Um

Oito anos depois...

Esther Mendonça

Termino de calçar o meu par de sandálias e antes de sair do quarto me vejo na obrigação de agarrar o canivete que sempre ficava na segunda gaveta de minha penteadeira, eu o seguro e repito o meu hábito diário, o enfiando naquelas fotos que ficavam na parede do meu quarto. As fotos do homem que eu mais odiava no mundo já possuiam diversos furos, todos frutos do canivete que eu sempre usava para rasgá-las e relembrar a mim mesma que eu tinha que odiá-lo para sempre pelo o que ele fez com a minha irmã, pelo que fez comigo.

Procuro deixar toda a minha raiva dentro daquele quarto quando saio dele e me deparo com a tia Luiza na cozinha, colocando a mesa de café da manhã. Deposito um beijo em seu rosto e me sento em uma das cadeiras.

- Nadja ligou enquanto você estava no banho, disse que tinha algo que você ia gostar.- Ela avisa enquanto deposita uma jarra de suco de laranja em cima da mesa

- Ela não disse o que era?- Pergunto enquanto arranco um pedaço de um pão e o levo até a boca, bebendo do suco em seguida

- Não, só disse que tinha conseguido algo que você tinha pedido.- As suas palavras fizeram com que eu me levantasse imediatamente da cadeira, e corresse até a saída ansiosa. Se era o que eu estava pensando, então eu finalmente iria conseguir o que tanto queria

- Eu tenho que ir.- Aviso antes de passar pela porta da sala praticamente correndo e deixar a casa

Não demorou muito até que eu chegasse na casa de Nadja e estivesse parada em frente a sua porta, esperando que ela a atendesse. O seu rosto sonolento surge quando ela abre um pouco a porta e eu a atropelo entrando na casa, antes mesmo que ela faça o devido convite.

- Tia Luiza me avisou do seu recado, me diga que você conseguiu.-

- Eu consegui, Esther. Falei com uns amigos no RH e soube de uma vaga.-

Eu precisei me sentar no sofá pra digerir o que Nadja acabava de falar, eu e ela sabíamos muito bem que isso se tratava de tudo, menos de uma entrevista de emprego. Se tratava da oportunidade que eu esperava há oitos anos, da oportunidade que eu não tirava da minha cabeça e que era tudo o que eu precisava.

- Tem certeza de que quer isso?- Nadja questiona em um tom preocupado, eu sabia que ela não aprovava isso. Ela se senta ao meu lado no sofá

- Eu preciso disso, Nadja, você sabe o quanto é importante pra mim. Só quando eu fizer aquele homem pagar estarei em paz.-

- Você não sabe se ele é o culpado.-

- Ele era o único que estava com a Cecília naquele dia e no mesmo lugar. Eu sei bem o que acontece com homens ricos e privilegiados como ele, fazem o que querem da vida e não pagam por seus erros porque o seu dinheiro encobre tudo. Mas eu vou fazê-lo pagar, Nadja, ele vai pagar por ter tirado a minha irmã de mim.-

- Se ele realmente tiver...você sabe, matado a Cecília. Não pensa que ele pode ser perigoso e fazer o mesmo com você quando descobrir que você está na empresa pra se vingar dele?-

- Isso não vai acontecer, e se acontecer, ele já estará atrás das grades. Mas antes vai sofrer tudo o que fez Cecília e a nossa família sofrermos.-

- Eu tenho medo quando você fala assim, sabia? Sempre que fala sobre ele tem ódio no olhar.-

- É o que eu sinto.- Dou de ombros

- Só não faça nada do que vá se arrepender depois.-

- Eu não vou.- Garanto

- Você vai ter que deixar a sua família, a sua tia, o seu namorado, vai ter que deixar o estado. Está disposta a fazer isso tudo por um desejo de vingança?-

- Você sabe a resposta, e não é simplesmente um desejo de vingança, é por justiça.-

- Tudo bem, eu não vou contestar mais.- Ergue os braços em rendição- Eu tenho que voltar pra São Paulo amanhã, então arrume as suas coisas e esteja preparada, partiremos pela manhã.-

