~AYLA – TRÊS ANOS DEPOIS ~
Eu estava sentada em frente ao espelho, observando meu reflexo como fazia quase todas as noites. O que vi de volta era uma mulher bonita, não havia como negar. Meu rosto, delicadamente maquiado, destacava os olhos castanhos profundos, sempre carregando um traço de melancolia, algo que os anos não conseguiram apagar. O batom vermelho escuro contrastava com minha pele pálida, e o cabelo negros, que uma vez fora macio e natural, agora caía em ondas perfeitamente arrumadas, brilhantes sob as luzes do camarim. Meu corpo estava escultural, a rotina diária de dança e os exercícios intermináveis haviam me moldado de uma maneira que muitos consideravam desejável. Mas enquanto me olhava, eu só conseguia ver o vazio atrás da beleza.
Hoje fazia exatamente três anos desde o acidente. Três anos desde que minha vida desabou e eu caí num poço de dor e desespero do qual nunca consegui sair. Era difícil acreditar que já havia passado tanto tempo, mas o peso da perda e da culpa ainda estava lá, tão presente quanto naquele dia. O reflexo no espelho era de uma mulher bonita, mas, por dentro, eu estava destruída.
Ainda morava no mesmo apartamento, ainda fazia as mesmas performances na boate de stripper, e ainda lutava para manter as finanças em dia. Nada havia mudado. A única coisa boa que restara em minha vida era Caterina, ou Teri, como a chamava. Ela, ao menos, não me abandonou, diferente de Helena, que se afastou de mim completamente depois de tudo.
Teri, ao contrário, permanecia ao meu lado, mesmo ganhando mais do que eu, porque ela aceitava transar com os clientes — algo que eu nunca consegui fazer. Mesmo assim, ela continuava no apartamento minúsculo onde morávamos, quando já poderia estar vivendo em outro lugar, muito melhor. Eu sabia que ela só continuava ali por minha causa, porque sabia que eu não tinha condições de arcar com um aluguel mais alto. E, por mais que ela tentasse, eu jamais permitiria que ela pagasse tudo sozinha. Apesar disso, Teri parecia bem com a situação, sempre dizia que logo teria dinheiro suficiente para comprar seu próprio apartamento à vista.
— Para quê gastar com aluguel caro agora? — Ela dizia, rindo. — Melhor não ter muitas despesas. Um dia eu vou poder sair desse lugar para o meu apartamento próprio e nunca mais olhar para trás.
Enquanto isso, Teri investia em procedimentos estéticos, roupas de marca e tudo o mais que a deixava ainda mais desejada pelos homens. Ela sabia o que queria e como conseguir. E, naquela noite, como tantas outras, ela se aproximou de mim por trás, nossos olhos se encontrando através do espelho. Ela sorriu, depositando um leve beijo no meu ombro nu.
— Você pensou no que eu falei, Ayla? — perguntou, a voz doce e persuasiva.
Sabia do que ela estava falando. Ela havia mencionado mais de uma vez que eu poderia começar a dormir com os clientes. Para Teri, parecia simples. Para mim, era uma barreira intransponível. Ainda assim, eu me virei para ela e forcei um sorriso.
— Vou pensar — prometi, sabendo que não faria isso.
Teri soltou uma risada suave, como se já soubesse da minha resposta antes mesmo que eu falasse, mas não insistiu. Estávamos nesse ciclo há tanto tempo que ela sabia quando pressionar e quando recuar.
Meus pensamentos foram interrompidos abruptamente pelo som da porta do camarim batendo com força. Lorenzo, nosso chefe, entrou como uma tempestade, sua presença imponente preenchendo o ambiente. Ele não precisava de força física para impor respeito, sua postura arrogante e a forma como dominava a cena já diziam tudo.
— Garotas, festa privada hoje! Despedida de solteiro — anunciou com um sorriso largo.
