O corpo de Sigmund revoltou-se, animado pelos sentimentos que o mantinham submerso, se afogando em suas próprias angústias. O menino enxergava, mas não ouvia. O aroma do incenso, queimando no pagode, tão odiado, não podia ser sentido; o cheiro do cabelo de Ranna, perfumando o local, tão amado, não era possível de ser sentido. Enquanto tentava, fracassadamente, retomar o controle de seu corpo, observou o caminho até o monastério… o caminho até Ketu. Ketu aproximou-se, sentando-se próximo, recitando seus mantras. A visão de Sigmund turvou e seu corpo parou. Outros monges juntaram-se a Ketu, buscando alcançar Sigmund, mas o menino, ouvindo suas vozes, irascível, dificultou que o alcançassem. “Não quero vocês aqui!” Foi cerca de seis horas, sem sucesso para Ketu e seus monges. Percebendo que não desistiriam, Sigmund decidiu combatê-los agressivamente. Ainda era seu íntimo e ali ele era mais poderoso. Ao observar leves hemorragias nasais em alguns monges, Ketu gesticulou para para
Foi uma hora e meia de cochilo para Ranna, atrapalhado pelos monges entrando com as refeições. Ela banhou-se e ao voltar, Sigmund estava sentando. Ela correu, deixando o que estava fazendo para depois. — Filho meu, como está? Ranna observou que o púrpuro olhar do menino fora substituído por um castanho bem claro. Suspirou, preocupada, acariciando seu rosto. — Sigmund, está bem? — Ela insistiu. — Bom dia, minha mãe. Estou bem. Faminto. Vou ao banho. — Precisa de ajuda? — Acredito que sim, me sinto fraco. Dormi muito, talvez!? Ranna o pegou no colo, como não o fazia há algum tempo e o levou ao banho. Terminando, o arrumou e ambos tiveram sua refeição juntos. — Devo procurar Ketu Gyi para ir ao treinamento? — É bom que fale com ele, eu estarei em casa, tudo bem? — Sim, senhora. — Sigmund assentiu, terminando de comer. O menino deixou o quarto, guiado a Ketu, por um monge. — Bom dia, Maung Sigmund — cumprimentou Ketu que estava, como sempre, em posição de lótus, de olhos fechad
Sigmund observou Ranna aplicar seu chi para proteger-se, tornando a infusão menos letal. Sua alma começou a distanciar devagar, não tardando para a dor chegar e quanto mais distante, mais intensa era dor. A sensação de tristeza e solidão era maior, frente ao corpo imóvel de Ranna, vendo sua pele empalidecer. Sigmund manteve-se concentrado, lutando contra si enquanto buscava uma forma de lidar com aquilo. Observou o elo, que os ligava tão intimamente, esticado, vibrando. “Este é o motivo da dor, provavelmente.”, presumiu. “Se é uma ligação emocional, só pararei de sentir quando ela morrer ou quando conseguir me desprender…”, refletiu, balançando a cabeça. “Não posso deixar de amá-la, ela me deu a vida! Vulnerável, pensando nos outros, tenho uma responsabilidade com ela.”, argumentou, consigo. Os momentos finais do exercício ocorreram com os sinais de fadiga e o suor espalhando-se por ela até seu retorno efetivo ao corpo. Sua demora para despertar foi inquietante! — Sigmund — cha
Sigmund despertou, saltando da cama. Olhou ao redor buscando pelo mau espírito. Ouvindo-o, Ava correu para acudi-lo, deixando o que fazia. — Calma… estou cozinhando para levá-lo em casa — disse, deitando-o. — Você está bem, na minha casa. Lembra o que aconteceu? — Tarusa. Acertou o ombro e caí. Pedi para parar e ele chutou, deve ter machucado porque senti um gosto estranho. A peta enraiveceu e falou e puniu! Não quero mais, Ava Gyi… — O menino chorou. — Não aguento! Estou cansado, não quero mais! Fiz tudo certo, aguento diariamente e não é suficiente!? Ava Gyi, precisa me curar, me consertar! — Me perdoe, maung! — disse Ava, impotente, abraçando-o. — Não sei o que acontece e por isto não posso oferecer mais ajuda. Preciso que seja forte, quero te ajudar. Então, conversa comigo. — Não quero. Não aguento. Continua doendo. Todos fingem que não acontece. Não aguento! Ava Gyi, me ajuda! — Ele implorou. Ava o abraçou forte e Sigmund chorou até desfalecer em seu colo. *** Sigmund acord