- Obrigada, Nadja. Você sabe o que isso significa pra mim.-Agradeço com um sorriso triste - Eu tenho que ir, vou me encontrar com William.-

William é um policial amigo da família, ele nos ajudou e apoiou muito quando Cecília morreu. Ele tentou ajudar o máximo que pôde na investigação, mas não tinha achado um culpado para a morte de minha irmã. Quer dizer, eu sabia perfeitamente que Victor Hugo Ferraz tinha sido o responsável por matá-la, mas a polícia alegou que ele foi interrogado e que não haviam provas que o culpasse do assassinato, claramente uma mentira que inventaram para limpar a sua barra.

Os Ferraz eram conhecidos pelo seu enorme negócio de café em São Paulo, eles lideravam o ramo, e era exatamente em uma de suas empresas que eu iria me infiltrar, Nadja conseguiu um emprego que eu almejei por anos. Sei que eu não era a única que desejava trabalhar naquela empresa tão renomada, mas os motivos dos outros eram diferentes do meu, eu estaria lá apenas por vingança e justiça.

William não escondeu a sua reação de surpresa quando me viu entrar no gabinete da polícia, fazia algum tempo que não nos encontrávamos e talvez ele tenha pensado o impossível, que eu tinha desistido.

- Esther.- Ele se aproxima repousando o palmo de sua mão em minhas costas e me guiando para a sua sala - Vem comigo.-

Quando adentramos no cômodo, ele fecha a porta e as persianas das janelas de vidro, impedindo que os que estivessem do lado de fora nos vissem.

- O que faz aqui?-

- Perdão por não ter avisado que viria, mas eu precisava falar com você. Eu consegui um emprego na Café Ferraz, estou indo embora para São Paulo amanhã.- Revelo e o vejo ficar boquiaberto, como se tentando digerir o que eu tinha acabado de falar

- Então você conseguiu no final das contas.-

- Eu estarei perto do Ferraz, William. Finalmente vou poder conseguir as provas suficientes pra mandar aquele miserável pra cadeia, onde ele deveria estar há muito tempo.-

- Esse é um passo muito importante, Esther. Você vai precisar agir com a razão quando estiver lá, sei que o odeia muito mas em nenhuma circunstância vai poder demonstrar esse ódio por ele. Se ele desconfiar de alguma coisa, pode agir contra você e cuidar pra te eliminar como fez com a Cecília, você vai precisar ser muito sutil, está me entendendo?-

- Eu sei, espero por isso há oito anos e não vou colocar tudo a perder.-

- Tudo bem, então você vai se aproximar dele lentamente. E quando achar que é seguro o suficiente, vai procurar as provas que tanto precisa, e vai me mandar tudo o que for conseguindo. Eu vou guardando tudo pra termos provas o suficientes e montarmos um caso contra ele.-

- Acho que você é o único que acredita em mim de verdade.- Sorrio sem vontade

- E vou continuar acreditando, você sabe que pode contar comigo para o que precisar, não é?- Pergunta e aceno com a cabeça em confirmação- Ótimo, então vá e faça a justiça que a Cecília merece.-

Já é noite e estou deitada em minha cama com a minha cabeça no peito de Nicolas, ele acaricia os meus fios castanhos e ficamos em silêncio apenas aproveitando a presença um do outro. Ele tinha chegado há meia hora e eu estou até agora buscando coragem pra dizer a ele que vou embora, eu sei o que ele vai pensar disso tudo.

