Conto II
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Em meados dos meus tempos juvenis eu achei ter conhecido alguém que me proporcionaria isso. Achei que finalmente eu estava completa. Ele era o combustível para fazer meu coração entrar em êxtase. Foi numa manhã de domingo que se despertou aquela paixão que, inicialmente miúda e quase desprezível, com o tempo tornou-se tão avassaladora ao ponto de consumir-me. Absurdamente encontrei-me afetada por seu sorriso e seu dom teatral, pois bem, realizava uma apresentação em praça pública naquele dia. Ele era "Jesus".
Inteirei-me do seu ciclo de amigos e tão logo percebi que não podia mais ficar um segundo longe dele. Para mim, tudo nele passou a ser mais atrativo. Entretanto, ele deixou mais que sentimentos em minha vida. Não era como se simplesmente não tivesse deixado nada quando se foi – porque ele se foi. Aquele garoto deixou marcas em mim.
A marca de um beijo.
Foi o único, porém a melhor coisa da minha vida. Não experimentei mais nenhum lábio depois daquele dia, mesmo passando-se seis anos desde a última vez que o tinha visto. Claramente supus que não haveria outro beijo melhor que o seu.
Até hoje guardo essas marcas. Há dias que sinto meus lábios formigarem e quando lhes toco sei a razão. Agora mesmo, enquanto espero uma ambulância qualquer trazer mais um paciente ferido ou jazido, essa sensação não me abandona. Queria eu saber o motivo.
- Para de esfregar os lábios e vamos logo! – Ordena meu colega de trabalho. – O paciente que acaba de chegar está gravemente ferido.
Empurro a maca rapidamente para a porta do pronto-socorro ao passo que a ambulância freia bruscamente em nossa frente. Os paramédicos escancaram as portas e eu sei que realmente foi algo grave.
- Rápido! Ele perdeu muito sangue! – Uma voz grita.
No interior do veículo, um deles aperta o abdômen do paciente possivelmente para estancar o sangue. Imediatamente tiramos o ferido de lado e transferimos para o outro leito. Então, eu entro em choque. É aquele mesmo cabelo. Aquele mesmo rosto angelical que por vezes acariciei. O mesmo homem pelo qual um dia apaixonei-me. O dono do meu primeiro e único beijo.
Ele está na minha frente prestes a morrer e limito-me a pensar em como ele ficou lindo com o passar dos anos. Perco todos os sentidos, embora seja ele o desacordado. Depois de tantas primaveras imaginando nosso reencontro, nunca me ocorreu que ele poderia estar ensanguentado.
- O que você está fazendo? – Meu colega de trabalho grita para mim – Suba agora mesmo nessa maca e pressione o ferimento.
Desperto instintivamente. Não posso perde-lo logo que apareceu. Como naqueles filmes sobre hospitais, eles carregam-me pelos corredores do prédio branco apressadamente em cima de um paciente. Sinto-me a própria Grey!
Depois de cada procedimento médico executado, ele reage bem e abre os olhos. Ainda são como eu lembro, divertidos e devastadores. Ousadamente, acaricio seus cabelos ainda molhados e sorrio afetuosamente.
- Quem é você? – Pergunta ele com sufrágio.
Solto uma risadinha por ouvir sua voz depois de longos anos e por saber que ele está bem. Desde quando o reconheci na ambulância, meu coração não se aliviava nem por um segundo. Só que agora, ele volta a palpitar, bem mais forte.
- Sou sua médica. – Respondo como uma mãe cuidando do filho.
- O que aconteceu comigo? Onde estou?
- Você sofreu um acidente de carro perto da feira de games. Trouxeram você para este hospital.
- Feira... De games?
O meu antigo amor se desesperou e quis levantar, mas logo recuou quando a dor aguda do abdômen abateu-lhe. Ajeitei seu travesseiro e o fiz se acomodar. Acalentei-o, embora a curiosidade para saber o motivo do seu alvoroço pela tal feira tenha me predominado.
Mais tarde, revelou que era designer de games. Lembro que esse era seu sonho de garoto. E mesmo que eu queira saber muito mais sobre o que aconteceu em sua vida após minha partida, meu coração dói por ele não se lembrar de mim. Sinto como se cada dia que pensei nele foi em vão. Tive esperanças à toa.
- Você não me reconhece?
