Ouvindo atrás da porta

Parte 2...

Camila

Eu estava saindo da cozinha e ao passar em frente do escritório de meu pai, parei ao ouvir a voz de minha mãe.

— Eu sei da importância desse acordo, meu marido... Mas você não acha que ela deveria poder escolher?

— Escolher o quê, Valéria? - a voz de meu pai era seca — Nossa filha é aleijada.

— Pelo amor de Deus, homem, não fale assim dela - encostei o ouvido na porta ao ouvir minha mãe retrucar — Camila não é aleijada.

— E ela manca porque motivo, então? - ouvi um som forte, como uma cadeira sendo arrastada — É um charme dela?

Ouvir aquilo me deixou triste. Meu pai nunca aceitou meu problema, que nem mesmo foi criado por mim. Aliás, se existe um culpado disso dentro dessa família, ele é quem deve se sentir assim. Eu fui uma vítima.

— Por que você tem que ser frio dessa forma, Hector? Ela é sua filha. Sua única filha!

O silêncio que se seguiu foi tão cortante quanto as palavras do meu pai. Encostei a mão na maçaneta, hesitando entre entrar e enfrentar aquela discussão ou simplesmente sair dali para evitar ouvir algo pior.

— Hector, você não deveria falar assim da sua própria filha... Até parece que você não a ama - a voz de minha mãe estava mais firme agora, como se ela estivesse disposta a não ceder dessa vez. — Camila é muito mais do que isso. Ela é inteligente, forte, divertida e tem uma resiliência que...

— Resiliência? - meu pai interrompeu, a voz carregada de frustração. — Você acha que resiliência vai protegê-la? Vai impedir que os inimigos vejam uma fraqueza e a ataquem?

Senti meu peito apertar. Fraqueza? Era assim que ele me via?

Minha mãe não recuou. Eu podia imaginar seu olhar firme, aquele que ela sempre reservava para as discussões mais sérias.

— O que aconteceu com Camila foi culpa nossa, Hector - ela disparou. — Não foi culpa dela. E você sabe disso melhor do que ninguém.

Por um momento, o silêncio retornou, mas dessa vez parecia mais pesado. Meu pai soltou um suspiro audível, como se estivesse carregando um fardo impossível de suportar.

— Valeria, eu carrego essa culpa todos os dias - ele disse, em um tom mais baixo. — Mas isso não muda o fato de que ela está marcada. Não só pela perna, mas pelo que aconteceu. E é por isso que precisamos garantir que ela esteja protegida...

Minha mãe deixou escapar um suspiro frustrado. Consegui ouvir, acho que ela está perto da porta. A escuto melhor do que a meu pai.

— E você acha que forçá-la a esse casamento vai protegê-la? Ela só tem dezoito anos, Hector.

— Não é forçar, criatura! - senti irritação em sua voz — Você acha que em nosso meio, algum homem vai querer uma mulher doente como nossa filha? - de novo escuto uma cadeira — E foi uma sorte que a família Calderón aceitou esse acordo. Alejandro concordou em esperar. Três anos. Até ela terminar a faculdade. Isso é mais do que justo.

Meu coração deu um salto ao ouvir o nome dele. Alejandro Calderón. Eu sabia um pouco sobre quem ele era. Ele era poderoso, frio e, segundo os rumores, perigoso. Foi isso que Malena me deixou entender.

Minha mãe deu uma risada amarga.

— E você acha que Alejandro vai mudar quem ele é em três anos? Ele é um homem que vive cercado de violência, Hector. É isso que você quer para a nossa filha?

Meu pai respondeu com um tom áspero:

— E você acha que alguém neste mundo, fora da máfia, vai aceitar uma mulher como ela? Uma mulher que carrega as marcas de um ataque como aquele?

— Mas, Hector...

— Não tem mas... Já chega Valéria - ele elevou a voz — Eu fiz um acordo com a família, está bom pra mim, vai nos ajudar muito.

— Então você só pensou nos seus negócios, essa é a verdade.

— Também foi isso, mas não só isso. Esse acordo vai trazer mais estabilidade para nós.

— Mais dinheiro, você quer dizer - minha mãe retrucou forte.

— Não me critique, mulher!

Minha mãe ficou em silêncio por um momento. Eu sabia que aquelas palavras a tinham atingido, assim como a mim. Respirei fundo e empurrei a porta, decidida a encarar os dois.

Ambos se viraram para mim imediatamente, surpresos com minha entrada.

— Bom dia, pai, mãe - comecei, tentando manter a voz calma, mesmo que meu coração estivesse acelerado. — Acho que vocês estavam falando sobre mim, não é?

Meu pai cruzou os braços, enquanto minha mãe olhou para mim com um misto de preocupação e culpa.

— Eu já sei sobre o acordo com Alejandro, pai - continuei, indo direto ao ponto. — E se isso é o que você acha que é melhor para nossa família, eu aceito.

— Camila, você não precisa... - minha mãe começou, mas eu a interrompi.

— Não, mãe. Eu sei o que significa fazer parte desta família. Só quero uma coisa, pai.

— O que seria? — ele perguntou, estreitando os olhos.

— Quero o tempo que foi combinado. Quero terminar minha faculdade, viver minha vida até lá. Três anos. Não vou aceitar menos do que isso. Se não for assim, não me caso.

Meu pai hesitou por um momento, mas então assentiu. Seu rosto estava vermelho.

— Três anos. Nem mais, nem menos - ele me apontou o dedo — Você se casa, Camila!

Eu apenas acenei, sentindo uma mistura de alívio e peso no peito. Sabia que minha vida estava longe de ser comum, mas, naquele momento, tudo o que eu podia fazer era aceitar o destino que me aguardava.

Dei um último olhar para minha mãe, que parecia prestes a protestar, mas então mudei de ideia e saí do escritório antes que qualquer um deles pudesse dizer mais alguma coisa.

A vida que eu queria parecia estar ficando cada vez mais distante, mas eu não estava pronta para desistir dela tão facilmente.

Saí de casa com lágrimas nos olhos. Ouvir meu pai dizer que sou uma aleijada é muito forte pra mim.

********* ***

— Mas, amiga... Você tem certeza disso?

Malena estava sentada ao meu lado, embaixo da árvore, aproveitando sua sombra perfeita em um dia tão quente.

— Tenho... - respondi com voz embargada — Meu pai é um bom homem pra minha mãe - torci a boca — Às vezes ele perde a cabeça e grita com ela, mas ele nunca foi violento... Mas eu sei que ele tem um arrependimento grande de nunca ter tido um filho homem.

— Não acho que seja isso.

— É sim, Malena - olhei pra ela — Na máfia, os homens são muito mais valorizados do que as mulheres.

— Só na máfia? - ela ergueu a sobrancelha e riu sem ânimo — Em toda sociedade, você não prestou atenção nisso?

— É, eu sei, mas nossa vida está ligada às nossas famílias e vivemos no nosso meio, muito mais do que lá fora.

Malena ficou quieta um instante, depois bateu as mãos.

— O que foi? - me assustei e ri.

— Você tem toda razão, amiga - ela levantou e me puxou — Nós vamos viver lá fora.

— O quê? - franzi a testa, rindo.

— Nosso meio é a máfia, não é? - eu fiz que sim — Pois então, três anos... Três anos em que você vai viver para o mundo.

Eu só arregalei os olhos. E agora?

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