~AYLA~
Os dias que se seguiram ao meu despertar no hospital foram envoltos em uma neblina pesada e dolorosa. A maior parte do tempo, eu estava sob efeito de sedativos, não pelas dores físicas – essas eu poderia suportar – mas pela dor insuportável que preenchia cada centímetro do meu ser. A dor da perda dos meus filhos era um buraco negro, devorando tudo o que eu era. A única maneira de silenciá-la, mesmo que por algumas horas, era através dos remédios. E assim, os dias passavam, mas a dor não diminuía. Cada vez que eu despertava do torpor dos medicamentos, o vazio em meu peito parecia ainda maior.
Perguntava por Miguel o tempo todo. As enfermeiras desviavam os olhos, o desconforto evidente em suas expressões. Às vezes, trocavam olhares entre si antes de me responder, outras vezes apenas balançavam a cabeça, como se eu fosse frágil demais para ouvir qualquer verdade. Elas nunca diziam muito, mudando de assunto rapidamente, mas o silêncio delas dizia mais do que qualquer palavra.
— Miguel esteve aqui? — eu perguntava, quase toda vez que acordava.
A resposta era sempre a mesma: um suspiro, um balançar de cabeça. Ele não estava. Nunca estava.
Por mais que eu quisesse acreditar que era apenas uma questão de tempo até Miguel aparecer, cada dia sem notícias dele fazia o vazio crescer dentro de mim. Não era só a ausência física que doía; era a sensação de que ele estava deliberadamente me deixando sozinha, como se quisesse me punir de um modo que palavras nunca poderiam alcançar.
Naquela tarde, porém, algo mudou. Meu coração bateu mais rápido quando Helena entrou no quarto. Minha melhor amiga desde os tempos da escola, Helena trazia consigo uma presença familiar, algo que, por um instante, me tranquilizou. Mas quando ela se aproximou da cama e sentou-se na cadeira ao meu lado, percebi algo diferente em sua postura. O sorriso discreto que ela usava parecia ensaiado, e seus olhos evitavam os meus. Havia uma distância ali que eu não conseguia ignorar.
— Helena, por que Miguel ainda não veio? — perguntei, minha voz saindo mais fraca do que eu esperava. Fiz a pergunta de novo, sabendo que ela não poderia me ignorar como as enfermeiras.
Helena suspirou, aquele tipo de suspiro que geralmente precede algo que não queremos ouvir. Seus dedos tamborilavam no braço da cadeira, um movimento impaciente que nunca associei a ela antes. Quando finalmente respondeu, sua voz era baixa, quase fria:
— Ayla, Miguel... Miguel está lidando com as próprias dores também.
Eu sabia que ele estava sofrendo, claro que sabia. Ele também havia perdido nossos filhos. Mas havia algo na forma como ela disse aquilo que me incomodou profundamente, uma distância que tornava suas palavras vazias.
— Ele não quer me ver? — perguntei, minha voz trêmula, o nó na garganta crescendo.
Helena hesitou, seus olhos buscando qualquer outro ponto no quarto para focar, e então falou com uma neutralidade que não combinava com o peso do que dizia:
— Ayla, ele... ele não consegue te ver porque, para ele, você é... você é culpada por isso.
A palavra ecoou na minha mente como um trovão. Culpada. Eu senti meu corpo congelar, como se algo tivesse roubado o ar dos meus pulmões. Culpada? Aquilo foi um acidente. Eu não fiz nada de propósito.
— Culpada? — minha voz saiu baixa, quase um sussurro. — Foi um acidente, Helena. Eu jamais... eu...
Ela me encarou com um olhar que parecia condescendente, como se ela soubesse algo que eu não sabia. Não havia empatia ali, apenas uma serenidade mecânica que me fez estremecer.
— Ayla, o laudo da perícia... Ele mostrou que você não parou no sinal vermelho.
As palavras dela vieram como uma descarga elétrica. O quê? Isso não podia estar certo. Eu tentei parar, eu tinha certeza. Mesmo sem lembrar de tudo, eu sabia que tinha tentado. Minhas mãos tremiam enquanto eu tentava juntar as peças na minha mente.
— Eu... eu tentei parar, Helena. Os freios... os freios não estavam funcionando, eu juro que tentei...
Helena apertou minha mão, mas o gesto era estranho, distante.