Não suportei guardar esta pergunta para mim. Sufocava-me o ar e fazia eu querer correr dali. Seguro sua mão e não sei qual de nós dois está nervoso, pois sinto nossa conexão trêmula. O garoto, que agora já é um robusto e bonito homem, a minha frente devora minha alma com o olhar. Ele está com o seu sorrisinho de lado que costumava (e costuma) matar-me. Embora eu provavelmente demostre que necessito ouvir algo positivo em sua resposta, ele não exterioriza nada, o que me acarreta uma perda parcial de sanidade. Seria possível eu ainda estar apaixonada por ele?
- Você... – Segurou a palavra tempo o suficiente para fazer suspense, no seu velho hábito – Está mais linda do que eu imaginava, mas eu te reconheço sim.
Quero pular, abraça-lo ou fazer qualquer outra coisa eufórica. Nunca pensei que, mais uma vez, este homem pudesse fazer com que eu me sentisse assim. Meus lábios formigam novamente e não evito o sorriso.
- Achei que nunca mais ia te encontrar. Senti tantas saudades de você. – Ele dispara e de repente a extenuada sou eu.
- Você me procurou?
- Claro que sim! Você ainda me devia um beijo.
Recordo então do nosso penúltimo encontro. Prometi voltar para nossa terra natal com a condição que ele me receberia com um beijo. Eu nunca voltei. Não pude. No entanto, estamos aqui e nada mais me impedirá. Agarro a gola daquela camisola azulada de hospital, que a propósito caía-lhe bem, e beijei-o nervosamente. Se eu achava que nosso primeiro beijo teria sido a melhor coisa da minha vida, enganei-me. Isto sim o é, porquanto, trata-se de um beijo de desespero e necessidade. Algo pelo qual sonhei miseravelmente e aguardei melancolicamente.
Então percebo que, em nenhum momento fui apaixonada por ele. Eu, deleitadamente, sempre o amei. E o que me faltava, enfim, completei.
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Conto III↬❀A inauguração da avenida 6 estava muito movimentada naquela manhã carioca. As pessoas ficaram curiosas para olhar a nova rua que tanto falavam na cidade. Tereza Donabella observava cada detalhe atentamente.A rua era espaçosa, com quatro vias para ir e vir o quanto quisesse. No meio de cada uma delas, haviam imensos coqueiros que pareciam tocar o céu. Canteiros de gramas estavam aos pés deles. Nas margens da avenida, comércios e casas estilo portuguesas numa mistura de cores vibrantes que só o Rio de Janeiro tinha. A maioria das janelas que se abriam para os observadores, eram brancas e de madeira. Quase ninguém estava nelas a olhar o movimento. Que grande desperdício de invenção. Assim pensou Teresa. Para ela, janelas foram feitas para emoldurar a realidade assistível.As pessoas que passavam pela nova avenida vestiam roupas mais europe
Conto IV↬❀É só o meu quarto, é só a luz da televisão, são só as cortinas fechadas. Sou eu: o garoto solitário.Tenho muito dinheiro, uma casa grande e tudo que quero, contudo, em meus míseros dezessete anos, nunca tive irmãos, nem pais - quer dizer, eles estão vivos, mas passam a maior parte do tempo brigando e trabalhando - o que faz-me não ter amor. Na verdade, meu coração capenga nem sabe o que isso significa. Esmoreceu-se todos os meus sentimentos.Faz seis meses que não saio do meu grandioso quarto vazio. A luz do sol parece afetar meus olhos e as pessoas irritam-me. Ainda bem que sou filho da alta sociedade, digo, porventura é mesmo um "bem"?Exaurido, olho o relógio marcar cada segundo até ser seis horas da tarde em ponto. Por que não abrir as janelas? Há tempos que não vejo o trem cargueiro passar no fim da rua, além do mais
Crônica I↬❀Eu já tentei transformar minha garagem num grande picadeiro e meus amigos na minha trupe. Seria eu a malabarista incrível e meu irmão, o palhaço. Nenhum dos meus planos deram certo.Como moradora de cidade pequena, tenho o privilégio de ir todos os anos nos circos que se estalam aqui. Embora não muito grandiosos, cada um é autêntico e possuidor de um segredo próprio. Lembro do meu décimo terceiro aniversário. Comemorei em um circo. Vi um garoto de sete anos equilibrar-se sobre rolinhos brilhantes e uma tábua que mal comportava seu pé. Papai o parabenizou ao fim do espetáculo, todavia, eu quis conhecer melhor aquele guri que tão pequeno já conseguia feitos assombrosamente maravilhosos.Não só o miúdo, mas todo o circo e os artistas. Bisbilhotei cada canto possível da área e fingi ir ao banheiro só para ver as incríveis casas móveis com co
