~AYLA~
As palavras de Miguel ecoavam na minha mente como um trovão interminável: "Eu quero o divórcio, Ayla." Era como se tudo ao meu redor estivesse desmoronando. Passei os últimos dias no hospital esperando por algum sinal de consolo, algo que me dissesse que ainda havia uma chance, que eu não estava completamente sozinha. Mas ele entrou, trouxe uma mala com minhas roupas e destruiu o que restava de qualquer esperança.
Helena veio me buscar no hospital no fim da tarde, e nunca me senti tão grata por tê-la ao meu lado, tê-la como amiga.
— Ayla? Está pronta? — Helena perguntou da porta, segurando a alça da bolsa com uma postura tensa.
Balancei a cabeça em silêncio, pegando minhas coisas. Não havia o que dizer. Caminhei até ela com o corpo pesado, como se cada passo fosse um esforço monumental. Queria acreditar que sua presença seria um conforto, mas até isso parecia distante demais.
— Não é fácil, eu sei — ela comentou enquanto me acompanhava pelo corredor do hospital. — Mas sair daqui vai ajudar.
Assenti, sem responder. As palavras de Helena soavam como tentativas automáticas de encorajamento. O tipo de coisa que se diz para preencher o silêncio. Mas eu entendia. O que se dizia para alguém em uma situação como a minha?
No carro, puxei o cinto de segurança e, no momento em que ouvi o clique metálico, uma onda de pânico tomou conta de mim. O som era como um gatilho, trazendo à tona as imagens do acidente. Meus filhos rindo no banco de trás, Heitor contando algo animado enquanto Manuela mexia nas tranças. O impacto. O silêncio. Meu corpo ficou tenso, minhas mãos começaram a tremer. Fechei os olhos por um instante, mas era impossível bloquear as vozes deles. A memória parecia viva, como se ainda estivesse no carro com eles.
— Está tudo bem? — Helena perguntou, observando-me de canto de olho.
— Sim... só preciso de um minuto.
Ela ligou o rádio, preenchendo o silêncio com uma música suave. A melodia abafava o som da minha respiração entrecortada, mas não conseguia aplacar o nó em minha garganta. Tentei me concentrar em algo além das memórias que me assombravam, mas parecia impossível.
A paisagem passava pelas janelas embaçadas pelas lágrimas que eu tentava segurar. As ruas pareciam distantes, quase irreais, como se eu estivesse presa em um filme que não podia controlar. Só percebi que o carro havia parado quando Helena desligou o motor. Olhei para fora e vi um prédio antigo, de quatro andares, com paredes desgastadas pelo tempo e pichações que cobriam quase toda a fachada.
— Chegamos — ela anunciou, soltando o cinto.
— Chegamos onde? Esse não é o seu prédio.
Helena suspirou, desviando o olhar.
— Ayla... eu sinto muito, mas não posso te receber na minha casa. Meu apartamento é pequeno, e... estou namorando alguém. Seria complicado ter você lá agora.
O choque me deixou sem palavras por um instante. Mais cedo, ela havia prometido que me acolheria, e eu me agarrei a essa promessa como a única tábua de salvação em um oceano de perdas.
— Namorando? — perguntei, confusa. — Você nunca mencionou isso antes.
— Não achei que fosse o momento. E, honestamente, isso não importa agora. O que importa é que consegui este lugar para você. Já paguei o primeiro mês. Assim, você tem tempo para se organizar, arrumar um emprego.
— Arrumar um emprego? E tenho um emprego! E a academia? Minhas aulas? — As palavras saíram mais desesperadas do que eu queria.
Helena hesitou, passando as mãos pelos cabelos como se buscasse as palavras certas.
— Ayla, os pais dos seus alunos não ficaram confortáveis com a ideia de você voltar. Eles acham que... você não tem condições de cuidar das crianças. Se não conseguiu proteger os seus filhos...
Ela não precisou terminar a frase. O peso dela caiu sobre mim como um golpe. Não bastasse perder Miguel e meus filhos, agora eu estava perdendo o que restava de mim. A academia era meu porto seguro, o lugar onde minha paixão pela dança se tornava algo maior. Saber que Helena concordava com aquela decisão tornava tudo ainda mais cruel. Mas ela era a dona da academia onde eu trabalhava, não havia o que ser discutido ali, aparentemente.
— Vamos entrar. Sua colega de apartamento está esperando — Helena disse, saindo do carro sem olhar para trás.
