CAPÍTULO 2 - A DOR DE PERDER QUEM SE AMA

***André Burck ***

Acerto um último soco no saco de pancadas e recolho minhas coisas. Tomo um gole generoso de água e seco o suor que escorre pelo meu rosto.

 

—Fala, Dani! — Atendo o telefone assim que vejo o número do meu irmão na tela.

 

—Tá em casa, mano?

 

—Tô saindo da academia. — respondo, já me dirigindo para o elevador.

 

—Beleza, vou pedir uma pizza, tá a fim? — meu irmão me convida com entusiasmo e eu me pergunto como ele pode ser tão diferente de mim, sempre tão alegre e disposto.

 

Penso em recusar, dizer que estou cansado e quero dormir cedo, mas lembro que prometi para a minha mãe que não me afastaria mais da família. Além disso, Daniel, mais do que meu irmão, é meu único amigo.

 

— Cara, você ainda tá aí? — ele chama, me tirando dos meus pensamentos.

 

—Me dá uma meia hora que já desço.

 

—Tava pensando numa desculpa pra não vir, não é? — diz, rindo, me deixando irritado.

 

—Vai se ferrar… daqui a pouco to aí.

 

—Valeu, irmão.

 

Dani e eu moramos no mesmo prédio. Quando me mudei pra essa cidade, escolhi este condomínio por causa da segurança e quando Dani decidiu vir para cá também, indiquei um apartamento que fica logo abaixo do meu.

 

Depois de tomar um banho relaxante e demorado, desço para o andar de baixo e encontro a porta entreaberta. Entro sem bater e meu irmão está na sala, assistindo TV.

 

—Quantas vezes já disse pra não deixar a porta aberta desse jeito? — reclamo e ele revira os olhos.

 

—Que bom te ver também, Déco. — ironiza, usando meu apelido em família — e eu só deixei assim porque sabia que meu lindo irmão estaria aqui a qualquer minuto.

 

Ele ri e se j**a em cima de mim, abraçando apertado.

 

—Para com isso, idiota. Te vi hoje a tarde, não deve estar com tanta saudade assim. — falo, meio irônico, meio sério.

 

—Nos vimos, mas não dei um abraço, estava no meu ambiente de trabalho. Agora estamos à sós, posso extravasar todo o carinho que tenho pelo meu irmão mais velho.

 

—Tá bom, chega de melodrama — digo, tirando os braços deles de cima dos meus ombros e o empurrando pra cair sobre o sofá — que horas chega essa pizza? Tô com fome.

 

Poucos minutos depois a comida finalmente chega e nos sentamos na bancada da cozinha para saborear a pizza metade marguerita e metade calabresa.

 

Comemos em silêncio, cada um absorto em seus pensamentos. Lembro então de perguntar sobre um amigo da família que está nas últimas.

 

—E aí, como está o senhor Matarazzo? Você disse não haver muita esperança para ele.

 

—Pois é, a situação dele é crítica, só por um milagre. — lamenta com sinceridade — Eu pedi que o pessoal do plantão da noite me avisasse sobre qualquer alteração no quadro dele.

 

Meu irmão fala com o olhar perdido enquanto passa o dedo pela borda do copo. Eu compreendo seu semblante pesaroso, afinal, o homem não é um paciente qualquer, é alguém por quem temos muito apreço.

 

—Eu encontrei Gaya hoje — revelo —  Quando estava saindo do hospital, depois que passei pra falar com você.

 

—E aí, falou com ela? Ela te reconheceu?

 

—Não, fazia muito tempo que não nos víamos, eu mesmo quase não a reconheci. Ela tinha cabelos crespos quando eu a vi pela última vez.

 

— Ela se tornou uma bela mulher.

 

—E bastante desatenta também — lembro do esbarrão de mais cedo — acredita que a avoada entrou correndo no hospital, por pouco não caímos os dois no chão.

 

Daniel faz cara de surpresa, mas logo dá uma gargalhada.

 

—Cara, não me diz que você xingou a garota!

 

Faço uma careta e ele ri mais ainda.

 

—Eu só a adverti — justifico — ela poderia ter se machucado ou machucado alguém.

 

—Dá um desconto, mano. Ela tava nervosa, aflita porque eu a chamei para falar sobre a saúde do pai dela.

 

—Tá, posso dizer que depois eu me arrependi de tê-la repreendido — falo e deixo escapar um sorriso ao lembrar do olhar mortal que ela me deu.

 

—Do que tá rindo? — Dani pergunta, curioso.

 

—Da cara que ela fez quando eu chamei a atenção dela por estar desatenta.

 

Conto a ele como foi a reação de Gaya e de como saí sem que percebesse, logo que a amiga dela chegou.

 

—Confesso que fiquei arrasado de ter que ser o portador da má notícia, mas ao mesmo tempo pude ampará-la. — diz, pensativo — Gaya está perdendo a única pessoa que a ama de verdade, afinal, o marido é um babaca e a irmã não parece se importar.

 

Enquanto conversamos,  ajudo meu irmão a retirar o lixo e lavar a pouca louça que sujamos.

 

—Não vai ser fácil encarar sozinha tudo que ela tem pra enfrentar com a morte do pai. — ressalto e ele concorda — Espero que ela seja a mulher corajosa que o pai dela disse que seria.

 

—Segundo o senhor Heriel, Gaya é muito mais forte do que aparenta. — meu irmão fala com convicção. — Vamos pra sala.

 

Sigo até a sala, pronto para ir embora, enquanto ele se j**a no sofá. Apesar da idade, de ser um profissional sério e comprometido, em família Dani nunca deixa de ser um moleque.

 

—Mas Gaya não terá de enfrentar tudo sozinha, estaremos aqui por ela, devemos isso ao senhor Matarazzo. — afirma com seriedade.