- Está tudo bem? Tá tão calada hoje.- Questiona descendo a mão do meu couro cabeludo passando pela minha nuca e indo em direção as costas, onde os desliza ali em movimentos suaves

- Nós temos que conversar, Nicolas.- Aviso e ele me encara, esperando que eu fale - Nadja conseguiu um emprego na Café Ferraz.- As palavras fazem com que ele se levante da cama abruptamente, ficando em pé a minha frente

- Não, não venha com essa história de se vingar de novo, Esther. Achei que você já tivesse esquecido isso, fazem oito anos.-

- Eu não esqueci, Nicolas.- Me levanto parando em sua frente- Eu só parei de comentar com você porque via que já estava cansado disso, de me ver sempre falando sobre.-

- E com razão, você está completamente obcecada por isso.-

- Você sabe o que significa pra mim, eu não posso simplesmente esquecer. Sabe o quanto eu esperei por isso.-

- Essa merda fica em São Paulo, Esther.- Ele aponta com a mão e quando permaneço em silêncio ele entende - Não...-

- Eu preciso ir, Nicolas.-

- Está dizendo que vai me deixar, que vai deixar a gente pra ir pra São Paulo concluir a sua vingancinha?-

- Não menospreze isso. E eu não vou te deixar, nós vamos nos falar todos os dias e...-

- Não acredito que estou ouvindo isso.- Ele me corta rindo com escárnio, ainda desacreditado - Você sabe o que vai acontecer se você se for, Esther, vai ser o nosso fim.-

- Não precisa ser.- Insisto tentando alcançar a sua mão, que é afastada com rapidez por ele, assim como ele, que recua alguns passos para trás se distanciando de mim - Nós podemos manter isso, Nicolas, basta querer.-

- A questão é que eu não quero. Você deve decidir se está disposta a abandonar tudo o que ama pra se vingar daquele CEO, ou se finalmente vai esquecer toda essa merda e seguir a sua vida como deveria ter feito há oito anos atrás.-

- Você sabe que eu não posso esquecer.- A primeira lágrima desce, molhando a minha bochecha

- Então terminamos aqui.- Decide se virando para ir em direção a porta

- Nicolas.- O meu chamado é ignorado por ele, que sai batendo a porta com força. Mas eu não desisto e corro atrás dele, conseguindo passar em sus frente e impedir que ele abrisse a porta e saísse, eu agradecia por minha tia estar dormindo e não presenciar essa cena, se bem que eu duvido que os gritos não a tenham acordado

- Me esqueça, Esther. Você fez a sua escolha.- Ele me empurra de sua frente e atravessa a porta, indo embora.

Eu sabia o que estava sacrificando, sempre soube que podia perder muitas coisas e pessoas no caminho. Mas eu devia isso a Cecília, eu deveria estar do lado dela cuidando e protegendo ela, mas não fiz e as coisas terminaram como terminaram.

Mesmo já prevendo que perder Nicolas era uma possibilidade, o meu coração estava partido por saber que eu o tinha perdido para sempre. Abracei o meu travesseiro e permiti que as lágrimas caíssem sem controle por toda a madrugada.

A noite pareceu ter durado uma eternidade, e agradeci aos céus quando o sol surgiu e me levantei para me arrumar e finamente ir. Eu tinha decidido que não iria me despedir da minha tia, eu não iria aguentar ver mais alguém tão decepcionado comigo, não depois de ver como Nicolas ficou ontem a noite, eu não ia suportar isso da minha tia também. Então tudo o que fiz foi escrever uma carta, eu expliquei brevemente nela que precisava ir e que assim que conseguisse me estabilizar por lá, a buscaria para viver comigo.

Eu esperava por Nadja no aeroporto, os meus pés se agitavam, balancando sem parar, os meus dedos tamborilavam nos braços da cadeira, certamente a minha ansiedade e nervosimos era notável para qualquer um que chegasse perto o suficiente. Não demorou muito até que ela chegasse, e senti um alívio quando conseguimos embarcar.

Era a primeira vez que eu saía de meu estado, mas eu não estava nem um pouco preocupada em sentir como era viajar de avião pela primeira vez, ver ou conhecer coisas novas. Eu não via a hora de chegar onde eu queria. Quando pousamos na cidade, nós passamos primeiro no apartamento onde ficaríamos, que era do pai de Nadja, nós deixamos nossas coisas por lá e nos vestimos para ir para a empresa.

Sinto um arrepio percorrer o meu corpo quando paramos em frente ao grande prédio, permaneço imóvel ali.

- Seja bem-vinda a Café Ferraz.-

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