— Todos sabemos que você não queria que isso acontecesse, Ayla. Sabemos que você amava as crianças mais do que tudo. Mas... você precisa entender que o Miguel está lidando com isso de uma forma diferente. Ele... ele precisa de tempo para processar.
Suas palavras cortaram mais fundo do que qualquer lâmina poderia. Meu coração estava em pedaços, mas minha mente insistia em resistir, tentando reconstruir o que havia acontecido. O som das risadas de Heitor e Manuela no carro, o calor do sol, o impacto. Depois disso, tudo era um vazio. Mas uma coisa eu sabia: não era culpa minha.
Os dias passaram, e Miguel não veio. Cada vez que a porta do quarto se abria, meu coração disparava, esperando por ele, esperando por uma chance de ouvir suas palavras de consolo. Mas ele nunca apareceu.
Finalmente, no dia em que eu estava pronta para deixar o hospital, ele veio. Estava arrumando minhas poucas coisas, preparando-me para sair, quando ouvi a porta abrir. Levantei os olhos e, por um instante, o mundo parou. Miguel estava ali, parado na porta, segurando uma mala. Mas não era o reencontro que eu havia imaginado. Ele não se moveu, apenas me olhou com uma expressão que eu nunca tinha visto antes. Era fria. Distante. Quase indiferente.
Levantei-me, minha alegria transformada em confusão. Antes que pudesse falar, ele levantou a mão, um gesto que me fez congelar.
— Miguel, o que é isso? — perguntei, apontando para a mala.
Ele respirou fundo, sua postura rígida, como se estivesse se preparando para dizer algo que já havia ensaiado inúmeras vezes.
— São suas roupas. Ainda tem coisas suas no apartamento, mas... podemos combinar para você ir buscar quando encontrar um lugar definitivo.
Eu demorei a processar as palavras. Lugar definitivo? O que ele estava dizendo? Quando finalmente entendi, a dor veio como uma onda, esmagadora e sufocante.
— Miguel, o que você está querendo dizer com isso? — minha voz tremia, mas ele permaneceu imóvel.
Ele respirou fundo novamente antes de falar, sua voz controlada, quase sem emoção:
— Eu quero o divórcio, Ayla.
~AYLA~As palavras de Miguel ecoavam na minha mente como um trovão interminável: "Eu quero o divórcio, Ayla." Era como se tudo ao meu redor estivesse desmoronando. Passei os últimos dias no hospital esperando por algum sinal de consolo, algo que me dissesse que ainda havia uma chance, que eu não estava completamente sozinha. Mas ele entrou, trouxe uma mala com minhas roupas e destruiu o que restava de qualquer esperança.Helena veio me buscar no hospital no fim da tarde, e nunca me senti tão grata por tê-la ao meu lado, tê-la como amiga.— Ayla? Está pronta? — Helena perguntou da porta, segurando a alça da bolsa com uma postura tensa.Balancei a cabeça em silêncio, pegando minhas coisas. Não havia o que dizer. Caminhei até ela com o corpo pesado, como se cada passo fosse um esforço monumental. Queria acreditar que sua presença seria um conforto, mas até isso parecia distante demais.— Não é fácil, eu sei — ela comentou enquanto me acompanhava pelo corredor do hospital. — Mas sair daqu
O lugar onde Caterina trabalhava era o tipo de ambiente que eu nunca imaginara pisar em toda a minha vida. Uma boate de stripper. O som ensurdecedor da música vibrava nas paredes de luzes piscantes, e o cheiro de bebida misturado a perfume barato criava uma atmosfera pesada, mas, de alguma forma, atraente. Havia algo naquele caos organizado que mexia comigo, algo que anestesiava os sentidos de uma forma que nenhum remédio fora capaz de fazer.— Bem-vinda ao Inferno! — Teri brincou, abrindo os braços como se fosse a anfitriã de um grande evento. — Literalmente. Esse é o nome da casa.— Inferno? — perguntei, hesitante. — Não tinham algo mais... convidativo?— Convidativo é para amadores, querida. — Ela piscou, rindo. — Aqui, a gente não esconde o que é. As pessoas gostam de saber exatamente no que estão se metendo. Além do mais... quer algo mais convidativo do que... nós?Teri parecia não se levar a sério. Ela transitava pelo ambiente com a facilidade de quem já fazia parte dele há muit