Saí também, sentindo a brisa fria bater em meu rosto. Seguimos pelas escadas estreitas e úmidas até o terceiro andar. O cheiro de infiltração misturava-se ao som de água pingando em algum lugar, cada gota ecoando como um lembrete de quão longe eu estava de casa. As paredes eram descascadas, e os degraus rangiam sob nossos pés. Parecia que o lugar inteiro estava prestes a desmoronar.
No terceiro andar, uma jovem esperava na porta do apartamento. Ela era bonita de uma forma quase desafiadora, com cabelos castanhos claros em ondas perfeitas e olhos que brilhavam com algo entre curiosidade e malícia. Seu vestido justo parecia mais adequado para uma balada do que para receber uma nova colega de apartamento.
— Oi! Você deve ser a Ayla. — Ela abriu um sorriso largo e estendeu a mão. — Sou Caterina, mas pode me chamar de Teri.
— Teri? Por que não Cat? — perguntei, tentando ser educada.
Ela riu, despreocupada.
— Porque "Cat" é meu nome de guerra.
Helena deu um sorriso tenso, claramente ansiosa para ir embora.
— Ayla, qualquer coisa, me avise. Espero que você consiga se adaptar bem aqui.
Observei enquanto ela se afastava rapidamente, deixando-me ali, parada na porta. Teri gesticulou para que eu entrasse, mostrando o apartamento simples e pequeno. Era funcional, mas os móveis antigos e as paredes desbotadas faziam tudo parecer mais deprimente.
— Sinto muito não poder ficar para ajudar com sua mudança — disse Teri, mexendo em algo na bancada. — Mas vocês chegaram mais tarde do que eu imaginava e preciso sair para o trabalho.
— Tudo bem — respondi. Não era como se eu tivesse muita coisa para organizar, embora a ideia de ficar sozinha fosse quase insuportável.
Ela olhou para mim de canto de olho e abriu um sorriso travesso. Era como se ela estivesse lendo através das minhas defesas.
— Quer vir comigo? Não é exatamente um lugar comum, mas é ótimo para bebida grátis de homens desesperados.
Pela primeira vez em semanas, um sorriso tímido surgiu nos meus lábios.
— Bebida grátis parece tentador.
Teri piscou, ajustando o vestido.
— Então vamos ver se você sobrevive a uma noite no inferno.
Inferno. A palavra ecoou na minha mente. Mal sabia eu que aquela noite seria apenas a primeira de muitas no Inferno.
O lugar onde Caterina trabalhava era o tipo de ambiente que eu nunca imaginara pisar em toda a minha vida. Uma boate de stripper. O som ensurdecedor da música vibrava nas paredes de luzes piscantes, e o cheiro de bebida misturado a perfume barato criava uma atmosfera pesada, mas, de alguma forma, atraente. Havia algo naquele caos organizado que mexia comigo, algo que anestesiava os sentidos de uma forma que nenhum remédio fora capaz de fazer.— Bem-vinda ao Inferno! — Teri brincou, abrindo os braços como se fosse a anfitriã de um grande evento. — Literalmente. Esse é o nome da casa.— Inferno? — perguntei, hesitante. — Não tinham algo mais... convidativo?— Convidativo é para amadores, querida. — Ela piscou, rindo. — Aqui, a gente não esconde o que é. As pessoas gostam de saber exatamente no que estão se metendo. Além do mais... quer algo mais convidativo do que... nós?Teri parecia não se levar a sério. Ela transitava pelo ambiente com a facilidade de quem já fazia parte dele há muit
~AYLA – TRÊS ANOS DEPOIS ~Eu estava sentada em frente ao espelho, observando meu reflexo como fazia quase todas as noites. O que vi de volta era uma mulher bonita, não havia como negar. Meu rosto, delicadamente maquiado, destacava os olhos castanhos profundos, sempre carregando um traço de melancolia, algo que os anos não conseguiram apagar. O batom vermelho escuro contrastava com minha pele pálida, e o cabelo negros, que uma vez fora macio e natural, agora caía em ondas perfeitamente arrumadas, brilhantes sob as luzes do camarim. Meu corpo estava escultural, a rotina diária de dança e os exercícios intermináveis haviam me moldado de uma maneira que muitos consideravam desejável. Mas enquanto me olhava, eu só conseguia ver o vazio atrás da beleza.Hoje fazia exatamente três anos desde o acidente. Três anos desde que minha vida desabou e eu caí num poço de dor e desespero do qual nunca consegui sair. Era difícil acreditar que já havia passado tanto tempo, mas o peso da perda e da culp