A notícia foi recebida com entusiasmo pelas outras garotas. Todos sabiam o que uma despedida de solteiro significava: gorjetas gordas, clientes generosos, e para muitas, a chance de aumentar o faturamento da noite. As garotas começaram a se preparar, animadas, enquanto eu tentava manter meu ritmo de sempre. Já havia feito isso tantas vezes que se tornara quase mecânico. Coloquei as plumas e os paetê, ajustando as alças do figurino. As luzes cegantes do palco sempre me ajudavam a esconder meu constrangimento. Com o brilho intenso sobre mim, eu mal via a plateia, o que facilitava as coisas quando as roupas começavam a sair.
A música começou e, como em todas as outras noites, entrei em modo automático. Os primeiros passos, a sincronia com as outras garotas, o corpo se movendo no ritmo que eu já conhecia tão bem. No entanto, algo estava diferente naquela noite. Quando as luzes finalmente diminuíram e meus olhos se ajustaram à penumbra da plateia, eu o vi.
Miguel.
Meu coração disparou, o sangue gelando em minhas veias. Ele estava sentado bem na minha frente, na cadeira reservada especialmente para o noivo da despedida. Não havia como confundir. Estava cercado pelos mesmos amigos de sempre, outros rostos levemente familiares. Eu queria que meus pés se movessem, queria continuar a performance como se nada tivesse acontecido. Mas não consegui.
Sem pensar duas vezes, saí correndo do palco, empurrando as cortinas com força, o coração batendo tão rápido que mal conseguia respirar. Minha mente gritava que aquilo não podia estar acontecendo. De todas as pessoas no mundo, a última que eu desejava que soubesse da minha vida atual era Miguel. A humilhação de ser vista por ele... Ele era a última pessoa que eu queria que soubesse o que eu havia me tornado.
Miguel era o noivo. Eu sabia disso porque ele estava na cadeira reservada para o homem que estava prestes a se casar. Não havia dúvidas. Os amigos ao redor, as risadas, tudo confirmava. Era humilhante demais.
Tentei respirar fundo, tentando controlar a vontade de chorar, mas cada fibra do meu ser estava despedaçada.
Foi então que Lorenzo entrou no camarim, irritado.
— O que foi aquilo, Nyx? — Ele rosnou, a voz severa. — Você sabe que não pode abandonar o palco no meio de uma apresentação!
— Me desculpe — sussurrei, sem saber o que dizer. — Eu me senti mal.
Ele me encarou, as mãos nos quadris, claramente descontente.
— Sentiu-se mal? — Ele balançou a cabeça, descrente. — Isso não importa agora. O noivo quer te ver.
— Lorenzo, você sabe que eu não tenho contato com os clientes — implorei, tentando manter a calma, mas meu corpo inteiro tremia.
Ele sequer respondeu. Com um movimento brusco, ele abriu a porta do camarim e, antes que eu pudesse protestar, Miguel entrou. Lorenzo saiu, deixando-nos sozinhos. O silêncio caiu como uma pedra pesada entre nós. Eu não sabia o que dizer, o que fazer. Tudo parecia um pesadelo.
Miguel olhou para mim por um momento, os olhos penetrantes, cheios um desejo que eu costumava gostar de ver lá. Não hoje. Então, ele abriu um sorriso sarcástico.
— Ayla — ele disse, a voz cheia de ironia. — Ou devo te chamar de Nyx agora?
