Na varanda dos Lewis havia uma mosca-varejeira que ia de lá para cá em rodopios sincronizados. Ela saiu do porão tão rápida, que não parecia um inseto, senão um pequeno e maquiavélico fantasma de barata, pronto a embocar alguém rapidamente. A animalesca criatura voadora chegou à sala atraída por um foco de luz que piscava cintilante, iluminando os jovens que ali estavam — era a luminosidade da TV e estava exibindo o filme clássico de terror: Nosferatu, de 1922.
A mosca chegou ao cômodo naturalmente, como se não se importasse de ser apanhada inesperadamente — era o que costumava acontecer quando insetos de sua infeliz categoria eram visto por humanos — Desengonçada, repousou sobre o pedestal de um abajur branco de seda, que a senhora Lewis ganhara do seu melhor amigo, o carteiro da cidade, Daniel Smith. A mosca esfregou suas patinhas como se estivesse arquitetando um plano maléfico e deu um pequeno pulo, no mesmo instante que os jovens gritaram com a cena de terror que viram na tevê. Ainda inquieta em sua curta vida, subiu mais um pouco no mastro do objeto e como se quisesse beijar a lâmpada que a aquecia, ela voou até ela, se queimando e caindo dura, ali mesmo…
— Filmes de terror antigos são tão exóticos… — disse Melissa, baixo, talvez ao ponto de ser um desabafo para si mesma. Ela falou aquilo apertando o cobertor que cobria seu corpo. De todos ali presente, talvez fosse a única que sentia sensações desagradáveis em uma sessão de horror. Ela era a mais velha do grupo, mas não se importava em demonstrar se sentir amedrontada.
— Bill! Olha para os dentes do desgraçado! Esse deve ser o filme de terror mais tosco e gostoso que eu já vi — acrescentou, Edward, um dos garotos, chamando a atenção do outro que quase cochilava no sofá.
— Ah! Os dentes... Isso, Edward, são realmente feios — respondeu ele, confuso, quase se reconectando ao mundo real. Bill Lewis cedia a casa para os amigos fazerem sessão de filmes clássicos de terror quase todo final de semana. Apesar de ter 17 anos, os pais sempre confiaram no garoto e as viagens de final de semana costumavam dar ao jovem dois dias de pura privacidade e liberdade, virtudes das quais ele tinha orgulho.
— Se você se deitar mais um pouco nesse sofá, você acabará dormindo… — reclamou Edward, jogando uma almofada no amigo e fazendo-o se endireitar. Edward era um nerd amigável e de poucos amigos, mas que sempre se mostrou corajoso em relação a filmes de terror, mas demasiadamente frouxa com os valentões do colegial. Ele usava óculos com lentes grossas e um aparelho extrabucal. Adquirira na última vez que esteve no consultório do Dr. Menezes, dentista esse, que ele odiou logo de cara, afinal de contas, o bullying no colégio triplicou.
No canto do grande sofá, quase que imperceptíveis, dois adolescentes se agarravam, como duas lagartixas na época do acasalamento. Eram Julia e Frank, o casal do grupo de amigos. Juntos, formavam o não muito peculiar grupo de bobões do Colégio Doctor John Dalton, a instituição de ensino mais velha de todo o condado de Delaware.
— Dá para se comer em outro canto? Eu posso ouvir a língua de vocês fazendo contato e isso me dá ânsia de vômito — resmungou Melissa, mas eles não ligaram. Talvez ela estivesse um pouco enciumada, afinal, todos sabiam que Melissa Bayer tinha uma quedinha pelo Frank.
— Vocês estão sentindo esse cheiro? — perguntou Frank, parando por um momento a pegação desenfreada e prestando atenção no silêncio daquela noite de outono. Julia colocou a mão frente a boca e soltou o ar, de modo a checar seu hálito, mas não era sobre isso que Frank se referia.
— A única coisa que posso sentir são os salgadinhos fedidos que Melissa está comendo. Por Deus, eles fedem a mijo de cachorro — retrucou Edward, sorrindo e exibindo seus dentes amarelados e fixos às hastes de metal de seu aparelho. Talvez os salgadinhos da Melissa malcheirosos fossem menos podres que a boca suja do fedelho.
