas ela nunca recordava essa peculiaridade do filho. Geleia de morango não é alucinógena. Bill tornou a pensar, na busca lógica de explicações para aquele evento.

— Ah! Bill! — Uma voz chamou sua atenção. Era uma voz de um homem e Bill honestamente sentia que era familiar. O homem estava do outro lado da rua, em um carro grande. Era um um furgão branco com o emblema do correio de Liontown. O garoto apertou os olhos para evitar a luz que vinha daquela direção e colocou a mão na altura da sobrancelha, fazendo sombra o suficiente para notar que quem o chamava era o senhor Smith, o carteiro da cidade. Todos conheciam o Daniel Smith, mas todos também concordavam que ele era sutilmente estranho. Bill desmanchou do rosto, a expressão que era de medo acerca das listras estranhas, para algo como: decepção por ter encontrado Smith. A verdade é que Bill não vai muito com a cara daquele homem de meia-idade, nem de suas histórias fatásticas sobre pescarias em um grande lago no Texas.

— Senhor, Smith. — Bill acenou, agora voltando a encarar a faixa de pedestres e percebendo em alívio, que ela estava absolutamente normal, como deveria ser. Bill olhou para o semáforo verde, como um vaga-lume e deu alguns passos, mas parou no meio da rua quando levantou o rosto e viu que no final da faixa, bem na calçada do outro lado da rua Amister, havia um homem alto, magro e de aparência horripilante. Sua cabeça era grande. Enorme. Talvez tão grande quando um... balão. Sim, ele tinha cabeça de balão e seus olhos amarelos, tendenciosos ao verde (esmeralda), pareciam enfiados no transparente crânio e brilhavam, num encarar desconcertante.

— Mas que p**a merda! — Bill começou a encarar o bicho de volta, não que ele gostasse daquilo. Ele só queria ter certeza que aquela coisa era uma imaginação ou então, um fato perturbador e feio, bem feio. O garoto esfregou os olhos na intenção de fazê-lo sumir, se assim, funcionasse com este suposto pesadelo. Os olhos da criatura vampiresca de dentes longos e unhas compridas, tornaram-se vermelhos, como duas bolas de fogo, e Bill não conseguia sair do lugar. Ele estava petrificado de medo. O bicho magro e pálido começou a abrir a bocarra, tão larga quanto um bueiro. Bill conseguia ver seus seus dentes amarelados e afiados, como caninos de um animal feroz e faminto. Faminto da alma de meninos como Bill.

— Bill... — A coisa horripilante disse, com sua voz fria e distante e Bill a reconhecia. — Bill...

O garoto fechou os olhos e sentiu um impacto como um empurrão, que o arremessou para a calçada. Em seguida, ouviu-se um som de buzina estendida por alguns segundos. Smith estava em cima dele, enquanto o motorista que passava apressado, atravessava a rua em alta velocidade, virando à esquina. Bill quase foi atropelado, se não fosse o reflexo de Daniel Smith em tirá-lo do meio da rua.

— Bill? O que você estava fazendo bem no meio da rua? Você não viu eu chamar? — O homem lhe perguntou, agora aliviado por saber que não havia acontecido nada com o jovem garoto.

— Eu... —  Bill balbuciou o que seria uma resposta, olhando para o fim da faixa de pedestre e vendo que não havia nada, senão duas mulheres surpresas, fuxicando entre elas sobre o que acabara de acontecer. — Eu estou atrasado para o colégio. Eu preciso ir. — Foi a única coisa que Bill respondeu antes de se levantar e sair dali. Ele correu para o outro lado da rua e não estaria distante do Colégio Doctor John Dalton, se mantivesse aquele pico de corrida, com a ajudinha da adrenalina que havia em seu corpo, devido ao susto.