Sigmund despertou com Ava o banhando com um tecido úmido, olhou ao redor e, apesar da visão embaçada, identificou estar em casa. Ava sorriu, aliviada ao vê-lo desperto. — Bom dia, maung. Como está? Presumo que faminto! — Ela sorriu. — Sim. Posso me banhar, Ava Gyi. Não se preocupe. — Ele sentou. — Claro que me preocupo, maung! Você dormiu sete dias ininterruptos. Os únicos sinais de consciência que observei foram nos momentos inquietos das sessões de Ranna. Como se sente? — Os olhos estão pesados, a visão está embaçada, mas estou bem, Ava Gyi. Faminto! — exclamou, sentindo o estômago reclamar. — Terminarei de banhá-lo e trarei a refeição. Mi Ranna está descansando, teve um péssimo desempenho nas sessões esta semana, logo está muito cansada. Mantive você nutrido e hidratado com o chi, mas, nos próximos dias, você precisa se alimentar e beber bastante água. — Sim, senhora! — assentiu Sigmund, se ajeitando para ajudar Ava. Ao fim do banho, Ava o trouxe uma refeição leve e um lahpe
Sigmund despertou, deitado em uma cama confortável. Observou o cômodo e a arquitetura era diferente. Uma das velas de um castiçal, próximo à porta, mantinha o nível baixo de luz possibilitando-o ver a acomodação. As paredes eram ornadas com escritos, acesos com um leve brilho fátuo. Havia uma mesa de cabeceira próxima — com livros e cadernos de partitura em branco, canetas-tinteiro e tinta nas gavetas. Um jarro com água e uma caneca de barro vazia, estavam sobre a pequena mesa. Sigmund sentou, observou estar vestindo calças largas; o tronco estava enfaixado, embebido por um unguento de cheiro bom. Ele se levantou e foi ao armário nos pés da cama, onde encontrou alguns quítons — vestes gregas — negros, sandálias de tamanhos variados, feitas com tiras de couro trançadas. Uma partitura estava entalhada no interior do armário, o que dava sofisticação ao simples móvel. Dado o nulo contato, Sigmund entendeu as notas musicais como iguais aos caracteres na parede. Deixando o quarto, ele
— Criança, precisa lavar o rosto antes do jantar — chamou Althea. Ela segurava uma bacia com água e uma toalha limpa. Sigmund acordou, lavou o rosto e o secou na toalha, manchando-a com as lágrimas negras. Ele acanhou-se ao vê-las e desconcertado, disse: — Desculpa sujar a toalha. — É só uma toalha. — Althea sorriu. — Sujamos todas para que não as chore. Uma criança não deveria derramá-las. É triste, mas reparável. — Creio que ninguém normal deveria chorar assim, não!? — Elas percorrem um longo caminho do interior de nossa alma até se manifestarem através de nossos olhos. Carregam consigo sentimentos e memórias, bons ou ruins. Às vezes, carregam parte de nós e estas são as piores! Pois, levam este pedaço embora, de forma irreversível. Ela deixou a bacia sobre a mesa de centro e caminhou com Sigmund. — Temos três refeições no dia, uma ao amanhecer, uma à tarde e uma à noite, opcionalmente há uma refeição antes de dormir. São quarenta sacerdotes, incluindo-me, no templo. Então, s
Althea tocou por alguns minutos, mas cessou, dando-o um lenço. — Isto é estranho. Como faz? — perguntou, aturdido e letárgico, pegando o lenço e enxugando seu rosto. — Para haver boas mortes, é preciso cultivar boas vidas. É nosso dever curar. Então, produzimos conhecimento. Sentimentos e pensamentos ruins podem ser nocivos e essa canção, quando aplicada em pessoas pouco treinadas, nos possibilita remover parte das mazelas emocionais e psicológicas, facilitando nosso trabalho. Elas podem voltar a ser acometidas, mas cultivando bons hábitos, isto pode ser evitado. — Entendo… por isto o alívio estranho e a lentidão. — Sim, ontem a toquei, mas não apliquei minha sinfonia, logo ela fez seu dever rasamente… O que aprendeu com os monges sobre sua sinfonia? — questionou Althea, estimulando-o a conversar. — Não mais do que sabia. Eles ajudaram com o lethwei… depois que Ranna começou a morrer, ficou ruim. Era difícil! Quando eu treinava e ela praticava, eu sempre atrapalhava todos. Precisa