A empregada é esposa do dono de terras
A empregada é esposa do dono de terras
Por: Anne Azevedo
Capítulo – 001

Stella está sentada de frente para a janela do segundo andar, ela está aqui, pois a janela fica próxima ao quarto do pai, de onde pode se ver toda a extensão da bela propriedade que seu pai arrendou há dez anos atrás, quando sua vida era bem diferente. Tanto trabalho e esforço para no fim terminar sua vida em total miséria. Sua mãe ainda estava viva e seu pai ainda não estava doente, ainda tinha alegria de viver, quando decidiu arrendar a propriedade. Stella se sentou ali para apreciar a beleza dos campos, que encantaram seu pai e que o fizeram permanecer ali por tanto tempo. Agora, seus dias ali estavam contados, era questão de tempo até que tivesse que ir embora, exatamente o tempo de vida do seu pai.

O médico desenganou completamente o homem, não havia mais esperança para ele e mesmo que tivesse, de certo não teriam recursos para o tratamento.  No momento tudo estava quieto, o silêncio prevalecia por toda a casa, mas quando passasse o efeito do analgésico voltaria a escutar os gemidos de dor do pai. Eram dias e noites intermináveis, não aguentava mais ver o pai naquele estado mas cuidar dele era sua responsabilidade e ela fazia com muito amor. Infelizmente ela era filha única e não tinha parentes próximos, então era ela por ela mesma, para cuidar do pai e em breve somente de si mesma. 

Algumas pessoas vinham visitar o pai e ajudavam como podiam, se não fosse a caridade dos vizinhos e conhecidos seus dias seriam bem mais difíceis, eram eles que mantinham o lugar funcionando, fizeram vários mutirões. Na época do plantio para plantar, na época da colheita, para colher. E, ainda ajudavam financeiramente, no início, ela tinha muita vergonha, mas as economias que o pai guardava para dar como dote no seu casamento, não conseguiu os manter por muito tempo. Até aquele momento não havia se dado conta do quanto se gasta para manter uma propriedade como aquela funcionando, não era tão grande, mas era trabalhoso além de suas forças, sua estrutura física não ajudava, era baixa e magra, ninguém considerava- a mais que uma adolescente, porém ela já contava com seus vinte e um anos. Suas amigas já estavam todas casadas a essa altura, ela teve que abrir mão disso para cuidar do pai, no entanto ela não se arrependia disso um só segundo. 

Se dependesse do dono da propriedade o Sr. Brice, com certeza já estaria na rua, mesmo depois de tantos anos em que o pai de Stella não deixou atrasar nenhum só mês, a primeira coisa que fez foi perguntar como seriam honrados os pagamentos. Insinuando que havia outros modos para Stella pagar o aluguel. O que fez Stella perceber que quando o pai sucumbisse, ela não estaria segura nem por um minuto naquele lugar.

Era fim de tarde, o Sol estava se pondo, as cores tão vivas, nem parece que se apagariam em alguns instantes e dariam lugar às estrelas e a lua. 

Ela segue para o quarto do pai, ele ainda não acordou, mas já era possível ouvir seus gemidos de dor. Isso é torturante, ela não suporta mais ouvir, ela se sente muito culpada, não quer deixá-lo sozinho. Ele acorda:

- Stella...

- Sim, papai, estou aqui. 

- Tenho... sede...

A voz dele é tão baixa que Stella mal consegue distinguir as palavras do pai. Ela pega a jarra e coloca a água no copo, apoia a cabeça do pai e vai dando a água em pequenas porções. O pai está com olhos tão distantes, é possível notar que ele já desistiu da vida. É inútil chamar o médico, ele já veio dois dias atrás e o desenganou totalmente, disse que não há nada a fazer, apenas esperar pelo fim. 

- Filha... chegou o fim... eu te amo... minha pequena estrela. - Diz isso com muita dificuldade.

- Não fala isso papai,  não me deixa,  fica comigo. 

Stella diz isso debruçada sobre o pai, chora convulsivamente, o homem ainda respira, mas não emite mais nenhum som, é inevitável, chegou ao fim a vida de seu pai. Ela não é forte o suficiente para permanecer ali, enquanto ele expira, não consegue ficar ali. Sai do quarto um pouco desnorteada, não sabe para onde ir, talvez seja o fim para ela também, afinal,  o que esperar do futuro, quando ela nada tinha. 

Ela vai em direção ao campo,  sabe que bem no final há um penhasco, mas ela acelera cada vez mais o passo até chegar a uma corrida frenética, o ar luta para entrar em seus pulmões, mas ela não se importa com isso, nem com seus músculos queimando em reclamação ao esforço repentino. Ela já pode ver o horizonte além do abismo, sabe que está perto o fim e se sente confortada, em breve estará junto dos pais. 

A pressa pelo fim a distrai e Stella tropeça, não viu uma pedra que estava ali, o abismo está tão perto, ela cai e b**e a cabeça, não sabe se conseguiu seu objetivo, apenas tudo se apaga.

