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CONFIAR - Série Recomeços - Livro I
CONFIAR - Série Recomeços - Livro I
Por: Nãna Nascimento
CAPÍTULO 1 - MEU MUNDO COMEÇA A RUIR

***Gaya Matarazzo***

**ALGUNS MESES ATRÁS **

Em meio a tempestade, diante do trânsito caótico, meu motorista dirigia o mais rápido que conseguia. Eu, no entanto, ansiosa e apreensiva, tentava novamente contato com meu marido.

“De novo na caixa postal! Onde Cláudio se meteu? Liguei pra empresa, a secretária disse que ele saiu logo após o almoço. Deve ter desligado o telefone durante a reunião.”

Desapontada, cliquei sobre o nome da minha irmã na agenda e aconteceu a mesma coisa. A mensagem automática mandava para a caixa postal.

“Logo hoje os dois resolveram tomar chá de sumiço”.

Deixei escapar um suspiro resignado, pressionei a têmpora na esperança de amenizar as pontadas que prenunciava uma forte dor de cabeça.

“Que dia, meu Deus, que dia!”

Através da janela, mesmo com a visão embaçada pela chuva torrencial, percebi que estávamos chegando ao destino.

Ciente da triste realidade que teria de enfrentar sozinha nos próximos minutos, me preparei psicologicamente.

“Não pode ser nada bom, os médicos ligaram avisando que meu pai teve uma piora considerável. Ele está internado há quase dois meses, vítima de um AVC.”

O motorista parou o carro sob a área coberta e eu, procurando escapar dos respingos de chuva trazidos pelo vento forte, desci praticamente correndo do veículo.

A porta automática do hospital se abriu, caminhei rapidamente e, como um trem desgovernado, acabei esbarrando em alguém. Perdi o equilíbrio, porém, braços fortes me seguraram e me ajudaram a me manter em pé.

No entanto, a pasta que o homem tinha nas mãos caiu e algumas folhas de papel se espalharam pelo chão.

— Ah, me desculpe. — Pedi, rapidamente me abaixando para ajudá-lo a recolher os documentos.

— Pode deixar que eu junto. Você está bem?

Apesar do tom preocupado em sua voz, ergui a cabeça e encontrei um par de olhos azuis me encarando com uma expressão facial carrancuda.

— Você parece um tanto desatenta, deveria ter mais cuidado, ainda mais entrando em um hospital. Poderia ter se machucado.

— Hei, não foi proposital, ok? Já viu a chuva que tá caindo lá fora? Não precisa chamar minha atenção, não sou criança.

Arqueando as sobrancelhas, o estranho me encarou. Contudo, apesar da postura de rei do gelo, vislumbrei um sorriso sutil e desafiador surgir no canto de seus lábios.

“Debochado!” — pensei em dizer, mas tendo coisas mais urgentes para me preocupar, preferi não esticar a conversa.

Visivelmente irritada, com certa brusquidão, empurrei as folhas que havia recolhido do chão contra seu peito. Num reflexo rápido, ele segurou os papéis e simultaneamente seus dedos tocaram os meus. Senti um leve choque.

— Oh!— exclamei surpresa ao ouvir o imperceptível estalinho, resultante da troca de cargas elétricas entre nossos corpos.

Apesar da expressão imperturbável na maior parte do tempo, era perceptível o olhar escrutinador sobre mim e observei o sulco que se formou em sua testa.

Porém, a carranca não durou mais que alguns segundos, dando lugar a surpresa, como se ao me olhar com atenção tivesse lembrado de algo.

O modo intenso como me observava me manteve presa ao seu olhar, até que uma voz conhecida desviou minha atenção.

— Amiga, que bom que te encontrei aqui, vim assim que ouvi seu recado.

Dei as costas para o rosto de expressão indecifrável do homem para encontrar Cecília, minha melhor amiga, que vinha ao meu encontro de braços abertos.

— Oi Ceci, obrigada por vir. Pensei que não estaria aqui, tá caindo o mundo lá fora.

— Imagina, mesmo se eu estivesse do outro lado do oceano, pegaria o primeiro voo para te encontrar. — disse ela, me abraçando com força — Como está seu pai?

— Ainda não sei — respondi, desfazendo o abraço — estava indo fazer a identificação pra poder subir até o andar da UTI quando atropelei e fui atropelada por este senhor.

Apontei para alguém atrás de mim e Ceci ergueu as sobrancelhas, me olhando com estranheza.

— Quem?

Procurei ao redor e não o vi em parte alguma. Resolvi deixar pra lá.

— Hum, ninguém. Só um cara em quem esbarrei quando entrei. — falei, caminhando para a recepção.

Enquanto a atendente autorizava a entrada, Ceci me encarava com um sorriso malicioso nos lábios.

— Ao menos era bonito?

— Quem? — Perguntei confusa, enquanto jogava a identidade na bolsa e prendia o crachá de visitante na blusa.

