Era tarde demais. Meu corpo já estava caindo no abismo. O vento frio chicoteava meu rosto, e tudo parecia acontecer em câmera lenta. As luzes da cidade, antes tão distantes, agora se aproximavam rapidamente, borradas por lágrimas e pela velocidade da queda. Por um breve segundo, pensei que o impacto não seria tão ruim. Pensei que seria rápido, indolor. Mas a realidade foi muito mais cruel.
Tudo escureceu.
Então, veio o silêncio. Um silêncio absoluto, ensurdecedor, que parecia me consumir por dentro. Não havia mais vento, nem frio, nem dor. Apenas um vazio imenso que se estendia ao meu redor. Eu estava flutuando, ou talvez apenas existindo em algum espaço que não tinha forma, nem cor, nem tempo.
Abri os olhos – se é que estavam realmente abertos – e vi meu corpo lá embaixo. Estava caída no chão, imóvel, contorcida de uma forma antinatural. A cena parecia distante, como se eu a observasse através de um véu fino e trêmulo. Pessoas começavam a se reunir, gritos ecoavam ao longe, e luzes vermelhas de sirenes tingiam a chuva que ainda caía.
Era eu. Eu estava morta.
— Não é bem assim.
A voz surgiu do nada, suave, mas carregada de uma autoridade quase divina. Me virei rapidamente, mas não havia ninguém. Apenas uma luz tênue começou a se formar no vazio, crescendo lentamente até se transformar em uma figura que parecia... humana. Mas não era.
Era alta, imponente, com feições tão perfeitas que pareciam esculpidas em mármore. Seus olhos eram de um azul intenso, quase translúcido, e suas roupas pareciam feitas de luz líquida. Havia algo reconfortante naquela presença, mas também assustador.
— Onde eu estou? — minha voz soou fraca, quebradiça.
— Em algum lugar entre o fim e um novo começo — a figura respondeu, com um leve sorriso.
— Eu... eu estou morta?
— Por enquanto, sim. Mas nem tudo está perdido.
Olhei novamente para meu corpo caído no chão. Uma sensação de vazio me preencheu. Meus filhos. Miguel. A boate. Teri. Eu havia deixado tudo para trás.
— Por que você está aqui? — perguntei, sentindo minha voz falhar. — O que vai acontecer comigo?
A figura se aproximou, e, de alguma forma, parecia que o espaço ao nosso redor se dobrava para acomodá-la.
— Você tem uma escolha, Ayla. — A maneira como ele pronunciou meu nome fez algo dentro de mim se agitar. — A vida nem sempre é justa, eu sei. Às vezes, ela arranca de nós coisas que não podemos substituir. Às vezes, ela nos quebra em pedaços tão pequenos que achamos impossível nos reconstruir.
Ele fez uma pausa, seus olhos me perfurando, como se pudesse enxergar cada canto escuro da minha alma.
— Mas você ainda pode mudar isso. Pode ter uma segunda chance.
— Uma... segunda chance? — minha voz saiu quase como um sussurro.
— Sim. Mas não será fácil. — Ele estendeu uma das mãos, e, ao fazer isso, várias imagens começaram a surgir ao nosso redor. Como em porta-retratos flutuando no vazio.
Eu vi Teri, sentada no sofá do nosso pequeno apartamento, olhando para algo em seu pulso – uma tatuagem de uma peça de quebra-cabeça. Vi um homem desconhecido, parado diante de um túmulo que exibia sua própria foto, a expressão devastada. Vi um prédio antigo, iluminado pela luz do entardecer, com placas de "Demolição" nas janelas. Vi Miguel, sorrindo com aquele sorriso falso que eu conhecia tão bem.
— O que você quer de mim? — perguntei, minha voz firme, mas meu coração tremia.
A verdade é que nada mais me interessava. Se eu cheguei naquele ponto é porque nada mais me interessava.
Ele abaixou a mão, e as imagens desapareceram lentamente, dissolvendo-se no vazio.
— Sim, algo tem interessa. Seus filhos — ele respondeu, como se pudesse ler meus pensamentos. — Você pode os ter de volta.
— Meus filhos? — minha voz saiu em um sussurro.
— Você terá sua família de volta, mas primeiro, você deve salvar a família dele.
Senti meu corpo congelar.
— Dele? De quem você está falando? — minha voz ecoou pelo vazio, fraca, trêmula.
A figura inclinou a cabeça, seus olhos pareciam brilhar ainda mais intensamente enquanto me observava.
