Conto IV
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É só o meu quarto, é só a luz da televisão, são só as cortinas fechadas. Sou eu: o garoto solitário.
Tenho muito dinheiro, uma casa grande e tudo que quero, contudo, em meus míseros dezessete anos, nunca tive irmãos, nem pais - quer dizer, eles estão vivos, mas passam a maior parte do tempo brigando e trabalhando - o que faz-me não ter amor. Na verdade, meu coração capenga nem sabe o que isso significa. Esmoreceu-se todos os meus sentimentos.
Faz seis meses que não saio do meu grandioso quarto vazio. A luz do sol parece afetar meus olhos e as pessoas irritam-me. Ainda bem que sou filho da alta sociedade, digo, porventura é mesmo um "bem"?
Exaurido, olho o relógio marcar cada segundo até ser seis horas da tarde em ponto. Por que não abrir as janelas? Há tempos que não vejo o trem cargueiro passar no fim da rua, além do mais, seria inexistente a chance de sofrer contato humano. A ideia agrada-me.
Abro as cortinas e observo por trás do vidro minha vizinhança que continua igual desde a última vez que a vi, exceto pela casa ao lado. Do segundo andar, vejo perfeitamente o quintal recém reformado... Espera! Não é só isso.
Toda a família aglomerou-se no portão para... Receber uma garota? Ela é nova aqui? Digo, a pergunta mais certa a se fazer é: como pode ser a garota mais linda que já vi? Desperta-me, então, a curiosidade, visto que ela se encontra abatida e até mesmo chorosa quando, na realidade, todos a recebem de braços abertos euforicamente. Contudo, nem mesmo eles parecem de fato estarem felizes. Eu finalmente encontrei algo melhor para fazer em minha decadente vida. Meus vizinhos não tão próximos aguçaram meu lado observador.
Ao decorrer dos dias, a família não muito rica ao lado, mostra que estão fazendo tudo para que a "novata" consiga adaptar-se ao novo ambiente. Depois de duas semanas, posso dizer minimamente suas rotinas.
O pai sai ao nascer do sol para o trabalho.
A mãe leva seus adoráveis pestinhas para a escola.
A doce avó rega as margaridas do jardim.
A nova integrante da casa se esconde de mim. Bom, não é de mim, tecnicamente. Esconde-se do mundo dentro de casa. Ora, o que há de errado?
É numa terça-feira à tarde que a guria resolve aparecer. Não há ninguém em casa e ela apodera-se desconfiadamente da solidão. Põe uma cadeira de descanso embaixo da arvorezinha e puxa um livro da bolsa. A tal garota talvez deva estudar em casa, concluo. Entretanto, é sua forma de franzir a sobrancelha e morder o lábio inferior que me faz não tirar os olhos dela. Familiarmente, é loira, magra e misteriosa. Ela não ri, nem chora, não se diverte, nem se espreguiça. Apenas lê.
No entanto, ajustando os óculos intelectuais e finos, pela primeira vez em quatro semanas ela interrompe sua leitura. O livro é deixado de lado e nasce uma sorridente garota no portão que, mesmo sendo muito alaranjado, não emana tanta luminosidade quanto ela.
Então percebo que realmente é a garota mais linda que já vi.
Apesar da considerável distância, o brilho do seu sorriso choca-se contra mim velozmente e intensamente. Algo estranho fervilha no pé da minha barriga. Seria o almoço que revogava sua estadia? Não, é diferente. Corro para a cama quase enlouquecendo. O que está acontecendo comigo? Não sinto muitas coisas, mas isto de fato é singular. Volto para a janela a tempo de vê-la agarrada ao corpo de um cara. Novamente sinto algo no peito que agora faz meus punhos se cerrarem. Se não fosse a janela de vidro, eu gritaria para ela se afastar. Todavia, é efêmero.
As semanas passam-se e aquele cara continua visitando-a todos os dias. Eu já não consigo mais sair da janela, ela virou meu vício. Sinto a necessidade de olhá-la cada instante possível com medo de que lhe ocorra algo. Mas com o passar do tempo um sentimento de impotência surge, porquanto não posso matar sua solidão. Nem mesmo seu "amigo" parece suprir isso. E hoje, depois de vê-la chorar nos braços dele, não hesito nenhum segundo, apenas corro exasperadamente até o seu portão excêntrico. Não sou corajoso o suficiente para tocar a campainha. Tento em vão ouvir o que conversam.