Bill se sentiu cansado, mas aliviado ao chegar em frente ao colégio. Ele percebeu que os preparativos para o Halloween haviam começado. Bill detestava o Dia das Bruxas. Não porque era um feriado repleto de coisas estranhas, mas porque ele sabia que os garotos do colégio iriam iniciar seus rituais de pegadinhas e travessuras. Muitas delas perigosas. Sabia também que a maoria dos enfeites espalhados pelos arredores da instituição seriam postor por alunos e ele estava incluso. Bill percebeu que eles já haviam começado a ornamentação. Não é todo ano que ele vê um esqueleto em cima de um triciclo. Haviam muitas abobóras esoalhadas pelo gramado e cartazes, talvez dezenas deles. Eram sempre em coloração laranja, roxo e preto, e sempre havia uma frase motivacional como: hoje o inferno é em John Dalton, ou, as putas do nono ano não sabem se maquiar. Era certo que qualquer aluno que fosse pego colocando um cartaz com ofensas, seria suspenso por tempo indeterminado, mas eles faziam mesmo assim. Todos os anos. Bill viu que um dos cartazes anunciava uma festa. Isso era legal. Uma coisa boa naquela data esquisita. Uma festa sempre tinha doces e boa música e ele sabia que era o último ano no colégio. Ou fazia algo novo ou sempre seria o bundão de John Dalton.

Ao fundo, no pátio que dava acesso as escadarias principais da instituição, ele avistou sua amiga, Melissa. Ela parecia distante. Era do costume dela estar aérea, mas costumava ficar assim quando os pais brigavam e tocavam no assunto separação. Ela confessou ao Bill de que mudaria de cidade se sua mãe se separasse de seu pai. Ela mudaria sem eles. Era uma fuga. Ela sempre contava isso para ele. Bill entrou no colégio e foi até ela.

— Você está legal? — Perguntou ele, assim que se aproximou mais dela. Ela se virou para ele e com aquele sorriso conhecido, disse que sim, mas completou.

— Agora estou... meu pai surtou com minha mãe. Vai para a casa da vovó. Mas, eu não me importo... — Ela olhou para o sorrisinho quase oculto de Bill e sabia que ele também estava diferente — E você, me parece estar um pouco assustado... — Melissa não poderia deixar de notar qualquer mudança de humor no amigo. Ele sabia de alguma forma que eles conseguiam se comunicar com expressões e isso era a coisa mais legal na relação deles.

— Não. Não é nada não... — Bill não era bom em mentir e saberia, que pelo menos Melissa, cedo ou tarde, perguntaria novamente sobre o que realmente o incomodava. Ela era naquele negoócio de ler cara. Ela daria uma boa detetive.

— Os preparativos para o Halloween começaram tarde este ano, mas acredito que eles manterão a festa — disse ela, não muito empolgada. Festas eram chatas para Melissa. — Você está legal em relação ao seu cãozinho? O que sua mãe disse?

— Ela surtou. Achou um absurdo enterrá-lo no quintal, mas o que eu poderia fazer? Eu não sabia que o Pirulito tinha um convênio funerário canino e se ligasse, poderiam ter recolhido o corpo dele para cremação — ele respondeu gradualmente, achando aquele assunto um pouco surreal.

— Vivendo e aprendendo... — rebateu ela, sorrindo e abraçando-o em seguida. — Vem! Vamos entrar. O sinal já vai tocar. Temos que terminar aquela tarefa pendente.

— Droga... — Bill lamentou, virando o rosto. Não era o tipo de cara que ele faria se tivesse tarefa pendente para ser feita em plena segunda-feira. Era algo mais inquietante.

— O que foi? — Antes que Melissa pudesse obter resposta para sua pergunta, ela identificou naquele instante o que afligia o amigo. Eram Adam Wason e John Backson, dois valentões que repetiam de ano, tão quanto o número de dentes que eles tiravam da boca de garotos como Bill Lewis. Eles eram como pestes no campo de trigo, que acabavam com tudo que tocavam e a função de suas míseras existências era, senão, apodrecer o que era louvável.

— Ora, ora! Veja só! É o esquisito de Doctor John Dalton e a bruxa do subúrbio de Liontown. O que estão fofocando aí, hã? Há novidades sobre quem beijou quem semana passada? — Adam começou seu discurso nojento e era sempre a mesma coisa, sempre carregado de nojo e ódio, e Bill, ah! Ele não podia aguentar tanto desaforo. Melissa respirou fundo. Ela sabia de sua condição. Sabia morar em um lugar humilde pela situação que sua família vinha passando há alguns anos, mas não entendia o que aquele grande saco de estrume de cavalo estava querendo deles.

— Vem! Vamos indo — disse ela para Bill, puxando-o delicadamente pelo braço. Sua atitude era mantê-los distantes e ignorá-los, mas eles sempre tinham um truque para chamar a atenção.