— Ayla tá bom... — murmurei, quase como um sussurro, enquanto tentava cobrir meu corpo exposto com as mãos, sem saber onde me esconder. Sentia-me vulnerável, como se fosse uma adolescente acuada.O nome Nyx, que Teri escolheu para mim logo que comecei a trabalhar, agora parecia um lembrete amargo de como eu havia tentado ser alguém diferente. Nyx, a deusa da noite, envolta em escuridão, como a própria noite que me consumia. Eu era uma sombra da mulher que um dia fui, escondida atrás de um nome que sugeria poder, mas que, na verdade, refletia minha própria fragilidade.Miguel deu um passo à frente, e automaticamente meu corpo recuou, minhas costas pressionando-se contra a parede fria do camarim. Seus olhos percorriam meu corpo sem qualquer resquício de respeito, e o sorriso arrogante que ele exibia me fazia querer desaparecer.— Nunca imaginei que você chegaria a esse ponto — disse ele, a voz impregnada de desprezo. — Passar por essa humilhação... Eu sempre achei que você tivesse mais
Era tarde demais. Meu corpo já estava caindo no abismo. O vento frio chicoteava meu rosto, e tudo parecia acontecer em câmera lenta. As luzes da cidade, antes tão distantes, agora se aproximavam rapidamente, borradas por lágrimas e pela velocidade da queda. Por um breve segundo, pensei que o impacto não seria tão ruim. Pensei que seria rápido, indolor. Mas a realidade foi muito mais cruel.Tudo escureceu.Então, veio o silêncio. Um silêncio absoluto, ensurdecedor, que parecia me consumir por dentro. Não havia mais vento, nem frio, nem dor. Apenas um vazio imenso que se estendia ao meu redor. Eu estava flutuando, ou talvez apenas existindo em algum espaço que não tinha forma, nem cor, nem tempo.Abri os olhos – se é que estavam realmente abertos – e vi meu corpo lá embaixo. Estava caída no chão, imóvel, contorcida de uma forma antinatural. A cena parecia distante, como se eu a observasse através de um véu fino e trêmulo. Pessoas começavam a se reunir, gritos ecoavam ao longe, e luzes v
~NICOLAS~Eu sabia que estava tarde, mas não conseguia deixar de continuar. O prédio estava vazio, com exceção dos poucos resquícios de funcionários que ainda estavam em seus escritórios. Eu estava sozinho, como sempre. O cansaço, no entanto, parecia me consumir mais a cada dia. Depois de três anos à frente do Grupo Sartori, a pressão não diminuía. Eu tinha cumprido minha promessa de reerguer a empresa após a morte do meu irmão gêmeo Enrico, mas o peso da responsabilidade me esmagava como se fosse o primeiro dia.A falência ainda era uma cicatriz visível, e o medo de um erro fatal nunca me deixava. Mas o trabalho, os números, as negociações, eram tudo o que me restava para me manter de pé.A noite se estendia à minha frente e eu me encontrava sozinho em minha sala, quase inconsciente do tempo que passava. Apenas a luz do monitor iluminava a escuridão ao meu redor. Mas, então, algo me tirou da rotina monótona. A silhueta de uma mulher atravessava o corredor vazio. Ela estava coberta po
~AYLA~Meus olhos estavam fixos no homem abaixo de mim, e, por mais que eu quisesse me mover, ele segurava minha cintura com tanta força, puxando-me contra ele, que qualquer tentativa de escapar parecia impossível. Um arrepio percorreu meu corpo, mas eu não sabia dizer se era devido ao frio ou pela forma como nossos corpos se tocavam de maneira tão íntima e inesperada.Ele era alto, com ombros largos e braços fortes. Seu rosto era angular, de traços marcantes, com uma mandíbula firme e bem definida. Os olhos, de um azul profundo, transmitiam uma frieza impenetrável, mas eram intensos o suficiente para prender qualquer um que se atrevesse a encará-los por muito tempo. O cabelo escuro, encharcado pela chuva, e a barba cerrada davam a ele um ar de mistério e poder.De onde eu conhecia aquele homem? Era possível que fosse da boate? Eles eram sempre de lá, não eram?De repente, uma pontada aguda explodiu na minha cabeça, como se algo tivesse sido arrancado à força do meu cérebro. Eu gemi b