A garota atirou uma almofada na cara dele, retirando com o impacto, os óculos que repousavam sobre seu narigão. Ele recebeu aquilo inesperadamente, quase torcendo o pescoço em noventa graus.
— Dá para parar, vocês dois? — Bill tomou a almofada que Edward tinha em mãos, pronto para arremessar de volta — agora eu estou sentindo…
O anfitrião se levantou do sofá e calçou suas pantufas que tinham um formato de vaquinhas orelhudas, em seguida caminhou até a parede onde havia o interruptor. Tateou até finalmente alcançá-la e por fim, ligá-la, quase na intenção estúpida e irracional de sentir melhor o cheiro.
— Ah! Eu não estou sentindo nada! — Edward disse, tragando o ar para seus pulmões. Suas narinas se dilataram ao puxar o oxigênio.
— Isso sim, definitivamente, é estranho… — Melissa disse me deboche, olhando para o nariz do amigo. Ela se levantou em seguida, sentindo com mais intensidade —, fede a carniça. Talvez um rato morto.
— Que droga! Vou ter que procurar… — resmungou Bill, já se abaixando e olhando debaixo do sofá. De todos os lugares da casa onde se poderia encontrar alguma coisa morta, quase sempre estava debaixo do sofá. É um submundo de poeira e restos de insetos mortos.
— Parece que vêm de outro cômodo — acrescentou Julia, indo até o corredor que dava acesso aos demais cômodos da casa do Bill — sim, talvez da cozinha.
— Vamos até lá então. — Melissa disse, chegando até Julia que agora, evitava puxar o ar para seus pulmões, pois estava cada vez mais fedido.
Os cinco jovens caminharam até a cozinha, com a sensação quase iminente de que o odor estava realmente mais intenso naquela parte da casa. Não era nada agradável...
— E… Vem do porão… — Julia balbuciou suas palavras com uma cara de nojo. Ela detestava porões e com certeza o do Bill não diferiria dos demais
— Que droga! O cheiro aqui tá mais intenso — falou Bill, com desgosto, colocando a manga do seu pijama sobre o nariz na intenção pouco favorável de impedir o mau cheiro, mas ainda era possível senti-lo. Aquilo fedia a podridão, tão malcheiroso como da última vez em que Bill encontrou uma vaca morta na estrada que dava acesso à fazenda de sua avó, ao norte da cidade.
— Vamos lá! Desce lá e veja o que tem — pediu Edward. Bill olhou para o amigo, ainda próximo à porta do porão, com uma cara de quem precisava de coragem e isso ele tinha, mas lhe faltava quando recém assistia filmes de terror, como o que acabara de ver.
— Se eu encontrar o Drácula lá embaixo, eu vou ter um treco — brincou ele, abrindo a porta. O fedor de carniça aumentou. Como a cebola podre que fazia olhos saudáveis implorar por água fresca.
— Urgh! Por Deus, você esconde um cadáver aí embaixo? — Edward debochou, tapando o nariz e a boca com as duas mãos. Se ele prendesse a respiração por mais alguns segundos, com certeza o Bill teria um cadáver em sua casa.
— Que merda! O Pirulito. — Bill falou em desaponto. Ele conseguia ver no final da escada, seu cachorro de estimação, estendido próximo ao último degrau da escada.
— Fala sério! Você se esqueceu do seu cão no porão? — Julia falou aquilo como se condenasse antecipadamente o amigo, pela morte do bicho de estimação.
— Não... Tá louca? Ele estava aqui na cozinha, mais cedo. Não sei como ele foi parar lá embaixo. Ele estava velho e adoentado — Bill lamentou a morte, soltando o ar num suspiro miúdo de culpa por não ter feito muito pelo velho amigo.
— Mais cedo? Ele parece estar há dias aí — Frank retrucou e Bill apertou a mente para tentar se lembrar. A única lembrança era do Pirulito lambendo seu rosto ao acordá-lo de manhã.