~AYLA – TRÊS ANOS DEPOIS ~Eu estava sentada em frente ao espelho, observando meu reflexo como fazia quase todas as noites. O que vi de volta era uma mulher bonita, não havia como negar. Meu rosto, delicadamente maquiado, destacava os olhos castanhos profundos, sempre carregando um traço de melancolia, algo que os anos não conseguiram apagar. O batom vermelho escuro contrastava com minha pele pálida, e o cabelo negros, que uma vez fora macio e natural, agora caía em ondas perfeitamente arrumadas, brilhantes sob as luzes do camarim. Meu corpo estava escultural, a rotina diária de dança e os exercícios intermináveis haviam me moldado de uma maneira que muitos consideravam desejável. Mas enquanto me olhava, eu só conseguia ver o vazio atrás da beleza.Hoje fazia exatamente três anos desde o acidente. Três anos desde que minha vida desabou e eu caí num poço de dor e desespero do qual nunca consegui sair. Era difícil acreditar que já havia passado tanto tempo, mas o peso da perda e da culp
— Ayla tá bom... — murmurei, quase como um sussurro, enquanto tentava cobrir meu corpo exposto com as mãos, sem saber onde me esconder. Sentia-me vulnerável, como se fosse uma adolescente acuada.O nome Nyx, que Teri escolheu para mim logo que comecei a trabalhar, agora parecia um lembrete amargo de como eu havia tentado ser alguém diferente. Nyx, a deusa da noite, envolta em escuridão, como a própria noite que me consumia. Eu era uma sombra da mulher que um dia fui, escondida atrás de um nome que sugeria poder, mas que, na verdade, refletia minha própria fragilidade.Miguel deu um passo à frente, e automaticamente meu corpo recuou, minhas costas pressionando-se contra a parede fria do camarim. Seus olhos percorriam meu corpo sem qualquer resquício de respeito, e o sorriso arrogante que ele exibia me fazia querer desaparecer.— Nunca imaginei que você chegaria a esse ponto — disse ele, a voz impregnada de desprezo. — Passar por essa humilhação... Eu sempre achei que você tivesse mais
Era tarde demais. Meu corpo já estava caindo no abismo. O vento frio chicoteava meu rosto, e tudo parecia acontecer em câmera lenta. As luzes da cidade, antes tão distantes, agora se aproximavam rapidamente, borradas por lágrimas e pela velocidade da queda. Por um breve segundo, pensei que o impacto não seria tão ruim. Pensei que seria rápido, indolor. Mas a realidade foi muito mais cruel.Tudo escureceu.Então, veio o silêncio. Um silêncio absoluto, ensurdecedor, que parecia me consumir por dentro. Não havia mais vento, nem frio, nem dor. Apenas um vazio imenso que se estendia ao meu redor. Eu estava flutuando, ou talvez apenas existindo em algum espaço que não tinha forma, nem cor, nem tempo.Abri os olhos – se é que estavam realmente abertos – e vi meu corpo lá embaixo. Estava caída no chão, imóvel, contorcida de uma forma antinatural. A cena parecia distante, como se eu a observasse através de um véu fino e trêmulo. Pessoas começavam a se reunir, gritos ecoavam ao longe, e luzes v
~AYLA~A escuridão ainda pairava sobre mim quando meus sentidos começaram a despertar, como se eu emergisse lentamente de um oceano profundo. Algo frio e metálico pressionava meus dedos, e uma leve dor pulsava em meu braço esquerdo. Meu corpo estava pesado, rígido, como se estivesse acorrentado a uma realidade que eu não reconhecia. O som de um monitor cardíaco preenchia o silêncio, cada bip uma âncora, forçando-me a enfrentar o que quer que estivesse além da névoa.Luz branca. Brilhante demais. Tentei abrir os olhos, mas a claridade me atingiu como uma lâmina, me obrigando a fechá-los novamente. As vozes ao meu redor eram abafadas, distantes, como se viessem debaixo d'água.Minhas mãos formigavam levemente, e o frio do lençol contra minha pele fazia tudo parecer ainda mais estranho, mais real. Passos apressados ecoavam ao redor, mesclando-se ao som baixo de vozes. Cada detalhe do ambiente parecia gritar para mim que algo terrível havia acontecido, mas minha mente ainda estava presa n