Depois de algum tempo ela desperta, está deitada no chão, bem próxima ao penhasco, é ridícula a proximidade, mas se quiser pode levantar dali e ir para casa, ou se jogar no penhasco, no entanto, ela não tem coragem para fazer nenhuma das duas coisas, só fica ali olhando para o céu e as estrelas. Esse era o apelido pelo qual o pai a chamava e foi assim que ele a chamou pela última vez. Estrela, no entanto, perdera o seu brilho.

Ela um dia pensou que teria uma vida, que iria se apaixonar, casar ter filhos e quem sabe um dia ter a sorte de ver netos. Mas isso nunca esteve tão distante de acontecer, perdeu toda a sua perspectiva de futuro e agora, até o pouco  que ela tinha se esvaiu de suas mãos, como água. 

Olhando para o céu encontrou um pouco de paz, lembrou das vezes em que acampou com os pais e depois da morte da mãe, era somente ela e o pai, em tudo, o acampamento foi só uma dessas coisas. Stella sempre dava trabalho para o pai na hora de dormir, queria todas as vezes ver uma estrela cadente, se recusava a dormir antes disso, raramente via uma. Mas hoje, quando ela mais precisa, uma estrela cadente cruza o céu. Ela sabe que se pedir o pai de volta não terá sucesso, então pediu algo mais realizável, pediu para encontrar o amor da sua vida. 

Parece obviamente um pedido bobo diante situação em que se encontra, mas se era para ter uma vida miserável de qualquer maneira ela teria o consolo de um dia ter amado e ser amada. Poderia ter pedido pela vida do pai, porém ela sabia que ele havia desistido da vida antes da doença,  quando a sua mãe morreu. Uma vez o pai lhe disse que o amor é que fazia a vida valer à pena, ela neste momento achava que a sua não valia de nada pois todos que amava já estavam mortos. 

Depois que a estrela desapareceu ela adormeceu ali mesmo, não importava muito onde estava, a verdade é que estava cansada, os olhos foram cedendo ao peso do sono e ela então dormiu, tranquila e profundamente, não havia nenhum risco ali, só queria descansar um pouco de sua vida, até que tivesse que encarar a realidade de frente. Porém isso podia esperar, agora queria apenas dormir e foi o que fez.

Quando o céu começou a mostrar seus tons de azul celeste e estava amanhecendo, Stella despertou, o mundo parecia tão tranquilo, tão seu, mas a verdade é que ela não tinha nada e a partir de hoje teria que enfrentar o mundo por si mesma. Ainda bem que já tinha idade o suficiente para decidir sua própria vida. Decidiu retornar para a casa, que não seria mais seu lar, mas que era onde teria que encarar seu dia de hoje.

Quando voltou tudo estava silêncio, da mesma forma como havia deixado, ainda bem que não haviam mais bichos na propriedade, com as dificuldades, tiveram que se desfazer de todos, porque ela deixara a porta aberta, algum poderia ter entrado e quebrado algo pelo qual ela não poderia pagar. 

Subiu até o quarto onde jazia o corpo de seu pai, constatou que ele estava mesmo morto, algo que ela já sabia, mas mesmo assim confirmou. Sua expressão parecia em paz, quem olhasse, não imaginaria o quanto sofreu. Voltou ao seu quarto e preparou um banho, enfrentaria seu dia com dignidade, depois de limpa, desceu e preparou o café da manhã, embora não tenha tocado em nada do que preparou. Se perdeu em seus pensamentos, lembrou de quantas vezes levantou cedo para preparar o café para o pai, agora, tudo parecia tão distante e até mesmo inútil, se soubesse que o pai tinha tão pouco tempo, passaria mais tempo com ele, não desgrudaria um só segundo dele.

Estava tão perdida em seus pensamentos que somente depertou com alguém batendo à porta, nem havia escutado o som da carruagem se aproximando da casa. Ela torce para que não seja o propietário, ele não é nada confiável e Stella não se sente segura perto dele, preferia morar nas ruas da cidade mais próxima a ceder aos caprichos daquele homem. 

Sentiu um imenso alívio quando viu o reverendo Raul em sua frente, se jogou nos braços dele e desandou a chorar, não foi preciso que ela dissesse uma palavra para que ele entendesse o que havia se passado. Stella confiava muito nele, o tinha como um irmão mais velho e ele lhe havia dito que ela se parecia muito com sua irmã mais nova. Desenvolveram uma amizade muito sólida, ele lhe havia dito que não se preocupasse com seu futuro, pois ele já tinha lhe encontrado um emprego, em uma propriedade distante de um primo dele. 

- Ele não resistiu Reverendo, ele desistiu essa noite, eu me sinto muito culpada, pois não consegui ficar com ele, eu o deixei sozinho.

- Não se culpe, pequena, você fez tudo o que pôde, nosso Senhor sabe disso. 

O que ele disse não foi grande coisa, mas acalmou o coração de Stella, ele tratou de todo o resto, o funeral do pai, os acertos com o proprietário, tudo. Todos diziam que o reverendo era de uma família muito abastada, ninguém entendia porque ele havia decidido seguir esse caminho, onde gastava tudo o que possuía com os pobres, ela considerava isso muito nobre, ainda mais agora, em que ela havia precisado muito da generosidade dele.

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