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— Eu… — era como uma velha sensação de dejavu da qual ele parecia lembrar de um fato que aconteceu, mas a verdade é que, fora de outra maneira. Bill estava sozinho em sua casa há três dias. — Está bem… Mas então, temos que enterrá-lo — Frank sugeriu, colocando a mão no ombro do amigo, na esperança de lhe passar paz. Ele conseguiu. — Enterrar? — Questionou Bill, profundamente sobre e ação, mas concordou. Ele desceu as escadas em passos lentos, tapando o nariz e procurou por algum lençol velho e uma pá, que ele lembrava estar no canto do porão, do lado das caixas de enfeites de natal. Aquela parte do porão só era acessada uma ou até raramente, duas vezes ao ano. — Você tá demorando — gritou Melissa, não aguentando mais manter aquela porta aberta. — Me dá dois segundos. Já achei o que preciso — o jovem juntou o material, pedindo mentalmente, que se Pirulito estivesse ali, mesmo que no mundo espiritual, desse o fora para que ele pudesse fazer o que tinha de ser feito. Bill se aproxi
Podia-se ver dois metros de faixa de pedestre à frente de Bill e ele estava parado na calçada da avenida Amister, observando aquelas linhas simétricas, por um motivo curioso. Era uma manhã de segunda, dois dias depois da misteriosa morte de seu amigo-cão e da ligação estranha. Bill vesta sua jaqueta de lã favorita, roupa aquela que usava há cinco anos, por todo o outono e princípio de inverno. Ele nunca trocara, afinal, também nunca engordou um quilo sequer. Um carro passou na rua, causando uma corrente de ar e Bill observou a fumaça que saia do escapamento, mas logo sua atenção voltou para as listras da faixa de pedestre. Elas estavam estranhamente irregulares, como se fizessem ondas. Para Bill, pareciam cobras brancas, e isso o deixava assutado. Ele pensou por alguns segundos, que tipo de droga sua mãe poderia ter colocado nos ovos mexidos que comera no café da manhã. Ela sempre lhe preparava algo decente, mas quando estava com pressa, costumava deixar duas fatias de pães cobertas po
McNemar juntou todos os alunos na sala com um breve bater de palmas, como se chamasse a atenção do público para um grande espetáculo, e eles, como se soubessem o que fazer, entraram na classe, sentando-se em seus respectivos lugares. Ela foi breve em anunciar os preparativos para o Halloween. Era de sua responsabilidade a decoração de toda a instituição e fazia por puro passatempo. Ela aproveitava de momentos como aquele, para observar o talento de alguns alunos. Naquele ano, tivera a ideia de fazer algo diferente, como leitora assídua, achou de grande valia inspirá-los a escrever redações sobre lendas urbanas ou histórias fantásticas e assombrosas que aconteceram na região. Sabia que se incitasse a imaginação deles, poderia desenvolver seus lados criativos, e ainda de quebra, ganharia histórias interessantes para ler durante o feriado de Dia das Bruxas, na companhia de seu inseparável gato, Little Ben.Por orientação do diretor Evans, McNemar decidiu criar duplas para a atividade do f
Um pouco de suco de laranja escorreu pela rachadura quase imperceptível que havia na jarra de vidro em formato de abacaxi, que Eva comprou na feira de artigos clássicos. Ela tinha a impressão que aquele objeto, vindo originalmente do Brasil, remetia belos dias de verão na casa de sua avó. O suco, como um rio, fez caminho pela mesa até alcançar o braço de Eva, que estava concentrada lendo uma revista de moda. Ela voltou para a realidade quando sentiu aquele toque gelado, e quando se deu conta do que estava acontecendo berrou o nome de Larry, seu marido, e ele apareceu, tão rápido quanto uma lebre que foge de um predador. Ela pegou a flanela que havia ali na pia e se debruçou sobre a mesa, interrompendo o fluxo.— O que houve, querida? — Larry perguntou espantado, mas conseguiu identificar o motivo do desespero dela. Ele soltou um suspiro breve ao saber que não era nada de mais. Pelo grito dela, ele jurou que ela tinha visto um intruso.— Aquela senhorinha mentiu para mim... ela havia di
