Esther gostava de sair e pedalar um pouco, de modo a refrescar a mente. Era uma espécie de meditação sobre rodas.
Naquele dia ela pedalou para longe. Foi em direção ao bairro onde Fernando Rebouças morava com seus pais, e coincidentemente encontrou o pai dele.
Denis Rebouças naquele exato momento, estava sendo expulso de um bar de esquina por dois homens grandalhões. Suas roupas surradas e sujas pareciam dizer que ele bebia há dias. Ele estava aparentemente embriagado naquele momento.
Esther não pensou duas vezes e foi ao encontro do homem, que trocava as pernas ao caminhar.
— Senhor Rebouças. — Ela disse, enquanto se aproximava do homem. O cheiro poderia ser sentido de longe. Ele havia realmente bebido.
Denis olhou rapidamente para trás, assustado.
— Eu não tenho dinheiro para pagar. Vá embora! — Ele resmungou com uma voz rouca e com sinais de embriaguez. Ele continuou a andar, cambaleando para fora da calçada e entrando no meio da rua que estava vazia e sem movimento de carros. Por sorte!
— Sou eu. Esther Ferreira.
Ele parou de caminhar e ficou quieto. Devagar olhou para trás de novo, com curiosidade.
— Está tudo acabado, menina. Eu os perdi. — Ele parecia desgostoso com tudo, retornando a olhar para a frente. Ele caminhou mais alguns passos.
Esther sabia intimamente que ele ainda estava arrasado devido à morte das pessoas mais importantes para ele, mas desconhecia da informação de que ele estivesse bebendo, e em um estado tão desumano.
— Eu sinto tanto... Deixe-me lhe ajudar a chegar até sua casa. — A garota se ofereceu, descendo da bicicleta e acompanhando seus lentos e dessincronizados passos.
— Eu o amo. Não entendo como meu filho teve coragem de me deixar. — Seus olhos marejados demonstravam o sentimento e a aparente mágoa que ele guardava no peito. Denis era sentimentalista.
Esther quase que se adaptou a tristeza dele e não demoraria muito para ela começar a chorar, mas ainda que ela estivesse em ruínas por dentro, por conta de todas as lembranças que vinham em sua mente, sabia que deveria demonstrar segurança primeiro.
— Ele é uma ótima pessoa, e sei que ele deve estar bem, e quer lhe ver feliz novamente. — Ela sussurrou, lançando-lhe um sorriso, mas foi um esboço simples e automático. No fundo, ela nem tinha certeza que ele estava realmente bem. Os olhos de Esther já estavam cheios de lágrimas e uma dor no centro do peito se instalou rapidamente, devido sua mania de segurar o choro e o ar em seus pulmões em momentos de estresse.
— Então você é uma das poucas pessoas que acredita que ele está vivo? — Ele indagou em lamento, apressando o passo. Denis tinha a estranha sensação de que algo de ruim acontecera com o filho, mas era mais suportável acreditar que ele o abandonou, ainda que doesse.
Foi preciso andar por cerca de quatro quarteirões, até chegar a casa onde tudo aconteceu.
— Eu sei que alguém que foge de casa não larga seus sapatos na rua. — Ela continuou, após minutos em silêncio. — O que quero dizer é que o caso não foi investigado a fundo e pode se tratar de um sequestro.
Esther ainda conseguia se recordar como se fosse ontem. Viaturas da polícia espalhadas por toda cidade, equipes de buscas atrás de evidências sobre o suposto desaparecimento de Fernando.
Na noite seguinte ao desaparecimento, lá estava Denis, jogado às escadas, se perguntando onde estaria seu único companheiro.
Foi há exatos oito meses. Em uma passagem de ano que para ela, a partir de hoje, sempre será o dia em que ele sumiu.
Fogos de artifício se tornaram esperanças de luzes incolores.
— Me desculpe, minha filha, mas não posso convidá-la para entrar. — Ele balbuciou suas palavras em vergonha, trazendo-a novamente para esta realidade. Denis que morava sozinho, desde então, não teve o hábito de cuidar de seu próprio lar, em uma inspiração estranha, como se quisesse que o tempo parasse.
— Tudo bem... Eu preciso ir. — Ela tocou a mão dele delicadamente. O homem de olhos cansados retribuiu o toque, com um olhar esperançoso e vivo. De alguma forma Fernando ainda estava por aqui, em algum lugar.
O reencontro com o pai do Fernando acendeu uma chama de dúvida e anseio por respostas que poderosamente a levariam a um achado fundamental.