Adam deu uma rasteira em Bill, fazendo-o ir ao chão. Aquilo deixou o Lewis irritado e com uma ira que não cabia dentro de seu corpo franzino. Como se retirasse a coragem e força do íntimo de seu ser, o garoto se virou, fechou seu punho, tornando-o tão duro quanto uma rocha, e socou o canalha do Adam na boca do estômago, fazendo-o sentir a dor por todo seu corpo. Ele perdeu o ar, caindo no chão, enquanto gemia e se contorcia como um verme no asfalto quente. Bill olhou para John, mas o comparsa não disse nada, apenas deu um passo para trás. Adam estava vermelho, como um tomate maduro pronto para ser colhido, e quando retomou o fôlego, ainda no chão, gritou como pôde:

— Bill Lewis seu grande filho da mãe. Eu vou comer seus testículos no café-da-manhã. — O grandalhão disse aquilo estendendo a mão na intenção de alcançá-lo, mas não conseguiu. Bill apenas deu um passo para trás, mas se esbarrou em alguém. Era o diretor do colégio e ele não estava com uma cara amigável.

— Os dois, na diretoria, AGORA!!! — Ele exclamou, apontando o dedo na direção da instituição, enquanto encarava Bill com uma cara rígida.

A sala do diretor Evans era grande, mas sua decoração era esquisita e claustrofóbica. Por ali, tinha mais objetos de horror do que a decoração inteira do colégio. Ele sempre foi um colecionador nato de artigos excêntricos. No ambiente, apenas Bill, Adam e John se encontravam, trêmulos e pensativos, frente à mesa do diretor, enquanto ele buscava em sua gaveta alguns arquivos.

— Preciso notificar aos pais de vocês, pela desordem que causam todo começo ou final de aula — disse ele, já fazendo algumas anotações em um papel e colocando-o novamente na gaveta.

— Mas senhor Evans... — Bill começou sua fala de autodefesa, mas foi interrompido.

— Sem poréns, garoto! — Disse Evans, alto, batendo em sua mesa com uma régua de madeira longa e dura — agora tirem seus traseiros imundos daqui e compareçam à aula de artes da senhora Amie J. McNemar.

— Sim, senhor — os três disseram num tom igualitário, implicando lamento. Mas Bill ainda teve dificuldades de dizer aquilo, pois de certa forma, se sentia injustiçado. Ao se levantar da cadeira, Adam lançou um olhar intenso para seu rival, e Bill sentiu como uma ameaça. E foi exatamente isso que aconteceu quando eles saíram da sala e chegaram ao corredor movimentado de alunos, em busca de suas classes.

— Não acaba por aqui, marica. Se eu te encontrar por aí, vou quebrar suas costelas. — Adam cuspiu suas últimas palavras, como se estivesse decretando uma promessa e Bill pôde senti-la como fato.

As classes de artes da senhora McNemar eram uma verdadeira lição de moral. Ela sempre foi uma grande filósofa e costumava conversar muito, mais do que aplicar exercícios que ela acreditava não serem de grande utilidade. Servia-se exemplar como conselheira e sempre tinha frases de efeito na ponta da língua. De seus vícios, fumava uma carteira de cigarro barato durante um turno. Eram dois, ou três cigarros nos intervalos entre uma aula e outra. Fazia isso sempre quando se sentia ansiosa e inquieta com algo. O cheiro dela era familiar. Se um dos alunos pudesse fechar os olhos, enquanto McNemar passeava pelos corredores, com certeza ele saberia que seria ela a percorrer o ambiente. De situação amorosa, era viúva, por naturalidade da vida, pois seu velho Joe morrera há dois anos de causas naturais. Acerca de sua idade, bem, era desconhecida pelos alunos, mas estipulava-se que ela tinha mais de setenta. Quando perguntavam sobre quando ela iria se aposentar, sua resposta sempre era a mesma. Não havia espaço para outra atividade, senão lecionar, como sempre foi inspirada a fazer todos esses anos.

— Pensei que ia morar na diretoria. — Melissa falou baixo, olhando para os lados, assim que Bill chegou à porta da classe de artes. A cara dele não era a das melhores. Estava se sentindo injustiçado e preocupado com a ameaça de Adam. Ele sempre detestou violência, mas havia um sentimento divergente em seu interior, algo como satisfação de pelo menos ter derrubado o grande valentão.

— Com certeza minha mãe vai receber uma notificação sobre o ocorrido, mas eu não me importo. — Ele falou com um sorrisinho, como se estivesse alimentando um pouquinho mais a sensação de prazer em bater em Adam. Isso estranhamente o conformava.

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