— Ah, quem? O trem… dã… — ela riu em deboche — lógico que é o homem que esbarrou em você.

Mesmo que minha amiga estivesse apenas tentando me distrair, seu comentário me deixou desconfortável.

— Ah, não sei, não reparei, tô com a cabeça cheia, Ceci. Além disso, sou casada, não fico reparando em outros homens.— retruquei com a bochechas coradas.

— Pelo amor de Deus amiga, olhar não tira pedaço. Até faz bem pros olhos e pra alma.

— Desculpa, Ceci, hoje realmente não tô muito no clima pra brincadeiras. — respondi com seriedade — Pra ajudar, não consigo falar com Cláudio e nem com Larissa, ambos com telefones desligados.

— Que estranho, aqueles dois vivem com a cara no celular.

— Pois é, Larissa saiu antes do almoço, sem avisar aonde iria, e na empresa a secretária disse que Cláudio saiu para uma reunião externa e não voltou.

—Reunião externa, é? Hum…

—Ah, por favor, não começa. — dei a ela um olhar de advertência.

“Amo amiga, mas não suporto a implicância gratuita que ela tem com meu marido.”

Como se lesse meus pensamentos, Cecília fez um gesto de “tanto faz” com as mãos.

— Ok. Vai falar com o médico, te espero aqui.

Assenti em silêncio e entrei no elevador. Tensa e preocupada, apertava a alça da bolsa enquanto os números dos andares estavam passando pelo painel interno da caixa metálica.

Desci no andar onde papai estava e encontrei Daniel, o médico responsável por atendê-lo.

— Boa tarde, doutor Daniel.

—Olá, Gaya. Venha, estava aguardando por você.

Sua expressão não dizia muita coisa e eu já intuía que a notícia não fosse boa, pois do contrário ele estaria sorrindo, como da última vez em que papai havia apresentado uma leve melhora.

Acompanhei o médico até uma pequena sala no fim do corredor.

— Sente-se, por favor — ele apontou uma poltrona, fechou a porta, sentando-se na poltrona ao meu lado.

— Pode ser direto, doutor, sem rodeios, por favor. Vim preparada para o pior.

Daniel assentiu, dando um sorriso compassivo, procurando as palavras certas.

—Então, Gaya, as notícias realmente não são animadoras.

Ouvi atentamente e não pude segurar as lágrimas enquanto Daniel descrevia como o meu pai piorou nas últimas horas, ele eliminava qualquer fio de esperança que eu podia ter.

Ele permitiu que eu entrasse na UTI por alguns minutos e naquele instante tive a certeza de que estava me despedindo do homem que me criou e me deu o maior amor do mundo.

Não havia o que fazer, a não ser esperar pelo pior, então Daniel aconselhou-me a ir para casa.

No caminho de volta ainda tentei contato com a minha irmã e o meu marido, mas foi em vão.

Cecília se ofereceu para me acompanhar até em casa e durante o trajeto deu alguns telefonemas, cancelando a viagem de trabalho marcada para o dia seguinte.

— Obrigada por ficar comigo, amiga. Mas não quero que se prejudique no seu trabalho por minha causa.

— Imagina! Se não são para essas horas que os amigos servem, não sei para o que é então.

— Você não existe. — dei a ela um sorriso sutil, mas agradecido, enquanto ela segurava afetuosamente minha mão.

Quando o motorista estacionou em frente à porta da mansão, a chuva havia dado uma trégua, embora o dia já tivesse virado noite.

Larissa estava entrando em casa, totalmente despreocupada, seguida pelo motorista, que carregava diversas sacolas de compras, e meu sangue ferveu.

— Como ela pode estar fazendo compras enquanto nosso pai está morrendo?

A pergunta foi retórica, mas Ceci resmungou ao meu lado.

— Essa daí não se importa com ninguém além dela mesma.

Entrei em casa e Larissa estava subindo as escadas.

— Larissa, onde você estava? Tentei falar com você a tarde toda.

Minha irmã parou antes de avançar mais um degrau e lentamente se virou para olhar em minha direção.

— Eu te devo satisfação por um acaso? Minha certidão de nascimento comprova que sou de maior idade.

— Não, você não deve. — falei irritada — Porém, nosso pai está mal no hospital e você por aí, passeando, nem parece se importar.

Com um riso sarcástico, a garota mimada cruzou um braço sobre o peito e com o outro, batia o dedo no queixo.

— Estou aqui, puxando pela memória, quando foi que eu me tornei médica e não lembro?

Seu tom de deboche me deixou irada, dei um passo à frente, prestes a subir as escadas. No entanto, afrontosa como sempre, ela desceu os poucos degraus que nos separavam e me encarou de nariz empinado e mãos na cintura.

— Vai fazer o que, irmãzinha, me bater?

