Um pouco de suco de laranja escorreu pela rachadura quase imperceptível que havia na jarra de vidro em formato de abacaxi, que Eva comprou na feira de artigos clássicos. Ela tinha a impressão que aquele objeto, vindo originalmente do Brasil, remetia belos dias de verão na casa de sua avó. O suco, como um rio, fez caminho pela mesa até alcançar o braço de Eva, que estava concentrada lendo uma revista de moda. Ela voltou para a realidade quando sentiu aquele toque gelado, e quando se deu conta do que estava acontecendo berrou o nome de Larry, seu marido, e ele apareceu, tão rápido quanto uma lebre que foge de um predador. Ela pegou a flanela que havia ali na pia e se debruçou sobre a mesa, interrompendo o fluxo.
— O que houve, querida? — Larry perguntou espantado, mas conseguiu identificar o motivo do desespero dela. Ele soltou um suspiro breve ao saber que não era nada de mais. Pelo grito dela, ele jurou que ela tinha visto um intruso.— Aquela senhorinha mentiu para mim... ela havia dito que a jarra estava boa e agora, bom, encontrei uma rachadura nela. — Eva levantou a jarra no ar, desapontada por comprar gato por lebre, enquanto segurava por baixo com a flanela.— Amor... Não era de se esperar. Ela custou cinquenta centavos. Cinquenta centavos, amor! — Ele falava aquilo com a mesma cara que fez quando ela comprou um filme pornô barato no lugar do curso de Ioga indiano que queria. Se ela prestasse atenção no título, teria certeza que isso não aconteceria. Nenhum curso de ioga é intitulado como: posições da lua.Enquanto Larry segurava uma risada ao se lembrar daquele cômico dia, Bill atravessou por debaixo de seu braço, que estava estendido e apoiado na porta da cozinha, e foi até a porta dos fundos. Ele parecia bem apressado. Costumava ser apressado nas manhãs.— Olé! — Larry falou, percebendo a inquietação e pressa do garoto. Não conseguiu nem reparar nas olheiras de Bill. Ele esteve acordado a noite toda, com insônia e com uma sensação estranha. Não poderia dormir imaginando que era visitado por uma entidade chamada Tommy-balão.— Estou indo na casa do Edward e já volto — disse ele, já se distanciando, enquanto sua mãe se controlava para não reclamar sobre sair sem tomar café-da-manhã. A porta bateu, finalizando sua vontade de falar algo.O pensamento predominante na cabeça do garoto, além da preocupação breve sobre o tempo que parecia dizer que ia cair um temporal, era, senão, so-bre a presença estranha daquela coisa. Bill começou a culpar o filme que Edward levara naquela noite, na sessão horror. Não havia lógica, ainda que pensasse por muito tempo, sobre qual seria a relação das apari-ções com o filme, ou com a morte de Pirulito. Algo internamente causava no jovem a sensação de que nada disso cabia no mesmo espaço de lógica.Bill pisou na grama, ignorando o aviso que havia numa plaquinha caída, ao lado de uma mangueira, usada pela mãe do Edward para regar as flores do pátio de entrada, mais cedo. Ele foi até a porta e bateu, cha-mando pelo nome do amigo. Ele bateu mais uma vez, agora com força, como alguém que cobra algo às seis. Era irritante, mas necessário.— Edward. Preciso falar com você — disse ele, em um tom alto e nítido, batendo mais algumas vezes na porta. Diminuiu a intensidade ao ouvir do outro lado, alguns passos que possivelmente vinham em direção da porta.— Bill... —disse Edward, bocejando. Seu cabelo despenteado e sua cara amassada, indicava que ele acabara de acordar. — São 6:00 da manhã, você tem noção?— É... Eu tenho. Agora pega o DVD pirata daquele filme que você levou para casa no último fim de semana. — Bill foi breve, fazendo Edward revirar os olhos e questionar irritado.— O que tá rolando?— Edward. Por favor, apenas me traga DVD — insistiu ele, agora com mais calma, tentando evitar gritar como costuma fazer quando está irritado. E ele estava, desde ontem. Não é de se admirar que pes-soas que passam a noite em claro desenvolvam uma irritabilidade aguda.— Você tá estranho... — Edward assentiu, olhando para a cara de sono dele, e virou-se para dentro de sua casa, onde pôde contemplar o silêncio que fazia. A mãe de Edward havia saído para a padaria. — Eu já vou pegar. Entra aí.Bill deu alguns passos, entrando na casa do amigo, mas não se sentou, apenas olhou para a nova cor da parede da sala, que havia mudado de um verde clarinho como sorvete de limão, para algo mais acinzentado. Ele até gostou, afinal, fazia lembrar da sala da casa de sua avó. Enquanto Edward revirava suas coisas em busca do tal DVD, e pensava consigo mesmo qual era o problema do seu amigo, Bill olhava para suas mãos pálidas, e contava seus dedos. Fazia aquilo quando estava nervoso. Também queria saber se aquilo era um sonho ou ele realmente estava ali, às seis da manhã na casa de Edward Bailey, procurando por um filme pirata em preto e braco. Ele sentia-se como viver um romance de horror, onde o leitor ou leitora, acompanhava seus passos apertados e sufocantes em busca de respostas, enquanto o Tommy-balão sussurrava em seus ouvidos oniscientes, o desfecho dele.