Crônica II
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Mais como ela mentia! Não mentir do tipo dizer que vai para um lugar ao invés de outro ou acusar outra pessoa do seu feito. Doralice era uma ótima inventora de histórias aos quais ela pregava ser verdade. Houve um dia em que me contou seriamente da sua viagem a Marrocos onde quase casou-se com um muçulmano rico. O dote não era de fato o que ela valia, assim justificou. Outra vez proseou suas aventuras na casa de doces da sua avó. Dormiu até numa cama de pão de mel!
Doralice sabia entreter. Convertia-se numa garota extremamente comunicativa e tagarela assim que via as pessoas. Ao contrário de mim que não dizia mais que cinquenta palavras por dia. Mesmo com personalidades adversas, éramos melhores amigas.
Interessante mesmo foi o dia que narrou a maior e mais bem elaborada história que já ouvi: ela conseguia voar. Era sábado e Doralice estava muito esmorecida. Acalentei minha amiga que vez ou outra chorava. Foi entre tantos soluços que ela exteriorizou sua angústia: sentia falta do amor da sua vida.
Se não estivesse chorando, poderia jurar que pregava uma peça em mim. Não era cabível uma garota de doze anos já ter encontrado o amor da sua vida, e não só isso, até mesmo perde-lo? Eu nem havia beijado ainda!
Com firmeza nos olhos agarrou meus ombros e disse que era verdade. Que já havia amado e ele a deixou. Pobre Doralice, talvez tenha sido apenas um devaneio. Mas sem embargo, confessou que era o amor da sua vida pois apenas ele conferia-lhe o poder de fazer qualquer coisa, o que incluía voar.
- Até mesmo mostraria agora, se ele estivesse aqui. – Afirmou com pressa.
Mas não o podia. Precisava estar segurando sua mão para tal feito. Foi assim que visitou Marrocos e não se casou. Amava-o e preferiria morrer ao seu lado a viver longinquamente. Emocionei-me, confesso. Ora, era uma bela história de amor.
Entretanto, o que mais agarrava-me a atenção era o seu extraordinário poder de fazer proezas no céu como pássaro. A emoção era tão forte nas suas palavras que eu chegava a pensar que realmente estivesse voando, correndo para o arraial sentindo os cabelos levados pelo vento e tendo como companheiro o amor da sua vida. Seria um sentimento tão esplêndido e ambíguo, se não fosse mentira, claro.
Eu mesma queria que me ocorresse. Nunca tive um amor nem muito menos cheguei a pensar em algum. Até meados do mês passado ainda tinha medo do escuro. Outrora, eu era covarde demais para enfrentar os monstros negros ou um garoto. Os gibis eram mais divertidos, preferia-os. Contudo, ao meu ver, a contadora de histórias parecia ser bastante corajosa – lembrei-me do leão que enfrentou na savana africana. Bastante amável também.
Nostalgicamente, com aquele sorriso de pessoas recém-recuperadas de uma anestesia, Doralice viajou no fundo das memórias e resgatou os momentos mais marcantes dos longos três dias que estava com o amor da sua vida.
- Como pode amar alguém com três dias de conhecido? – Perguntei pasma.
- Não sei, só o amei. – Responde com um suspiro melado.Foi numa noite. Apareceu-lhe a janela que por acaso havia esquecido, e ela nunca deixava a janela aberta. Talvez foi o destino. De certo, deveria ser, pois a garota nunca se esquecerá das mãos quentes do garoto de quinze anos no máximo. Ele fez com que ela viajasse todo o mundo por dois dias.
Todo esse tempo estavam de mãos dadas, mas foi só ela soltar a mão para apanhar uma pouco de água da cachoeira King George Falls, na Austrália, que despencou céu abaixo. Por sorte ele segurou-a e nesse instante Doralice soube que o poder de voar não era dela, mas sim dele, que só o compartilhava com um toque. Uma parte do seu coração ficou triste, mas a outra já o amava ardentemente e sabia que deveria estar com ele o resto da vida.
- Você o beijou? – Perguntei curiosa.