- Não tem ninguém em casa - Diz a vizinha que brota do nada.
Tomo um susto e afasto-me dela. Faz tanto tempo que não falo com ninguém que já esqueci como é se comunicar. Sinto-me deslocado, embora curioso. Claramente a vizinha não tem conhecimento do casal lá dentro. Levo a crer que nem todos espionam a vida de outrem cada momento do dia. Pigarreio e pergunto com medo:
- A senhora sabe de alguma garota que veio morar aqui recentemente?
- Sei sim. Júlia. Mudou-se para cá a dois meses.
Júlia. Júúúúúlia. O nome soa tão lindo quanto a dona.
- Sabe mais alguma coisa dela? - Pergunto nervosamente.
- Sim. Sua tia contou que seus pais morreram faz mais ou menos três meses. Os parentes mais próximos são estes aqui - aponta para a casa de Júlia - Ela estuda em casa e pelo que vejo é muito triste. Mas como não ser?
Depois de sua pergunta retórica ela vai embora deixando-me ansioso por mais informações. Eu retorno para casa cabisbaixo depois de entender toda sua melancolia. Desejo tanto conhecê-la e... A quem quero enganar! Eu preciso de ajuda, como poderia ajudá-la? Volto meus olhos para aquele pedaço de doçura e quase dou um tombo quando vejo que ela olha diretamente para mim, sem pestanejar. Meu coração salta do peito. Todos os sentimentos estranhos voltam.
Talvez eu goste dela e embora eu queira estar ao seu lado, aquelas janelas - ou uma vida - nos separam.
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Crônica I↬❀Eu já tentei transformar minha garagem num grande picadeiro e meus amigos na minha trupe. Seria eu a malabarista incrível e meu irmão, o palhaço. Nenhum dos meus planos deram certo.Como moradora de cidade pequena, tenho o privilégio de ir todos os anos nos circos que se estalam aqui. Embora não muito grandiosos, cada um é autêntico e possuidor de um segredo próprio. Lembro do meu décimo terceiro aniversário. Comemorei em um circo. Vi um garoto de sete anos equilibrar-se sobre rolinhos brilhantes e uma tábua que mal comportava seu pé. Papai o parabenizou ao fim do espetáculo, todavia, eu quis conhecer melhor aquele guri que tão pequeno já conseguia feitos assombrosamente maravilhosos.Não só o miúdo, mas todo o circo e os artistas. Bisbilhotei cada canto possível da área e fingi ir ao banheiro só para ver as incríveis casas móveis com co
Crônica II↬❀Mais como ela mentia! Não mentir do tipo dizer que vai para um lugar ao invés de outro ou acusar outra pessoa do seu feito. Doralice era uma ótima inventora de histórias aos quais ela pregava ser verdade. Houve um dia em que me contou seriamente da sua viagem a Marrocos onde quase casou-se com um muçulmano rico. O dote não era de fato o que ela valia, assim justificou. Outra vez proseou suas aventuras na casa de doces da sua avó. Dormiu até numa cama de pão de mel!Doralice sabia entreter. Convertia-se numa garota extremamente comunicativa e tagarela assim que via as pessoas. Ao contrário de mim que não dizia mais que cinquenta palavras por dia. Mesmo com personalidades adversas, éramos melhores amigas.Interessante mesmo foi o dia que narrou a maior e mais bem elaborada história que já ouvi: ela conseguia voar. Era sábado e Doralice es
Parte 2 do Conto "Aquelas Janelas"↬❀Faz uma semana desde que eu saí pela primeira vez de casa em seis meses. O motivo? Júlia. Quando eu a vi chorar, algo me impulsionou a correr até ela. Entretanto, tudo isso é novo para mim. Tanto o sentimento que me fez quebrar as barreiras do meu auto-isolamento, quanto fazer outra coisa que não seja dormir e jogar vídeo game. Claro que eu assistia aula pela internet, afinal, preciso concluir o ensino médio, mas eu nunca me preocupei com outra vida a não ser a minha. E, repentinamente, eu virei um stalkeador secreto da casa ao lado. Quer dizer, não tão secreto.Nesse mesmo dia em que fui ao portão de Júlia, ela me encarou bem no fundo dos meus olhos, como se soubesse o tempo todo que eu a observava por mais de quatro meses. Depois disso, exp