— O homem que está prestes a te encontrar. O homem que está subindo aquelas escadas agora mesmo, correndo contra o tempo para te impedir de cair.
Meu coração parou por um segundo. Ele estava falando de alguém que eu ainda não conhecia.
— Quem é ele? — sussurrei.
A figura sorriu suavemente, como se soubesse algo que eu ainda não entendia.
— Alguém que carrega um peso maior do que deveria. Alguém que perdeu tanto quanto você e que, mesmo sem perceber, também está à beira de um abismo.
Engoli em seco.
— Eu não entendo... como eu posso salvá-lo?
— Sua missão não é simples, Ayla. Salvar alguém nem sempre significa puxá-lo para fora da escuridão, mas sim caminhar ao lado dele até que a luz apareça. Esse homem, Nicolas, está prestes a entrar na sua vida. Ele será tanto a chave para sua redenção quanto o maior desafio que você já enfrentou.
O nome dele ecoou em minha mente. Nicolas.
— E se eu falhar? — perguntei, sentindo as lágrimas se acumularem em meus olhos.
— Confie em si mesma, Ayla. Confie no propósito que está dentro de você.
Eu assenti, mesmo que cada fibra do meu ser estivesse tremendo.
Minhas lágrimas finalmente caíram, silenciosas, enquanto eu absorvia cada palavra.
— Está pronta para voltar, Ayla?
O vazio ao meu redor começou a se mover novamente, e eu pude sentir meu corpo ficando mais pesado, como se estivesse sendo puxada de volta para algum lugar.
— Sim — respondi, mesmo que minha voz soasse fraca.
— Apenas um aviso: não é fácil se lembrar do que acontece aqui. Muitos jamais se lembram, ou demoram mais do que poderiam. Mas você precisa se lembrar, Ayla — ouvi a voz distante, como se estivesse se afastando. — Você precisa se lembrar.
O tempo se dobrou sobre si mesmo, como uma fita antiga sendo rebobinada em velocidade máxima. Minhas memórias pareciam se despedaçar e se remontar enquanto meu corpo era puxado para cima, como se fios invisíveis estivessem me arrastando de volta contra a gravidade, contra o destino. A chuva, que antes caía no vazio, agora me atingia novamente, o vento chicoteava meu rosto, e meus pés tocaram o chão sólido do parapeito. Meus pulmões ardiam, meu coração batia tão forte que parecia prestes a explodir. E então, ouvi novamente aquela voz, carregada de urgência e desespero, cortando o ar ao meu redor.
— Não! Não faça isso!
~AYLA~A escuridão ainda pairava sobre mim quando meus sentidos começaram a despertar, como se eu emergisse lentamente de um oceano profundo. Algo frio e metálico pressionava meus dedos, e uma leve dor pulsava em meu braço esquerdo. Meu corpo estava pesado, rígido, como se estivesse acorrentado a uma realidade que eu não reconhecia. O som de um monitor cardíaco preenchia o silêncio, cada bip uma âncora, forçando-me a enfrentar o que quer que estivesse além da névoa.Luz branca. Brilhante demais. Tentei abrir os olhos, mas a claridade me atingiu como uma lâmina, me obrigando a fechá-los novamente. As vozes ao meu redor eram abafadas, distantes, como se viessem debaixo d'água.Minhas mãos formigavam levemente, e o frio do lençol contra minha pele fazia tudo parecer ainda mais estranho, mais real. Passos apressados ecoavam ao redor, mesclando-se ao som baixo de vozes. Cada detalhe do ambiente parecia gritar para mim que algo terrível havia acontecido, mas minha mente ainda estava presa n
~AYLA~Os dias que se seguiram ao meu despertar no hospital foram envoltos em uma neblina pesada e dolorosa. A maior parte do tempo, eu estava sob efeito de sedativos, não pelas dores físicas – essas eu poderia suportar – mas pela dor insuportável que preenchia cada centímetro do meu ser. A dor da perda dos meus filhos era um buraco negro, devorando tudo o que eu era. A única maneira de silenciá-la, mesmo que por algumas horas, era através dos remédios. E assim, os dias passavam, mas a dor não diminuía. Cada vez que eu despertava do torpor dos medicamentos, o vazio em meu peito parecia ainda maior.Perguntava por Miguel o tempo todo. As enfermeiras desviavam os olhos, o desconforto evidente em suas expressões. Às vezes, trocavam olhares entre si antes de me responder, outras vezes apenas balançavam a cabeça, como se eu fosse frágil demais para ouvir qualquer verdade. Elas nunca diziam muito, mudando de assunto rapidamente, mas o silêncio delas dizia mais do que qualquer palavra.— Mig