 

—Bom, ajudarei no que for preciso, mas não me comprometo a ser babá de ninguém, não vou me envolver mais do que o necessário. — deixo claro para ele entender. — ela já tem idade o suficiente para cuidar de si mesma.

 

Começo a andar em direção à porta sem me importar com o olhar atravessado que ele me da.

 

—Boa noite, irmão. Obrigada pela pizza. — me despeço.

 

Ponho a mão na maçaneta da porta e escuto ele atender o telefone, se levantando e pegando as chaves com carro com urgência.

 

—Ok, tô indo pra aí —  encerra a chamada — Ele se foi — diz olhando para mim e eu nem preciso perguntar de quem estamos falando.

 

****************

 

Na manhã seguinte eu chego no gabinete mais cedo. Dani ficou de avisar o horário do funeral do velho Matarazzo.

 

—Bom dia, Melinda! — cumprimento minha assistente

 

—Bom dia, Vossa Excelência!

 

— Por favor, Melinda, já disse que não precisa me tratar com tanta formalidade aqui no gabinete.

 

—Ah, mas eu acho tão bonito, tão pomposo. — ela argumenta com um sorriso divertido — Além disso, esse é o pronome de tratamento correto para se dirigir a um promotor. 

 

Acho graça do jeito dela, mas não estico o assunto, pois essa é uma discussão quase que diária.

 

Melinda trabalha comigo desde que me mudei e assumi o cargo na promotoria da cidade. Ela é sempre muito tagarela, o que me incomoda um pouco, já que sou introspectivo.

 

Na verdade eu não sou nada sociável, já fui mais, mas de uns anos para cá, com exceção das pessoas da minha família, interagir é um mal necessário e eu evito sempre que posso.

 

—Como está a agenda para hoje, Melinda? Sei que não temos nenhuma audiência, mas tem algo que seja inadiável?

 

—Não, senhor. Precisa remarcar seus compromissos?

 

—Por favor. Vou analisar mais um pouco o processo de amanhã e depois sairei, não volto mais hoje.

 

—Pode deixar, vou remarcar agora mesmo — responde solícita.

 

Algumas horas mais tarde vou ao cerimonial de despedida ao Senhor Heriel Matarazzo. Encontro alguns rostos conhecidos e aceno com a cabeça.

 

Cumprimento Larissa, a filha mais nova do falecido, que chora copiosamente.

 

—Ah, o que será de mim sem meu paizinho. — fala em meio a um prato que soa bastante falso e forçado aos meus ouvidos

 

Do outro lado vejo Gaya. Ela cumprimenta a todos com cordialidade e discretamente seca algumas lágrimas por trás dos óculos escuros.

 

Me aproximo quando ela fica sozinha por alguns instantes.

 

—Sinto muito pela sua perda — falo com a mão estendida para ela.

 

A filha mais velha da família Matarazzo ergue a cabeça, e mesmo que eu não consiga ver seus olhos por trás do acessório, sinto o olhar surpreso sobre mim. Ela aceita meus cumprimentos e o toque de nossas mãos, assim como no hospital, transmite uma corrente elétrica entre nós, ocasionando um ligeiro choque.

 

—Obrigada — responde e tenta disfarçar a urgência de cortar nosso contato.

 

Meneio a cabeça em modo de despedida e me encaminho para onde está meu irmão.

 

—E aí, irmão. — Dani cumprimenta, indicando uma poltrona ao seu lado.

 

—Oi, Dani.

 

—Aquela interação entre vocês foi estranha, parece até que a Gaya se assustou. — fala sussurrando.

 

—Hum… — resmungo — ela deve ter se surpreendido. Afinal, não nos conhecemos e é a segunda vez que nos encontramos em menos de 24 horas. —Talvez.

 

Fico menos de 20 minutos conversando com meu irmão e alguns conhecido.

 

—Eu preciso ir. — aviso e Dani me encara com preocupação.

 

—Você tá bem, Déco? Quer que eu vá com você?

 

—Tá tudo bem. Só preciso sair daqui.

 

Deixo aquele lugar me sentindo sufocado. Não preciso explicar meus motivos, Daniel sabe bem que situações como essa despertam lembranças muito dolorosas.

 

Minutos depois entro em casa e vou arrancando a roupa pelo caminho, direto para o banho. Geralmente não sou bagunceiro, mas neste momento eu não consigo pensar em mais nada.

 

Abro o chuveiro e deixo a água varrer meu corpo, permitindo que algumas lágrimas represadas escorram livremente.

 

— Por quê? — grito e esmurro a parede sentindo meus dedos doloridos, mas nenhuma dor física é maior do que a que sinto por dentro.

 

Fui ao velório por consideração a tudo que senhor Matarazzo fez pela nossa família, por insistência do meu irmão e da minha mãe, mas só eu sei o que me custou estar ali. Aquele ambiente fúnebre trouxe à tona lembranças do dia mais doloroso de toda a minha existência.

 

Há três anos, minha vida perdeu completamente o sentido, as pessoas mais importantes foram arrancadas de mim. Minha esposa Cíntia e nossa filha Manuela, de apenas 1 ano, tiveram suas vidas interrompidas por minha causa.

 

—Era para ser eu, não vocês. — esbravejo.

 

Deixo meu corpo escorregar pelo azulejo gelado e me sento no chão, chorando feito um bebê.

 

Não há um dia sequer que eu não lembre delas, mas em circunstâncias como as de hoje, revivo toda aquela dor novamente.

 

“Desde que elas se foram eu vivo no automático. Minha mãe diz que um dia vai doer menos e eu vou encontrar alguém, refazer a minha vida, mas ela está enganada, isso nunca vai acontecer.”

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