Crônica III↬❀Lembro de cortar corações. Não os de carne, expressamente dito – a propósito nunca cortei ou partiu o coração de ninguém, o processo sempre foi inverso, – mas sim de papel. Ajudava alguns colegas na decoração do dia dos namorados no ano passado. Jarli, garota pelo qual tinha tanto apresso e admiração, embora pequena, costumava chamar atenção pelo carisma traduzido numa gostosa gargalhada. Ela era incrível.Não só como aluna, mas como escritora. Ah, se pudessem ler suas histórias, cairiam rendidos aos seus pés. Tamanha façanha arrendara-lhe uma faculdade de jornalismo – não conto as horas para ler uma matéria sua ou ver seu rosto indígena na televisão, emocionando-me.No entanto, o real propósito dessa lembrança é contar o que ela falou de uma professora que compartilhávamos – ela, em Literatura e Gramát
↬❀É sobre o meu primeiro dia de vida. Ainda lembro muito bem dele. Dizem que o bebê chora para abrir os pulmões, mas eles estão enganados. Simplesmente soltamos o choro que guardávamos a nove meses por não ver o rosto da mamãe. Por isso eu chorei, mas logo me acalmei porque eu vi minha mãe e ela era tão linda, até deixou uma lágrima escapulir. Eu também quis fazer isso para não a deixar sozinha naquele momento tão emocionante, no entanto, meu estoque de lágrimas já havia acabado. Sabe como bebês tem um pouco de tudo.No entanto, o que mais me surpreendeu quando descobri o novo mundo é que existia uma pessoa que me amava tanto quanto minha mãe. Era meu pai. Meus olhinhos fraquinhos quase não viram, mas pude sentir seus beijos na minha pele ainda molhada de não sei o quê. Estava eu e mamãe num "passeio" pelo hospital quando ele nos abordou. Ah, como eu amei o papai naquele momento (ainda amou, claro).
Conto IV↬❀A miúda passou a festa inteira sacudindo as sete moedas na mão. Seus quatro reais eram importantes de mais, pois iriam conferir o bilhete para o show de sua banda preferida. Não via a hora de toda aquela liturgia eclesiástica acabar e o jantar ser pulado. Nada podia arrancar-lhe o sorriso ou o entusiasmo.Exceto uma chuva.O céu, vermelho como os cabelos do Chapeleiro Maluco, não lhe fez temer. Os relâmpagos e trovões não lhe assustaram. Ela já tinha tomado a decisão de ir até mesmo na chuva, custasse o que custasse. Entretanto, água torrencial fez com que o show fosse cancelado.E ali, ilhada com algumas pessoas da festa debaixo de uma barraca, pela primeira vez a guria esmoreceu-se.Não bastasse isso, seus amigos que foram impedidos pelos pais de a acompanharem no "passeio
Crônica V↬❀Não sei onde e nem como nasci. Meus pais, desconheço. A única coisa que entendo é que sou um cão de rua.Cresci entre os carros e as ruas, vendo toda espécie de bichos diferentes. Alguns voavam, ou grunhiam, outros tinham patas traseiras compridas e pegajosas e olhos esbugalhados. Conheci muitos como eu que eram bondosos. Quando era apenas um cãozinho, vi alguns deles me ajudarem a virar latas de lixo, mas também apanhei de alguns que nem sequer me deixavam chegar perto de suas "comidas".Virei um cão adulto, magrelo e de olhos tristes, pelo menos foi o que ouvi de uma velhinha na rua 9. Entrei para um bando, quer dizer, não era bem um "bando", estava mais para uma matilha de três cachorros esfomeados.Senti muita fome, passei muito frio. Levei tantos pontapés de pessoas na rua que perdi a
Conto V↬❀Era verão.Clarice abanava o rosto tênue com as mãos tentando aliviar o efeito do calor. Olhava o relógio de pulso a cada momento esperando a hora de partir. Reajustou os óculos no nariz alongado e fingiu ouvir tudo o que o professor dizia.O tempo correu. A turma saiu. Como no seu hábito, esperou a sala esvaziar para só então perambular pela escola, porquanto odiava ouvir o arrastar dos pés daquela massa juvenil vagarosa. Suportaria ser espremida por corpos suados e fedidos, mas não aguentaria ouvir sequer um resvalar de sapatos e chão. Nisso, jogou a mochila nas costas levemente curvas enquanto ganhava o pátio. Fez-se presente, então, uma figura muito engraçada, porém bonita, de um garoto grandalhão. O espinhento surpreendeu Clarice que pensou estar sozinha