Amor em dobro

Ao acordar a primeira coisa que Tábata registrou foi o cheiro delicioso de café impregnando o ar. Seu estômago gemeu de apreciação, imaginando que o caçula em breve a sacudiria para tomarem o café em família. Foi o silêncio que a despertou para sua realidade, a fez sentar na cama e olhar ao seu redor com o coração apertado.

Não haveria mais nenhuma refeição com sua família. Foi expulsa da casa por eles.

Tombou o corpo novamente na cama, olhando cegamente para o teto branco, pensando no que fazer dali em diante.

Do momento em que recusou a proposta de abortar do pai de seu bebê, até falar para seus pais sobre a gravidez, teve tempo para pensar nas consequências. Apesar de suas desavenças com a mãe, tinha uma vida estável, um trabalho garantido e teto seguro. E abriu mão de tudo isso ao decidir ficar com a criança.

Agora estava perdida, na casa de um quase estranho.

Suspirou ao pensar em Guilherme. Ele tinha ilustrado todos os seus sonhos juvenis, a maioria sem uma gota de pureza. O nome dele ao lado do dela lotou páginas de seus cadernos e diários. Teve um tempo que o imaginou como seu marido, pai de seus filhos, recordou deslizando a mão no montinho abrigando seu bebê.

Sabia pouco sobre ele. Somente os fragmentos que arrancou do primo discretamente. Guilherme admirava o pai, mas jamais falava da mãe e quando era questionado sobre se fechava. Morava sozinho e trabalhava em um escritório de advogados. Era brilhante e bondoso.

Deveria ser o suficiente para uma pessoa que passaria alguns meses na casa dele, mas Tábata queria saber mais. Porém, fazer perguntas significaria responder as que ele fizesse e no momento fugia de sua própria história.

O cheiro delicioso voltou a flutuar por suas narinas e seu estômago roncou, deixando-a consciente que não comia nada desde o almoço em que revelou sua gravidez. Na noite anterior Guilherme ofereceu o jantar, mas recusou dizendo não ter fome. Talvez ele tivesse razão ao dizer que não estava se cuidando direito, concluiu se levantando para pegar sua mochila antes de ir para o banheiro.

Parou em frente ao espelho e, como de costume, examinou seu rosto. Sua ascendência oriental era óbvia em seus traços, mas, diferente de seus pais e irmãos, seus olhos não eram tão amendoados e as íris eram castanho claro, ao contrário dos tons escuros deles, sua pele oliva também se destacava perto da pele em tom mais claro deles.

Essas pequenas discrepâncias lhe causaram grande amargura na infância e, admitia, ainda causavam. Certa vez seu irmão mais velho disse que ela foi encontrada no lixo do antiquário e que, por pena, o pai a pegou como filha. Mesmo anos após o ocorrido, e de seu pai garantir ser uma brincadeira do primogênito, ainda sentia a dor e a humilhação. O fato era que sentia ser verdade toda vez que sua mãe a castigava pelo mínimo erro que fosse, e até quando não fazia nada incorreto.

Seu bebê jamais passaria por isso, prometeu deslizando a mão pelo ventre. Embora o pai não o quisesse, estava disposta a dar amor em dobro, a cuidar e proteger em dobro para que sua criança crescesse em um ambiente saudável e feliz.

Afastando os pensamentos negativos, fez sua higiene matinal e arrumou as pequenas coisas que trouxe. Minutos depois entrou na cozinha e se surpreendeu ao ver Guilherme preparando panquecas.

— Sabe cozinhar?

Guilherme colocou mais uma panqueca em uma travessa e a olhou com um sorriso que fez o coração de Tábata disparar.

— Aprendi com meu pai.

— Eu só sei fazer miojo — ela disse ao sentar. — Minha mãe diz que teria sido melhor se eu nascesse homem — comentou ao mesmo tempo em que guardava para si que quando zangada sua mãe dizia que o melhor era ela nem ter nascido.

— Discordo. Seria uma injustiça. — Tábata sentiu a face esquentar com o gracejo, agradecendo a pele oliva que ocultava qualquer sinal de corar. — Como vai ficar comigo por alguns meses, se quiser posso te ensinar— ele ofereceu enchendo um copo de suco de laranja para ela.

— Sou péssima com medidas — contou aceitando a bebida.

— É questão de costume — ele retrucou deslizando na direção dela um prato repleto de panquecas. — Precisará saber o básico se pretende criar seu bebê sozinha. — Tábata assentiu pensativa, observando a mesa preparada pelo Perez, com as panquecas, uma garrafa de café, mini sanduíches, bolachas, frutas e o suco de laranja. — Você e o bebê precisam se alimentar bem — ele concluiu se sentando ao lado dela.

O observou com atenção, estranhando - não pela primeira vez - todo o zelo dele com ela e seu bebê. Deu de ombros pegando ansiosa um mini sanduíche. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar, e gostava desse cuidado, de ser mimada depois de tantos anos sendo rejeitada e ignorada, concluiu respirando fundo para aliviar a pressão no peito e o formigamento nos olhos. Antes da gravidez controlar as emoções era mais fácil, agora tinha vontade de chorar por qualquer coisa.

— Está bem? — Guilherme se aproximou preocupado, colocando uma mão em seu ombro e se inclinando para observar seu rosto.

— Sim, é só... a gravidez e tudo mais... — falou calma, mas o choro já se alastrava por sua voz.

Então Guilherme a surpreendeu ao abraça-la, os braços fortes estreitando seu corpo contra o dele, seu calor confortando-a e seu cheiro amadeirado envolvendo-a.

Com as mãos imobilizadas de um jeito estranho contra o peito dele, Tábata ficou sem reação.

— Ficará bem — ele sussurrou contra seu ouvido, a respiração espalhando um calor inusitado pelo corpo dela. — Te ajudarei em tudo que precisar. — Tábata tinha vontade de desvencilhar as mãos e puxá-lo para mais perto, precisando de aconchego, mas o que ele disse em seguida a lembrou de qual era sua posição naquela história.  — Para isso servem os amigos.

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N/A: Um homem prendado é tudo. Taby sortuda. Será só amizade? Respostas nos próximos episódios <3

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