— Larissa, hoje não é um bom dia para me provocar — respondi, cerrando os punhos para conter a indignação — Papai não está nada bem, doutor Daniel descartou qualquer esperança — tentei fazê-la entender a gravidade da situação, mas foi em vão.

— Bom, nesse caso, nem sendo médica adiantaria, né? Só sendo milagreira, mas infelizmente não sou. Se fosse, já teria feito você sumir das nossas vidas há muito tempo.

Sem conseguir controlar a raiva, soltei a mão no rosto dela, desfazendo o sorriso cínico e deixando uma marca vermelha em sua pele clara.

Larissa levou uma mão na bochecha, com os olhos chispando de raiva e o dedo em riste ela me ameaçou.

— Isso vai ter volta.

Prevendo uma confusão maior, Cecília se colocou entre nós e me puxou para a sala.

— Ela não vale seu tempo, Ga. Se ela não quer se despedir do pai, quem perde é ela, não você.

Minha irmã continuou me fitando com sangue nos olhos por alguns segundos. Depois nos deu as costas e seguiu para o andar de cima.

Ceci pediu à nossa governanta, que assistiu aquela cena deprimente com pavor, para trazer água.

— Sei que sua irmã mereceu e eu teria feito até pior no seu lugar. Mas agora, você precisa se alimentar, precisa estar forte para encarar o que vem pela frente.

— Obrigada, amiga, mais tarde como alguma coisa. Ainda estou com os desaforos da Larissa entalados na garganta.

Cecília se esforçou para me distrair pelo resto da noite. Já era tarde quando o barulho na entrada chamou nossa atenção e Cláudio surgiu na porta da sala.

— Boa noite. — ele cumprimentou friamente.

— Bom, amiga. Agora que você tem companhia, vou indo. — Ceci avisou, se levantando e passando a mão na bolsa.

Ela nunca escondeu a antipatia por meu marido e assim como meu pai, tentou por diversas vezes me convencer a não casar. Ainda assim, Cláudio sempre a tratou com educação.

— Não seja por minha causa, eu vou subir pra tomar banho. — ele retrucou.

— Seria hipócrita se dissesse que não é porque você chegou. Mas, acima de qualquer coisa, é porque sua esposa precisa de você nesse momento.

Cecília enfatizou a palavra “precisa” e ele parou ao pé da escada, se virou e olhou para mim, confuso.

— Tchau, Cláudio.

Num tom seco, ela se despediu e caminhou para a porta. Eu a acompanhei e nos despedimos com a promessa de que ligaria assim que tivesse novidades sobre o estado de saúde de meu pai.

Quando retornei para sala, encontrei Cláudio se servindo de uma dose generosa de whisky.

— Do que sua amiga tava falando.

Ele perguntou sem olhar diretamente para mim e eu o encarei por alguns segundos, incrédula.

— Como assim, Cláudio? Você não sabe que meu pai está no hospital e que o estado dele é crítico? Onde você se meteu a tarde toda?

A minha voz saiu mais alterada do que o necessário e só então ganhei sua atenção. Ele me encarava com descrença, pois eu nunca havia falado nesse tom com ele antes.

Sem receber uma resposta, estimulada pela raiva que Larissa despertou mais cedo e a indignação causada pela indiferença de Cláudio, me senti encorajada a continuar.

— Vai me explicar onde esteve esse tempo todo com o celular desligado? Além de estar preocupada, eu precisava de você ao meu lado.

— Ah, por favor, não seja dramática. Seu pai está com o pé na cova há meses, parece que só você não percebeu.

Fiquei ainda mais perturbada pela forma fria como ele tratou a situação e uma lágrima solitária escorreu pelo meu rosto.

“Já faz algum tempo que o nosso relacionamento não vai bem, mesmo antes de papai ficar doente, o meu marido vinha se mostrando diferente do homem gentil e atencioso que conheci há quatro anos.” — refleti por um instante.

Fitando a expressão gélida do homem com quem me casei e que naquele momento parecia um estranho, enxuguei a lágrima e me mantive firme.

— Como pode ser tão insensível, Cláudio? Eu não te reconheço — falei com a voz embargada — Hoje eu praticamente me despedi de meu pai e isso é tudo que você tem pra dizer? Que porcaria de marido é você?

Sustentando um olhar selvagem, de um jeito que eu nunca tinha visto nele antes, Cláudio se aproximou a passos lentos, como um predador que deseja destruir a presa com apenas um bote.

Engoli em seco quando uma de suas mão segurou firme o meu maxilar, arrancando de mim um gemido de dor. Pela primeira vez, desde que nos conhecemos, me senti insegura ao seu lado.

— Veja bem como fala comigo, eu ainda sou o seu marido. Entendeu bem, Gaya?

A dor e o medo me paralisaram. Eu só conseguia pensar que aquele não era o homem com quem casei e desejei ter uma família.

“Quem é esse homem? Será que estive enganada sobre meu marido todo esse tempo?”

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