A velha usina hidrelétrica da cidade, que fora desativada depois da instalação de mais duas novas em Scotland. Mas estas eram usinas nucleares. Não era algo bem visto, mas chegou sorrateiramente a região, como pragas — fato não muito agradável a maioria dos moradores do condado de Delaware. Acreditavam que aquelas usinas seriam em alguns anos, as responsáveis pelos novos casos de câncer. — Já a velha usina, pouco aproveitada, tornou-se abrigo secreto para estudantes foragidos e usuários de droga da fábrica de pneus que havia ali próximo. Era um lu-gar interessante quando ainda era possível ser visto à luz do sol, mas extremamente sombrio a noite, como se ali mesmo, existisse uma zona morta, onde o portal entre esse plano e um outro mundo se abrisse, tra-zendo à tona todas as almas que vinham em busca de prazeres carnais em outros humanos viciados em dro-gas, bebida ou pornografia. Mas para Adam, era o local ideal para praticar tiro ao alvo. Ele costumava ir para lá quase todo dia, semp
(Atenção: esse capítulo contém tema sensível)Um círculo. Havia um halo na lua da silenciosa noite de 14 de novembro de 1977. Um perfeito círculo que formava um anel prateado cintilava no céu, como se Deus olhasse a desgraça logo abaixo. Sob essa luz, haviam corpos. Estavam no estábulo dos Morris. Era o senhor Morris e sua filhinha, Anna de cinco anos. Tudo começou com uma relação peculiar entre um padre e uma devota da cidade. Eles costumavam se encontrar todo domingo, e não era para assistir à missa. Mesmo que soubessem ser errado fazer o que faziam detrás das curtinas da igreja, mantinham uma relação de muita intimidade, até o dia que Gayle Gardner ficou grávida. Ela não esperava aquilo, apesar das aventu-ras sexuais, não acreditava que no auge de seus qua-renta anos pudesse dar à luz a outra criança. Boris Cales, padre e cuidador de idosos da Santa Casa de Misericórdia, não gostou nada da notícia. Para ele, era um sinal de que deveriam ter dado um fim àquela rela-ção. Vindo de um h
Bill gostava do cheiro da lasanha de frango que Eva costumava preparar às terças, porque o fazia lembrar do dia em que eles saíram juntos para a lanchonete do Ed, quando acidentalmente ela queimou o que seria uma torta salgada. Talvez se a torta não tivesse queimado, eles não teriam saído, se divertido e aprendido uma nova receita. Bill acreditava que certas coisas aconteciam por um proprósito e aquele em especial, era o melhor deles. — Nada de celular à mesa — disse Eva, limpando a boca em um guardanapo e encarando-o. Ela estava preocupada com ele. Tinha recebido a notificação do colégio acerca da briga e um telefonema da senhora Bailey informando que ele esteve lá na casa dela, quebrando as coisas do Edward. Ele não estava na melhor das fases. Eva estava no limite e uma mãe no limite sempre faz algo que se arrepende depois, mas não por ser ruim ou má educadora, mas por querer poupar os filhos de desgraças quase inevitáveis.— Eu sei que estou de castigo, mas já terminei de comer —
Nos corredores do colégio, Bill percebeu que todos estavam fantasiados de algo, mas até onde ele se lembrava, o dia das bruxas seria em dois dias.— Doces ou travessuras? — Frank, o amigo beijoqueiro o surpreendeu por trás, mostrando uma cesta vazia. Ele estava vestido de Frankenstein — original...— Você não está um pouco grandinho para isso, Frank? — Bill indagou, olhando para a cara dele. Ele ainda mantinha a cesta estendida, como se esperasse um doce.— Você veio de quê? Diretor Evans? A cara você já tem, falta só o bigodinho... — Frank zombou, olhando para os outros alunos e suas fantasias esquisitas. — Não sabia que você estava tão distante. Hoje é sexta-feira! É dia de festa de halloween do colégio. Olha para a Elle. Ela está de coelhinha sexy.— E daí?— E daí que isso é um sinal. Coelhinhos trepam, zé mané. E muito. Ela sabe como me passar bons sinais — Frank era um retardado na maioria das vezes, até quando estava falando de sua própria namorada.— Isso é estranho — Bill olho