- Não! Nossa, Cristina, isso é nojento!Doralice fez uma careta e eu ri da pirralha confusa. Certamente ela mentia mais uma vez. Pela sua forma incomoda, havia beijado sim o tal garoto voador, só não sabia como confessar. É que o primeiro beijo a gente nunca esquece, porém nunca conta a ninguém sem medos. Sentimos como se fosse pecado ter achado bom. E eu não digo isso porque já o fiz. Longe de mim! Só estou passando o que leio nos livros. No entanto, isso não importa.
- Quando foi que isso aconteceu? – Perguntei mais vez. Estava bastante curiosa naquele dia.
- Ontem.- Ontem?- Sim.- Estranho.- O quê?- Nada.Nada a não ser o fato de Doralice ter passado ontem pela terra dos cangurus e ter amado alguém que a deixou após três dias – será que não aguentou suas tagarelices? Certamente nunca saberei porque partiu – e ao mesmo tempo ter ficado comigo, na escola e em casa, resolvendo continhas de matemática.
Céus, será que eu passei o dia com uma miragem?
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Parte 2 do Conto "Aquelas Janelas"↬❀Faz uma semana desde que eu saí pela primeira vez de casa em seis meses. O motivo? Júlia. Quando eu a vi chorar, algo me impulsionou a correr até ela. Entretanto, tudo isso é novo para mim. Tanto o sentimento que me fez quebrar as barreiras do meu auto-isolamento, quanto fazer outra coisa que não seja dormir e jogar vídeo game. Claro que eu assistia aula pela internet, afinal, preciso concluir o ensino médio, mas eu nunca me preocupei com outra vida a não ser a minha. E, repentinamente, eu virei um stalkeador secreto da casa ao lado. Quer dizer, não tão secreto.Nesse mesmo dia em que fui ao portão de Júlia, ela me encarou bem no fundo dos meus olhos, como se soubesse o tempo todo que eu a observava por mais de quatro meses. Depois disso, exp
Crônica III↬❀Lembro de cortar corações. Não os de carne, expressamente dito – a propósito nunca cortei ou partiu o coração de ninguém, o processo sempre foi inverso, – mas sim de papel. Ajudava alguns colegas na decoração do dia dos namorados no ano passado. Jarli, garota pelo qual tinha tanto apresso e admiração, embora pequena, costumava chamar atenção pelo carisma traduzido numa gostosa gargalhada. Ela era incrível.Não só como aluna, mas como escritora. Ah, se pudessem ler suas histórias, cairiam rendidos aos seus pés. Tamanha façanha arrendara-lhe uma faculdade de jornalismo – não conto as horas para ler uma matéria sua ou ver seu rosto indígena na televisão, emocionando-me.No entanto, o real propósito dessa lembrança é contar o que ela falou de uma professora que compartilhávamos – ela, em Literatura e Gramát
↬❀É sobre o meu primeiro dia de vida. Ainda lembro muito bem dele. Dizem que o bebê chora para abrir os pulmões, mas eles estão enganados. Simplesmente soltamos o choro que guardávamos a nove meses por não ver o rosto da mamãe. Por isso eu chorei, mas logo me acalmei porque eu vi minha mãe e ela era tão linda, até deixou uma lágrima escapulir. Eu também quis fazer isso para não a deixar sozinha naquele momento tão emocionante, no entanto, meu estoque de lágrimas já havia acabado. Sabe como bebês tem um pouco de tudo.No entanto, o que mais me surpreendeu quando descobri o novo mundo é que existia uma pessoa que me amava tanto quanto minha mãe. Era meu pai. Meus olhinhos fraquinhos quase não viram, mas pude sentir seus beijos na minha pele ainda molhada de não sei o quê. Estava eu e mamãe num "passeio" pelo hospital quando ele nos abordou. Ah, como eu amei o papai naquele momento (ainda amou, claro).