— Ayla tá bom... — murmurei, quase como um sussurro, enquanto tentava cobrir meu corpo exposto com as mãos, sem saber onde me esconder. Sentia-me vulnerável, como se fosse uma adolescente acuada.O nome Nyx, que Teri escolheu para mim logo que comecei a trabalhar, agora parecia um lembrete amargo de como eu havia tentado ser alguém diferente. Nyx, a deusa da noite, envolta em escuridão, como a própria noite que me consumia. Eu era uma sombra da mulher que um dia fui, escondida atrás de um nome que sugeria poder, mas que, na verdade, refletia minha própria fragilidade.Miguel deu um passo à frente, e automaticamente meu corpo recuou, minhas costas pressionando-se contra a parede fria do camarim. Seus olhos percorriam meu corpo sem qualquer resquício de respeito, e o sorriso arrogante que ele exibia me fazia querer desaparecer.— Nunca imaginei que você chegaria a esse ponto — disse ele, a voz impregnada de desprezo. — Passar por essa humilhação... Eu sempre achei que você tivesse mais
Era tarde demais. Meu corpo já estava caindo no abismo. O vento frio chicoteava meu rosto, e tudo parecia acontecer em câmera lenta. As luzes da cidade, antes tão distantes, agora se aproximavam rapidamente, borradas por lágrimas e pela velocidade da queda. Por um breve segundo, pensei que o impacto não seria tão ruim. Pensei que seria rápido, indolor. Mas a realidade foi muito mais cruel.Tudo escureceu.Então, veio o silêncio. Um silêncio absoluto, ensurdecedor, que parecia me consumir por dentro. Não havia mais vento, nem frio, nem dor. Apenas um vazio imenso que se estendia ao meu redor. Eu estava flutuando, ou talvez apenas existindo em algum espaço que não tinha forma, nem cor, nem tempo.Abri os olhos – se é que estavam realmente abertos – e vi meu corpo lá embaixo. Estava caída no chão, imóvel, contorcida de uma forma antinatural. A cena parecia distante, como se eu a observasse através de um véu fino e trêmulo. Pessoas começavam a se reunir, gritos ecoavam ao longe, e luzes v
~AYLA~A escuridão ainda pairava sobre mim quando meus sentidos começaram a despertar, como se eu emergisse lentamente de um oceano profundo. Algo frio e metálico pressionava meus dedos, e uma leve dor pulsava em meu braço esquerdo. Meu corpo estava pesado, rígido, como se estivesse acorrentado a uma realidade que eu não reconhecia. O som de um monitor cardíaco preenchia o silêncio, cada bip uma âncora, forçando-me a enfrentar o que quer que estivesse além da névoa.Luz branca. Brilhante demais. Tentei abrir os olhos, mas a claridade me atingiu como uma lâmina, me obrigando a fechá-los novamente. As vozes ao meu redor eram abafadas, distantes, como se viessem debaixo d'água.Minhas mãos formigavam levemente, e o frio do lençol contra minha pele fazia tudo parecer ainda mais estranho, mais real. Passos apressados ecoavam ao redor, mesclando-se ao som baixo de vozes. Cada detalhe do ambiente parecia gritar para mim que algo terrível havia acontecido, mas minha mente ainda estava presa n
~AYLA~Os dias que se seguiram ao meu despertar no hospital foram envoltos em uma neblina pesada e dolorosa. A maior parte do tempo, eu estava sob efeito de sedativos, não pelas dores físicas – essas eu poderia suportar – mas pela dor insuportável que preenchia cada centímetro do meu ser. A dor da perda dos meus filhos era um buraco negro, devorando tudo o que eu era. A única maneira de silenciá-la, mesmo que por algumas horas, era através dos remédios. E assim, os dias passavam, mas a dor não diminuía. Cada vez que eu despertava do torpor dos medicamentos, o vazio em meu peito parecia ainda maior.Perguntava por Miguel o tempo todo. As enfermeiras desviavam os olhos, o desconforto evidente em suas expressões. Às vezes, trocavam olhares entre si antes de me responder, outras vezes apenas balançavam a cabeça, como se eu fosse frágil demais para ouvir qualquer verdade. Elas nunca diziam muito, mudando de assunto rapidamente, mas o silêncio delas dizia mais do que qualquer palavra.— Mig