Crônica II↬❀Mais como ela mentia! Não mentir do tipo dizer que vai para um lugar ao invés de outro ou acusar outra pessoa do seu feito. Doralice era uma ótima inventora de histórias aos quais ela pregava ser verdade. Houve um dia em que me contou seriamente da sua viagem a Marrocos onde quase casou-se com um muçulmano rico. O dote não era de fato o que ela valia, assim justificou. Outra vez proseou suas aventuras na casa de doces da sua avó. Dormiu até numa cama de pão de mel!Doralice sabia entreter. Convertia-se numa garota extremamente comunicativa e tagarela assim que via as pessoas. Ao contrário de mim que não dizia mais que cinquenta palavras por dia. Mesmo com personalidades adversas, éramos melhores amigas.Interessante mesmo foi o dia que narrou a maior e mais bem elaborada história que já ouvi: ela conseguia voar. Era sábado e Doralice es
Parte 2 do Conto "Aquelas Janelas"↬❀Faz uma semana desde que eu saí pela primeira vez de casa em seis meses. O motivo? Júlia. Quando eu a vi chorar, algo me impulsionou a correr até ela. Entretanto, tudo isso é novo para mim. Tanto o sentimento que me fez quebrar as barreiras do meu auto-isolamento, quanto fazer outra coisa que não seja dormir e jogar vídeo game. Claro que eu assistia aula pela internet, afinal, preciso concluir o ensino médio, mas eu nunca me preocupei com outra vida a não ser a minha. E, repentinamente, eu virei um stalkeador secreto da casa ao lado. Quer dizer, não tão secreto.Nesse mesmo dia em que fui ao portão de Júlia, ela me encarou bem no fundo dos meus olhos, como se soubesse o tempo todo que eu a observava por mais de quatro meses. Depois disso, exp
Crônica III↬❀Lembro de cortar corações. Não os de carne, expressamente dito – a propósito nunca cortei ou partiu o coração de ninguém, o processo sempre foi inverso, – mas sim de papel. Ajudava alguns colegas na decoração do dia dos namorados no ano passado. Jarli, garota pelo qual tinha tanto apresso e admiração, embora pequena, costumava chamar atenção pelo carisma traduzido numa gostosa gargalhada. Ela era incrível.Não só como aluna, mas como escritora. Ah, se pudessem ler suas histórias, cairiam rendidos aos seus pés. Tamanha façanha arrendara-lhe uma faculdade de jornalismo – não conto as horas para ler uma matéria sua ou ver seu rosto indígena na televisão, emocionando-me.No entanto, o real propósito dessa lembrança é contar o que ela falou de uma professora que compartilhávamos – ela, em Literatura e Gramát
↬❀É sobre o meu primeiro dia de vida. Ainda lembro muito bem dele. Dizem que o bebê chora para abrir os pulmões, mas eles estão enganados. Simplesmente soltamos o choro que guardávamos a nove meses por não ver o rosto da mamãe. Por isso eu chorei, mas logo me acalmei porque eu vi minha mãe e ela era tão linda, até deixou uma lágrima escapulir. Eu também quis fazer isso para não a deixar sozinha naquele momento tão emocionante, no entanto, meu estoque de lágrimas já havia acabado. Sabe como bebês tem um pouco de tudo.No entanto, o que mais me surpreendeu quando descobri o novo mundo é que existia uma pessoa que me amava tanto quanto minha mãe. Era meu pai. Meus olhinhos fraquinhos quase não viram, mas pude sentir seus beijos na minha pele ainda molhada de não sei o quê. Estava eu e mamãe num "passeio" pelo hospital quando ele nos abordou. Ah, como eu amei o papai naquele momento (ainda amou, claro).
Conto IV↬❀A miúda passou a festa inteira sacudindo as sete moedas na mão. Seus quatro reais eram importantes de mais, pois iriam conferir o bilhete para o show de sua banda preferida. Não via a hora de toda aquela liturgia eclesiástica acabar e o jantar ser pulado. Nada podia arrancar-lhe o sorriso ou o entusiasmo.Exceto uma chuva.O céu, vermelho como os cabelos do Chapeleiro Maluco, não lhe fez temer. Os relâmpagos e trovões não lhe assustaram. Ela já tinha tomado a decisão de ir até mesmo na chuva, custasse o que custasse. Entretanto, água torrencial fez com que o show fosse cancelado.E ali, ilhada com algumas pessoas da festa debaixo de uma barraca, pela primeira vez a guria esmoreceu-se.Não bastasse isso, seus amigos que foram impedidos pelos pais de a acompanharem no "passeio