— Só você mesmo! — Edward reapareceu com um disco em mãos. Era o DVD do filme. Filme este que Edward confessou ter baixado da internet, o que explicava as propagandas no meio das cenas.— Pega. — Edward acrescentou, estendendo a mão, mas recolheu quando Bill quase o alcançou —, mas me fala antes para quê você quer isso?Bill teve dificuldade de pensar na resposta perfeita e como não tinha uma, inventou algo breve, após dois segundos em silêncio:— Preciso verificar uma coisa... — Talvez aquilo não fosse a mais verdadeira das palavras, mas seria um começo. Ele observou o brilho daquele disco refletir em seus olhos, como um diamante bruto. Edward o entregou e ele recebeu como se pegasse em mãos, a coisa mais misteriosa do mundo. Ele podia sentir o cheiro daquele disco Um aroma metálico. Ele se recordava da voz de Tommy-balão rouca e calma ao seu ouvido, como um velho lobo, pronto a mordê-lo ao ponto de tirar pedaços.Bill manteve o olhar no objeto e em seguida, o quebrou em sua coxa, deixando Edward boquiaberto. Talvez fosse a coisa mais estúpida que ele poderia ter feito, mas as explicações teriam que ser aceitáveis. Naquele exato momento a mãe de Edward chegou à casa, entrando na sala e percebendo o que acabou de acontecer. Sim, ele teria que ter explicações.A velha usina hidrelétrica da cidade, que fora desativada depois da instalação de mais duas novas em Scotland. Mas estas eram usinas nucleares. Não era algo bem visto, mas chegou sorrateiramente a região, como pragas — fato não muito agradável a maioria dos moradores do condado de Delaware. Acreditavam que aquelas usinas seriam em alguns anos, as responsáveis pelos novos casos de câncer. — Já a velha usina, pouco aproveitada, tornou-se abrigo secreto para estudantes foragidos e usuários de droga da fábrica de pneus que havia ali próximo. Era um lu-gar interessante quando ainda era possível ser visto à luz do sol, mas extremamente sombrio a noite, como se ali mesmo, existisse uma zona morta, onde o portal entre esse plano e um outro mundo se abrisse, tra-zendo à tona todas as almas que vinham em busca de prazeres carnais em outros humanos viciados em dro-gas, bebida ou pornografia. Mas para Adam, era o local ideal para praticar tiro ao alvo. Ele costumava ir para lá quase todo dia, semp
(Atenção: esse capítulo contém tema sensível)Um círculo. Havia um halo na lua da silenciosa noite de 14 de novembro de 1977. Um perfeito círculo que formava um anel prateado cintilava no céu, como se Deus olhasse a desgraça logo abaixo. Sob essa luz, haviam corpos. Estavam no estábulo dos Morris. Era o senhor Morris e sua filhinha, Anna de cinco anos. Tudo começou com uma relação peculiar entre um padre e uma devota da cidade. Eles costumavam se encontrar todo domingo, e não era para assistir à missa. Mesmo que soubessem ser errado fazer o que faziam detrás das curtinas da igreja, mantinham uma relação de muita intimidade, até o dia que Gayle Gardner ficou grávida. Ela não esperava aquilo, apesar das aventu-ras sexuais, não acreditava que no auge de seus qua-renta anos pudesse dar à luz a outra criança. Boris Cales, padre e cuidador de idosos da Santa Casa de Misericórdia, não gostou nada da notícia. Para ele, era um sinal de que deveriam ter dado um fim àquela rela-ção. Vindo de um h
Bill gostava do cheiro da lasanha de frango que Eva costumava preparar às terças, porque o fazia lembrar do dia em que eles saíram juntos para a lanchonete do Ed, quando acidentalmente ela queimou o que seria uma torta salgada. Talvez se a torta não tivesse queimado, eles não teriam saído, se divertido e aprendido uma nova receita. Bill acreditava que certas coisas aconteciam por um proprósito e aquele em especial, era o melhor deles. — Nada de celular à mesa — disse Eva, limpando a boca em um guardanapo e encarando-o. Ela estava preocupada com ele. Tinha recebido a notificação do colégio acerca da briga e um telefonema da senhora Bailey informando que ele esteve lá na casa dela, quebrando as coisas do Edward. Ele não estava na melhor das fases. Eva estava no limite e uma mãe no limite sempre faz algo que se arrepende depois, mas não por ser ruim ou má educadora, mas por querer poupar os filhos de desgraças quase inevitáveis.— Eu sei que estou de castigo, mas já terminei de comer —