Esther chegou em sua casa pelos fundos, jogando a sua bicicleta no canto da parede da garagem. Por descuido acabou pisando em uma poça de óleo que vinha vazado do motor do carro de sua mãe há dias.
Ela abriu a porta que estava destrancada e se segurando na parede, retirou seus sapatos sujos e entrou pela cozinha, pendurando as chaves da casa em um pequeno suporte que ficava do lado da geladeira. Esta, ela colocara no canto inferior, próximo ao puxador, um lembrete:
FUI AO SUPERMERCADO. COM AMOR, MAMÃE.
— Espero que me traga meu suco de laranja natural. — Ela sussurrou para si mesma, desgrudando o papelzinho, colando-o em seu dedo e subindo as escadas que davam acesso ao primeiro piso.
Esther ainda estava pensativa. O Fernando parecia ter se estabelecido em cada nível do seu ser, subindo a mente a maior parte do tempo, como um pensamento padrão. Não demorou muito para aquilo chamar sua atenção.
Ela foi até a escrivaninha, onde sua bolsa estava posta, e fuçou as coisas até achar o livro onde havia colocado a foto do seu amigo, Fernando. Livro este que por coincidência ele dera de presente para a garota.
Assim que ela encontrou a foto, a analisou devagar e pensativa.
Seus sorrisos, sua felicidade congelada em um tempo que ela não sabia como acessar novamente.
As imagens mentais já não faziam bem. Todas as lembranças que ela ousava manter em mente, sobre o que viveu, ou deixou de viver com o garoto, deixavam Esther angustiada. Sua mente tentava processar o que poderia ter acontecido, mas sempre falhava. Ela sabia do amor que ela tinha por ele e vez ou outra, ainda se perguntava como tal ser de extrema energia positiva, poderia simplesmente sumir e abandonar a todos, deixando um vazio em seus corações?
— Por que você foi embora sem se despedir de mim, Fernando Rebouças? — Ela sussurrou as palavras, enquanto uma lágrima timidamente rolou pelo seu rosto quente. Fazia tempo que ela não sentia essa saudade forte que maltratava.
O som de uma buzina de carro, a fez despertar deste pensamento profundo, instantaneamente.
Esther se levantou da cama, calçou seus chinelos e se debruçou sobre a janela. Um carro estava estacionado em frente à sua casa. Ela não conhecia aquele automóvel.
Esther secou as lágrimas, colocou a fotografia novamente no livro e desceu as escadas para ver quem era, afinal de contas, eles não estavam esperando nenhuma visita.
Um homenzarrão alto e de porte esportivo, desceu do carro. Ele se olhou pelo espelho do retrovisor e arrumou seu grosso bigode.
— Boa tarde, querida. O Raul está? — Ele perguntou assim que se aproximou dela. Seus óculos escuros ocultavam seu rosto e Esther involuntariamente colocou a mão nos seus também, se certificando de que eles estavam ali. Era tão habituada aos mesmos, que nem se lembrava deles.
— Olá! Não. Ele foi para o Clube dos Jovens. Hoje tem treino. — Ela respondeu olhando para o relógio e vendo, curiosamente, que faltava pouco para seu pai chegar.
— Já está no horário dele chegar. Creio que virá logo em seguida. — Ela completou, gesticulando com as mãos. Esther tinha a impressão de que aquele homem era importante e ele era um tanto familiar.
— Certo. Diga que Artur Vilela esteve aqui e precisa falar com ele urgentemente! — O homem falou, abrindo a porta do carro e entrando no automóvel. Ele deu um sorriso acanhado e estranho. Esther viu um dos seus dentes de ouro que brilhava.
— Certo! — Esther fez uma joinha, segurando um sorriso passageiro, em resposta.
Ela retornou para o interior da casa, olhando mais uma vez pelo olho mágico.
— Artur Vilela? — Ela pensou alto, mas não chegou a nenhuma conclusão.
Esther caminhou em direção a cozinha, quando de repente o telefone que estava no canto da sala, tocou, a dando um leve susto Ela parou, deu meia volta e foi em direção a ele.
— Alô?
— Você se esqueceu? Hoje é o Dia da Amora! — Elis disse do outro lado da linha. Sua voz demonstrava empolgação.
— Ops! Tinha me esquecido! — Esther bateu o telefone e correu para seu quarto, na intenção desesperada de se trocar e ir ao encontro da amiga.