~AYLA~As palavras de Miguel ecoavam na minha mente como um trovão interminável: "Eu quero o divórcio, Ayla." Era como se tudo ao meu redor estivesse desmoronando. Passei os últimos dias no hospital esperando por algum sinal de consolo, algo que me dissesse que ainda havia uma chance, que eu não estava completamente sozinha. Mas ele entrou, trouxe uma mala com minhas roupas e destruiu o que restava de qualquer esperança.Helena veio me buscar no hospital no fim da tarde, e nunca me senti tão grata por tê-la ao meu lado, tê-la como amiga.— Ayla? Está pronta? — Helena perguntou da porta, segurando a alça da bolsa com uma postura tensa.Balancei a cabeça em silêncio, pegando minhas coisas. Não havia o que dizer. Caminhei até ela com o corpo pesado, como se cada passo fosse um esforço monumental. Queria acreditar que sua presença seria um conforto, mas até isso parecia distante demais.— Não é fácil, eu sei — ela comentou enquanto me acompanhava pelo corredor do hospital. — Mas sair daqu
O lugar onde Caterina trabalhava era o tipo de ambiente que eu nunca imaginara pisar em toda a minha vida. Uma boate de stripper. O som ensurdecedor da música vibrava nas paredes de luzes piscantes, e o cheiro de bebida misturado a perfume barato criava uma atmosfera pesada, mas, de alguma forma, atraente. Havia algo naquele caos organizado que mexia comigo, algo que anestesiava os sentidos de uma forma que nenhum remédio fora capaz de fazer.— Bem-vinda ao Inferno! — Teri brincou, abrindo os braços como se fosse a anfitriã de um grande evento. — Literalmente. Esse é o nome da casa.— Inferno? — perguntei, hesitante. — Não tinham algo mais... convidativo?— Convidativo é para amadores, querida. — Ela piscou, rindo. — Aqui, a gente não esconde o que é. As pessoas gostam de saber exatamente no que estão se metendo. Além do mais... quer algo mais convidativo do que... nós?Teri parecia não se levar a sério. Ela transitava pelo ambiente com a facilidade de quem já fazia parte dele há muit
~AYLA – TRÊS ANOS DEPOIS ~Eu estava sentada em frente ao espelho, observando meu reflexo como fazia quase todas as noites. O que vi de volta era uma mulher bonita, não havia como negar. Meu rosto, delicadamente maquiado, destacava os olhos castanhos profundos, sempre carregando um traço de melancolia, algo que os anos não conseguiram apagar. O batom vermelho escuro contrastava com minha pele pálida, e o cabelo negros, que uma vez fora macio e natural, agora caía em ondas perfeitamente arrumadas, brilhantes sob as luzes do camarim. Meu corpo estava escultural, a rotina diária de dança e os exercícios intermináveis haviam me moldado de uma maneira que muitos consideravam desejável. Mas enquanto me olhava, eu só conseguia ver o vazio atrás da beleza.Hoje fazia exatamente três anos desde o acidente. Três anos desde que minha vida desabou e eu caí num poço de dor e desespero do qual nunca consegui sair. Era difícil acreditar que já havia passado tanto tempo, mas o peso da perda e da culp
— Ayla tá bom... — murmurei, quase como um sussurro, enquanto tentava cobrir meu corpo exposto com as mãos, sem saber onde me esconder. Sentia-me vulnerável, como se fosse uma adolescente acuada.O nome Nyx, que Teri escolheu para mim logo que comecei a trabalhar, agora parecia um lembrete amargo de como eu havia tentado ser alguém diferente. Nyx, a deusa da noite, envolta em escuridão, como a própria noite que me consumia. Eu era uma sombra da mulher que um dia fui, escondida atrás de um nome que sugeria poder, mas que, na verdade, refletia minha própria fragilidade.Miguel deu um passo à frente, e automaticamente meu corpo recuou, minhas costas pressionando-se contra a parede fria do camarim. Seus olhos percorriam meu corpo sem qualquer resquício de respeito, e o sorriso arrogante que ele exibia me fazia querer desaparecer.— Nunca imaginei que você chegaria a esse ponto — disse ele, a voz impregnada de desprezo. — Passar por essa humilhação... Eu sempre achei que você tivesse mais