Nos corredores do colégio, Bill percebeu que todos estavam fantasiados de algo, mas até onde ele se lembrava, o dia das bruxas seria em dois dias.— Doces ou travessuras? — Frank, o amigo beijoqueiro o surpreendeu por trás, mostrando uma cesta vazia. Ele estava vestido de Frankenstein — original...— Você não está um pouco grandinho para isso, Frank? — Bill indagou, olhando para a cara dele. Ele ainda mantinha a cesta estendida, como se esperasse um doce.— Você veio de quê? Diretor Evans? A cara você já tem, falta só o bigodinho... — Frank zombou, olhando para os outros alunos e suas fantasias esquisitas. — Não sabia que você estava tão distante. Hoje é sexta-feira! É dia de festa de halloween do colégio. Olha para a Elle. Ela está de coelhinha sexy.— E daí?— E daí que isso é um sinal. Coelhinhos trepam, zé mané. E muito. Ela sabe como me passar bons sinais — Frank era um retardado na maioria das vezes, até quando estava falando de sua própria namorada.— Isso é estranho — Bill olho
Na avenida Richard Bells, 122, Bill e Edward esperaram em pé. Cada um carregava uma mochila onde colocaram o que acreditavam ser essencial. Bill com a lanterna mágica e um par de estilingue e Edward, uma bombinha de asma e um óculos de mergulho — na verdade, nem ele sabia o que fazia com uma mochila nas costas.Eles esperaram por trinta minutos até se cansarem e se sentarem no chão da calçada frente ao velho posto de combustíveis, onde ainda era possível ver as bombas cobertas por poeira e casas de aranha, também havia uma grande placa onde estavam os preços dos combustíveis há sete anos — eles mudaram consideravelmente.Vez ou outra, Bill olhava para o relógio de pulso e pensava se aquele atraso seria parte da peça em que possivelmente Adam e John estavam prestes a pregá-los.— Olha lá, Bill! — Edward exclamou, cutucando repetidas vezes o braço do amigo e o chamando a atenção para o que estava prestes a acontecer em seguida. Bill estava preparado para o que quer que acontecesse, mas i
Quando o sol não está mais presente no céu e as estrelas são as únicas criaturas a preenchê-lo, brilhando como pequenos insetos luminosos, cheios de alegria pela satisfação da reprodução e execução de suas minúsculas e importantes atividades, é nesse momento, entre a beleza da vida e os mistérios da morte, que coisas estranhas acontecem. Ninguém pode prever o futuro e mesmo se previsse, certamente a vida arrumaria um jeito de mudar tudo, porque a verdade da existência sempre pende ao mistério, mesmo que seja doloroso, feio e assustador. Bill depositara umabomba-relógio sentimentaldentro dele — alguns costumam chamá-laculpa—. Esse sentimento é como um verme que se instala debaixo de sua pele e vai te devorando devagar. Primeiro começa como uma coceira, para depois se espalhar, e quando menos você espera, abre um buraco necrosado e em car
Avenida Clyde, 340 — Liontown. Residência dos Bayer. Melissa estava em seu quarto, arrumando algumas roupas que estavam sobre uma cadeira. Tinha a mania de organização e os dias na cama a deixavam maluca. Fazer aquilo ainda lhe causava uma sensação de controle. Ela estava melhor — assim ela falava, para si mesma, num mantra positivo —. Sentia-se bem em relação às dores que a incomodavam com hora marcada, mas via-se obrigada a tomar remédios para aliviá-las, ainda que não gostasse da ideia. A faixa na cabeça não lhe caia muito bem, mas ela achava até confortável em certos momentos. O silêncio de sua casa quando seus pais e irmãos não estavam mais presentes, era uma espécie de estado emocional da qual ela só vivenciava em raros momentos da vida. Ela podia ouvir o silêncio da rua e como os carros pareciam distan
"Aqueça-se com o calor do bem e jamais sentirá o frio da maldade." — Magno Novaes Bill apertou a mão de John de maneira firme, no fim daquele dia de aula, como se quisesse realmente passar a impressão de que ele desconsiderava qualquer tipo de atitude que o comparsa de Adam Wason, fizera com ele e com os fracotes do colégio Doctor John Dalton. Se ele pudesse dizer em palavras, mandava ele ir tomar banho no rio Wax, e depois mandava ele ir tomar lá mesmo, por ser cuzão por tanto tempo. Bill só esboçou um meio sorriso antes de sair e admirar o céu acinzentado que fazia fora da instituição. O frio se intensificou, mas ainda que ele procurasse, não conseguiu ver um floco de neve cair do céu e tocar sua pele. Ele gostava da sensação da neve tocando sua pele, pois de certa maneira, lembrava do Pirulito, quando ele encostav