O Dia da Amora acontecia no último sábado do mês, quando elas iam para a sorveteria da cidade, gastar suas economias e debater assuntos recorrentes em suas vidas. Entretanto, não é só isso. O Dia da Amora vai muito além da extravagância de jovens ‘nerds’ consumidoras de doces. Elas decidiram fazer aquilo todo final do mês, há cerca de seis meses, por um propósito: comemorar a amizade, apesar dos complexos giros da vida e isso certamente fazia com que elas esquecessem todos os problemas que eventualmente ocorrem e ocorreram naquele mês.
Esther abriu seu guarda-roupa e não escolheu nenhuma peça. Ela apenas puxou um blusão acinzentado que ganhara de Elis no Natal passado. Ela retocou o último detalhe no cabelo e... Pronta para a ação! A garota pegou sua carteira e foi novamente até a sala, onde sua mãe acabara de entrar com um monte de sacolas nas mãos.
— Preciso do carro urgentemente! — Esther pediu, arrumando o blusão e percebendo haver um pequeno furo.
— Ah! — Ela apenas gritou, subindo desesperadamente as escadas.
— Aonde vai, mocinha? — Sua mãe indagou, observando a cena, ela foi até a cozinha e colocou as compras sobre a mesa.
— Dia da Amora! — Esther gritou do quarto, em um som abafado.
— É o quê? — Sua mãe entendeu algo estranho, e perguntou para ver se tinha realmente entendido.
Esther desceu as escadas novamente, agora com uma camiseta laranja que chamava mais atenção que seus óculos escuros no final do dia.
— Dia da Amora e eu estou tecnicamente atrasada! — Aquilo saiu tão rápido quanto aquelas advertências de comercial de medicamento na TV: ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado.
Sua mãe parou o que estava fazendo por alguns segundos e começou a fitá-la com uma cara de dúvida.
— Dia das Amigas! — Esther corrigiu, sorrindo sem graça. — Por favor. Volto antes das oito.
— Tudo bem! Mas antes coloca aquela bicicleta no devido lugar. Quase que eu a esmaguei sem querer. E não corra muito... Não se esqueça de abastecer! Eu já não faço isso há alguns dias.
Esther se sentou à mesa, esperando o sermão de sua mãe terminar.
— E cadê seu pai? Ele não chegou ainda?
— Não. Deve estar a caminho...
— Aqui está a chave do carro. — Jéssica disse, jogando-a em direção a garota. Ela pegou no ar, fazendo um barulho.
— Obrigadinha. — Esther deu minúsculos pulinhos de emoção.
— E não esqueça...
— Não vá a mais de cinquenta quilômetros por hora. — Esther completou sua frase.
Sua mãe sorriu.
Continue ➜
Você deve estar se perguntando como uma garota que não enxerga cores, principalmente as dos sinais de trânsito, pode dirigir? E a resposta está no sistema em que a mãe de Esther instalou no carro, que narra em tempo real, placas e sinais de trânsito. É a inteligência artificial contribuindo para a inclusão. Frente a sorveteria em que Elis e Esther marcaram o encontro, estava praticamente sem vagas para carros, o que a fez estacionar o automóvel uma rua antes. Esther saiu do carro, ativou o alarme do mesmo e caminhou devagar pela rua, enquanto observava as pessoas. Aquele finalzinho de tarde tinha um brilho diferente. Pessoas sorriam sem esforço. Romances no banco da pracinha ao lado, pareciam se multiplicar. Cães e gatos se entendendo... Curioso. A primavera realmente era uma estação mágica.