Conto IV↬❀A miúda passou a festa inteira sacudindo as sete moedas na mão. Seus quatro reais eram importantes de mais, pois iriam conferir o bilhete para o show de sua banda preferida. Não via a hora de toda aquela liturgia eclesiástica acabar e o jantar ser pulado. Nada podia arrancar-lhe o sorriso ou o entusiasmo.Exceto uma chuva.O céu, vermelho como os cabelos do Chapeleiro Maluco, não lhe fez temer. Os relâmpagos e trovões não lhe assustaram. Ela já tinha tomado a decisão de ir até mesmo na chuva, custasse o que custasse. Entretanto, água torrencial fez com que o show fosse cancelado.E ali, ilhada com algumas pessoas da festa debaixo de uma barraca, pela primeira vez a guria esmoreceu-se.Não bastasse isso, seus amigos que foram impedidos pelos pais de a acompanharem no "passeio
Crônica V↬❀Não sei onde e nem como nasci. Meus pais, desconheço. A única coisa que entendo é que sou um cão de rua.Cresci entre os carros e as ruas, vendo toda espécie de bichos diferentes. Alguns voavam, ou grunhiam, outros tinham patas traseiras compridas e pegajosas e olhos esbugalhados. Conheci muitos como eu que eram bondosos. Quando era apenas um cãozinho, vi alguns deles me ajudarem a virar latas de lixo, mas também apanhei de alguns que nem sequer me deixavam chegar perto de suas "comidas".Virei um cão adulto, magrelo e de olhos tristes, pelo menos foi o que ouvi de uma velhinha na rua 9. Entrei para um bando, quer dizer, não era bem um "bando", estava mais para uma matilha de três cachorros esfomeados.Senti muita fome, passei muito frio. Levei tantos pontapés de pessoas na rua que perdi a
Conto V↬❀Era verão.Clarice abanava o rosto tênue com as mãos tentando aliviar o efeito do calor. Olhava o relógio de pulso a cada momento esperando a hora de partir. Reajustou os óculos no nariz alongado e fingiu ouvir tudo o que o professor dizia.O tempo correu. A turma saiu. Como no seu hábito, esperou a sala esvaziar para só então perambular pela escola, porquanto odiava ouvir o arrastar dos pés daquela massa juvenil vagarosa. Suportaria ser espremida por corpos suados e fedidos, mas não aguentaria ouvir sequer um resvalar de sapatos e chão. Nisso, jogou a mochila nas costas levemente curvas enquanto ganhava o pátio. Fez-se presente, então, uma figura muito engraçada, porém bonita, de um garoto grandalhão. O espinhento surpreendeu Clarice que pensou estar sozinha
Conto VI↬❀Era verão, mas chovia fracamente.Arthur abriu a porta com cautela com medo de que Camila estivesse dormindo, deu a volta na enorme cama e ajoelhou-se de fronte a ela. Os olhos pequenos da moça encontravam-se fechados para o mundo e abertos para uma explosão de emoções. Seu nariz, vermelho como morango, fungava desmanchando totalmente sua farsa de dormência. Mantinha a mão direita embaixo do travesseiro como no seu hábito. Sem pressa, encarou o rapaz, chorosa.Como reação, Arthur ofereceu um singelo sorriso não apenas para alegrá-la, como também por lembrar que Camila insistira tanto em comprar as cochas de cama amarelas que, naquele momento, se encontravam no chão, rejeitadas. Como era possível ela se afadigar tão rápido das coisas, menos dele?Como amava aquela miúda. Lembrou-se de quando
Crônica VI↬❀É impressionante como um simples decair de temperatura faz a massa humana acalmar-se. Não importa o espaço-tempo. É tudo quietude.Na fila do pão, ninguém percebia isso, exceto pelo baixinho – não tão baixo, necessariamente, mas de estatura média era quanto apenas os homens – de casacas negras e pesadas com um tom de seriedade por trás do jaleco branco repousando no antebraço direito.Na padaria silenciosa, duas filas aguardavam a vez. Mas a sua parecia nem mesmo sair do lugar ao passo que a outra dispensava os clientes como mercadorias em pistas de pouso. Bem saberia dizer quanto tempo levaria até comprar o desjejum se não tivesse tão atarefado em observar aquela gente agasalhada. Todos quietos.A maioria deles já era conhecida do moço, mesmo que de vista. Senhoras com netos a tira colo.