Prólogo (II)

- Sinto muito.

Ah, se ela soubesse que Ana Clara não sentia!

Por um breve momento Ana Clara olhou à sua volta, temendo estar sendo observado por alguém. Respirou fundo e chamou o atendente, pedindo um cappuccino pequeno. Não esperava demorar-se muito por ali.

Os planos eram realmente rever parte da família que havia ficado na cidade e ir embora de vez para qualquer lugar. Riu sozinha. De que adiantava fingir para si mesma? Podia enganar a todo o mundo, menos o seu coração. Só voltou por ele... A fim de revê-lo a última vez na sua vida, para que pudesse seguir enfim seu caminho, sem as sombras do passado.

- Ainda somos amigas? – A outra perguntou seriamente.

- Preciso responder? – Ana Clara foi sarcástica, tentando deixar claro que a resposta era “não”.

- Quero que durma com meu marido.

Ana Clara olhou para a antiga amiga que estava escorada tranquilamente no encosto da cadeira, sem um sorriso que fosse no rosto. Achou não entender direito e começou a olhar o cardápio, pensando num doce para acompanhar o cappuccino. Estava nervosa e quando aquilo acontecia só um chocolate a acalmava e...

- Amiga, quero que durma com meu marido! – Ela disse de forma tão clara quanto o nome de Clara.

Ana Clara começou a rir. Se tinha uma coisa que sua amiga nunca fora na vida era divertida e brincalhona. Sempre diziam que era a loira doida e a morena sensata. Mas muito tempo passou e talvez a outra tivesse mudado e ganhado senso de humor.

- Eu estou falando sério. Por que acha que pedi que viesse aqui?

- Você nem sabia que eu estava na cidade.

- Mas soube assim que vi seu irmão. E marquei o encontro para lhe fazer este pedido.

- Está dizendo que viu Renan e decidiu na hora que queria que eu dormisse com seu marido? – Ana Clara riu, de forma debochada – Ok... Você não pode ter filhos e quer que eu gere o bebê de vocês na minha barriga? Ou... Deixa-me ver a outra hipótese... Você conheceu outro homem e quer se divorciar, mas não está com vontade de dividir a herança, já que é da sua família, então o acusará de adultério e...

O telefone de Clara tocou, fazendo-a calar-se imediatamente. Só uma pessoa tinha aquele número. E ela precisava atender.

- Você me deve a porra deste favor! – A mulher falou em tom de voz alto, chamando a atenção de um outro casal que estava ali.

Ana Clara jamais a viu alterar a voz ou mesmo falar palavrões. Ficou chocada e impactada não só com o pedido completamente louco e insano, mas também com a mulher que estava a sua frente.

- Eu... Não lhe devo nada. – Clara falou baixo, a voz quase inaudível, com um mar de lembranças invadindo sua mente.

O som do telefone pareceu não mais existir quando tudo lhe veio à tona: a grande quantia de dinheiro, o exame de gravidez... Sem contar as noites de abrigo, as mentiras não reveladas, tanto quanto as verdades. Aquela mulher havia mentido aos próprios pais para ajudar Ana Clara no passado, comprando uma briga com a família em prol da amiga.

- Eu nunca lhe pedi nada em troca. – A voz dela saiu com ressentimento e os olhos marejaram.

- Quanto tempo você planejou isto? Esperou eu retornar um dia para cobrar todos os favores que me fez no passado?

- E se fosse? Clara, eu fiz tudo por você. E nunca pedi nada em troca.

- Está pedindo agora. E uma coisa completamente absurda. Eu jamais faria isso. Aliás, “ele” sabe o que você está me pedindo?

- Não... Ele só sabe da parte que vou morrer.

Ana Clara fitou a amiga, incrédula. O celular voltou a tocar, de forma insistente. Não sabia se atendia ou deixava as emoções virem à tona depois da revelação.

- Atenda, por favor! – Ela pediu, percebendo que o som ensurdecedor não parava nunca.

- Fale! – A voz soou sem nenhum tipo de emoção.

- Fodeu tudo, Clara! Ele não morreu.

- Como... Assim?

Clara sentiu o rosto queimar-se e um frio espalhar por sua espinha, parando no estômago, o corpo ficando completamente travado, como de costume.

A outra, por sua vez, viu nos olhos verdes da amiga de infância todo o pânico que havia por trás da notícia daquela ligação:

- Clara, está tudo bem?

- Não... Não está... – Clara deixou o celular cair de suas mãos, espatifando no chão – Eu... Preciso de ajuda.

A mulher riu, de forma sarcástica:

- Mais uma vez? Voltamos no tempo?

Clara não falou nada. Parecia que o destino queria lhe pregar uma peça. A vida inteira aquela mulher a ajudou e justo quando lhe pedia um favor, por mais absurdo que fosse, Clara lhe negava. Eis que novamente precisava desesperadamente de socorro. E não havia a quem recorrer.

- Preciso de você! – Clara implorou, jogando fora toda sua soberba e orgulho que um dia teve.

- Eu ajudo! Em troca, você fará o que pedi. Dormirá com ele.

- Será só uma vez? – Clara ouviu-se perguntando, mesmo que sua mente implorasse para que sequer pensasse naquela possibilidade.

- Uma única vez é o suficiente.

Clara olhou para o telefone jogado no chão. E depois para a amiga. Por tanto tempo deixou as lembranças presas numa caixa, a qual usou tantos cadeados para impedi-la de ser aberta, guardando num lugar lá no fundo do seu coração, onde jamais imaginou conseguir resgatar.

Pôs a mão sobre a mesa e a outra enlaçou os dedos nos seus, com os meios corações dos dedos de cada uma formando um só, a tatuagem que haviam feito juntas com a promessa de que seriam amigas eternamente e sempre se ajudariam.

- Você precisa ouvir a verdade sobre o que aconteceu, Clara!

- Eu não quero ouvir... Por favor, não quero ouvir! – Clara fechou os olhos, apertando a mão da outra com força – Eu durmo com ele! Só preciso que me ajude... Não posso mais... Eu não aguento! – Se ouviu confessando, sentindo-se, depois de tantos anos, finalmente acolhida.

Dentre tantos inimigos, os antigos pareciam amigos.

Na sua cabeça ecoou a frase tão conhecida, lida milhares de vezes, na solidão de seu quarto: “Muitas vezes, por causa de um ato impensado meu com uma pessoa, terminei me afastando de outras que eram queridas.”

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