DOMINGO É DIA DE FUTEBOL O dia de domingo para Esther era um pouco entediante. Principalmente quando seu pai a chamava para ajudar no campo de treinamento esportivo. Na verdade, ela não fazia muita coisa não. Eram os garotos que tinham que suar a camisa. Não que a maioria gostasse de fazer isso, pois geralmente eles costumavam tirá-la durante as partidas. Domingo de manhã, Esther estava disponível para seu pai. À tarde, estava disponível para a sua mãe e à noite, saíam os três para completar o domingo. Esther engoliu com pressa a última fatia de sanduíche, quando seu pai entrou pela porta da cozinha. — Terminou seu lanche? — Ele indagou, colocando a mochila em cima da mesa. Raul estava vestindo uma camisa regat
Esther terminava de arrumar sua cama quando a sua mãe a gritou, empolgada com algo. Ela correu do quarto, um pouco apressada e apreensiva, chegando à sala. Uma coisa era verdadeira: sua mãe era boa em dar sustos falsos. — Mãe. O que foi? — Ela perguntou, quando a avistou ali mesmo do corredor que dava acesso à sala. Jéssica estava sentada à mesa, lendo um e-mail no computador. Seus óculos na ponta do nariz e sua xícara sobre a mesa à esquerda, indicavam que ela estava em seu dia de pesquisas, a qual ocorria a cada final de mês. — Eu recebi uma proposta para um projeto! — Ela disse, saindo da frente do computador e indo em direção a Esther, dando-lhe um abraço forte que retirou o ar dos seus pulmões.<
PRÉ-FESTA Esther entrou no carro de sua mãe e bateu a porta. Aquele cheiro de rosas pairando pelo ar indicava que ela acabou de passar no lava-jato. — Hum? Batom vermelho. Quem é o garoto? — Jéssica questionou em um tom de sarcasmo, antes de dar partida no automóvel.— Até você, mãe? — Esther revirou os olhos, não acreditando na perseguição e insinuação amorosa por parte delas. — Eu estou brincando. Mas, está lindo! — Jéssica corrigiu o batom na boca da filha. — Obrigada, mãe. — Ela respondeu, mas sua expressão demonstrava chateação. — Trocando de assunto. — Esther iniciou, enquanto se arrumava no banco e colocava o cinto de segurança. — Recebi um e-mail da Dra. Cecília. Ela quer que eu vá conhecer o oftalmologista e genet
Algumas pessoas começaram a dançar. Inclusive o diretor Müller, que mexia todo o seu corpo, como aqueles bonecos infláveis que ficam na frente das lojas, quando há descontos, chamando a atenção das pessoas. Esther observou de longe Fogueira atravessar a porta de entrada. Ele parou, olhando para todos os lados antes de bater seus olhos na garota. Ela percebeu. Ele estava indo em sua direção. — Oi! Esther. — O sorriso dele se mistura às palavras, ecoando aos ouvidos da garota. — Oi! — Aquela palavra saiu arrastada, enquanto ela pensava no encontro inesperado de hoje mais cedo. Ela pensou por dois segundos antes de continuar a conversa com uma pergunta que não se encaixava muito bem: — De boas com seu pai? Fogueira respirou profundamente estampando um sorriso a fim de evitar o nervosismo. — Ele é um homem de poucas palavras. — O garoto balbuciou as palavras, trocando de assunto em seguida. — O pessoal caprichou na decoração. Tá si
O PEQUENO O carro derrapou meio metro antes de parar de vez, chacoalhando-os para a frente. — O que houve? — Esther perguntou, olhando para os lados. — Me segue. — Ele disse ao abrir a porta do automóvel, saindo rapidamente. — Certo. — Ela respondeu, ainda que não pudesse mais ouvi-lo, devido ao barulho da chuva que ainda caía. Esther pegou seu casaco que ali estava próximo, e saiu, passando pela frente do carro e chegando do outro lado da calçada, onde Fogueira já estava. O frio não o intimidava, e antes que Esther pudesse fazer mais uma pergunta sobre o que estava acontecendo, ele disse: — Eu acho que ele está ferido.
Esther Esther se levantou da cama tarde, mas recuperada do intenso e diferente ontem. Ela colocou seus pés no tapete que havia ali ao lado da cama e deu três pulinhos para despertar e matar a preguiça que ainda insistia em segurá-la. Ela soltou um duradouro bocejo. Esther foi até o banheiro, escovou pacientemente os dentes, colocou a lente de contato que reduzia significativamente a luz ambiente, e desceu para a cozinha, preparada para mais um dia na pacata cidade de Monteiro. Dias tão iguais estavam deixando-a maluca, até que sua mãe lhe aconselhou mudar alguns hábitos. Como acordar mais cedo para dar uma volta no quarteirão e aproveitar para pegar as roupas na lavanderia, ou dar alguns pulinhos na revistaria de modo a lhes trazer alguns livros e revistas interessantes que pudessem matar
PRAIA E FAROL Monteiro apesar de suas belas montanhas, e florestas verdes, também tinha incríveis praias ao norte da cidade. Era a cerca de sete quilômetros do distrito onde Esther morava. Tecnicamente ir de bicicleta lhes reservava maravilhosas paisagens. Porém, uma longa pedalada. A tarde se estendia tranquilamente, e por volta das 15h47, enquanto Esther terminava de colocar umas maçãs e uma garrafa de suco de laranja em sua mochila, uma buzina em sineta alertou a chegada do novo amigo. — Filha, o Fogueira chegou. — Sua mãe gritou da varanda. — Já estou indo. — Ela respondeu, terminando de fechar a mochila e arrumando seu chapéu que a protegia do Sol. Naquele momento era fundamental, afinal de contas, ela passaria um tempo significativo exposta à luz externa.