Voltar para a boate parecia mais automático do que uma escolha consciente. A chuva já não era mais uma distração, apenas um incômodo que me lembrava que eu ainda estava viva. Quando atravessei a entrada dos bastidores, nem percebi que havia passado tanto tempo fora. Tudo parecia exatamente como eu tinha deixado. O barulho, as luzes, o cheiro de perfume barato. Nada mudava ali, nunca.Lorenzo estava esperando. Seu olhar fulminante me encontrou antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa. Ele cruzou os braços e deu alguns passos na minha direção, o som de seus sapatos ecoando pelo chão.— Nyx, você faz ideia do prejuízo que me causou hoje? — ele começou, a voz carregada de irritação. — Você saiu no começo da noite, faltou suas performances solo, e eu perdi dinheiro por causa disso! O que você acha que estamos fazendo aqui? Caridade?Eu tentei falar, mas ele me cortou antes que eu pudesse.— Não, porque aqui a única coisa que importa é o dinheiro! — Lorenzo continuou, gesticulando de
~NICOLAS~A pena branca, um dia presa a uma roupa de dançarina de cancã, girava entre meus dedos, subindo e descendo em movimentos calculados enquanto eu encarava o vazio. Era um gesto repetitivo, quase hipnótico, e o único pensamento que parecia me prender à realidade era Nyx. Desde o momento em que nossos caminhos se cruzaram naquele terraço, eu não conseguia tirá-la da cabeça. Sua presença se misturava com a sensação fria da chuva e o cheiro de desespero que parecia cercá-la. Algo nela havia me desestabilizado de uma forma que eu não esperava, e essa obsessão estava começando a me consumir de um jeito que eu não conseguia entender.A pena continuava entre meus dedos, o único resquício físico daquela noite. Era uma lembrança tão frágil quanto ela parecia ser naquele momento, pendendo à beira do abismo, enquanto eu, com uma estranha urgência, me apressava para salvá-la. Não sabia por que isso importava tanto, mas, de alguma forma, ela se tornara parte dos meus pensamentos mais profun
~AYLA~Lorenzo estava mais animado do que eu jamais havia visto. Seus olhos brilhavam com uma intensidade quase infantil, mas em vez de me contagiar, aquilo só me deixava desconfortável. Ele gesticulava freneticamente enquanto falava sobre os planos para o próximo sábado, a empolgação em sua voz beirando o exagero. Eu o observava à distância, recostada na cadeira do camarim, com os dedos entrelaçados no colo. Meus olhos vagueavam pelo espelho à minha frente, fixando-se em um reflexo que parecia estar em outro mundo, enquanto a sua energia invadia o espaço, preenchendo o pequeno camarim com algo que eu não sabia como lidar.A empolgação dele deveria me tranquilizar, talvez até me dar uma dose de confiança, mas, na verdade, só me fazia sentir ainda mais deslocada. Ele via tudo aquilo como um jogo, algo emocionante e lucrativo, enquanto para mim, era apenas uma questão de sobrevivência. A luta diária para lidar com o vazio dentro de mim parecia cada vez mais difícil de suportar, e Lorenz
O céu ainda estava começando a clarear quando Teri e eu finalmente chegamos em casa, depois de mais uma longa noite de domingo na boate. O silêncio das ruas contrastava com a agitação dos nossos corpos exaustos, e tudo o que eu queria naquele momento era um banho quente e minha cama. Meus pés doíam, e o cansaço pesava em cada músculo. Estava difícil até manter os olhos abertos.Enquanto nos aproximávamos da portaria do prédio, notei Vanessa e Raul conversando em voz baixa. Vanessa era minha vizinha, mãe solteira de dois filhos pequenos, sempre correndo para equilibrar a vida e o trabalho. Raul, o porteiro, era uma presença constante e tranquila, sempre com um sorriso no rosto, mas naquela manhã, ele parecia um pouco mais sério que o normal.Por mais que os adorasse, eu estava tão cansada que suspirei, desejando poder simplesmente passar por eles sem que nada fosse dito, mas Vanessa foi rápida em nos notar.— Vocês já sabem da novidade? — ela perguntou, a voz carregada de uma mistura d