Cinco anos depois…
Certa manhã, uma rajada repentina de vento derrubou algumas folhas e arrastou-as pela calçada na frente de uma modesta casa localizada num dos bairros mais perigosos devido à presença de criminalidade na Zona Oeste de Bari.
Luísa cerrou os olhos, sentindo a brisa entrando pela janela, enquanto via as cores das notas musicais de uma canção que costumava tocar. Ela tinha algo chamado sinestesia — uma condição que fundia os seus sentidos e se misturavam automaticamente. — Ela continuava absorta na canção que ressoava em sua mente quando o celular vibrou em sua mão. Após abrir as pálpebras, ela olhou para a tela brilhante em vão.
Ela havia se empenhado tanto para preparar o jantar para comemorar o aniversário do marido na noite anterior, e até havia deixado o filho com a sogra; no entanto, ele não voltou para casa. Luísa chegou a mandar diversas mensagens para o marido, mas ele sequer respondeu às mensagens ou atendeu às suas chamadas.
Afastando-se da janela, suspirou pesadamente e jogou-se sobre o sofá. Inesperadamente, o nome de seu marido apareceu na tela do smartphone.
— Oi, amor, por que não veio para casa ontem? — Exasperada, Luísa indagou.
— Ah, isso é tão bom! — A voz feminina ecoou do outro lado da chamada. — Diga que sou melhor do que a Luísa! — Aquela era a voz de Fiorella.
— Você é perfeita, a sua irmã não chega aos seus pés. — A voz masculina respondeu.
— Fiorella! — Atordoada, Luísa chamou o nome da meia-irmã, mas não obteve respostas.
Do outro lado da chamada, só vinha o som dos beijos misturados aos gemidos em uníssono. Luísa esperaria que ele a traísse com qualquer outra pessoa, mas nunca pensou que sua meia-irmã seria capaz de tal coisa. Ela foi até a sala de refeições onde a mesa ainda estava posta. Puxou a toalha vermelha com tanta força que as louças se espatifaram no chão junto à lasanha que havia preparado.
Nervosa, Luísa saiu de casa e andou algumas quadras. Chegando no prédio, passou pelo segurança e foi até o escritório do marido. Passou pela secretária e abriu a porta. Boquiaberta, ela parou quando avistou Fiorella no colo de Marcos. Ver a meia-irmã em um momento íntimo com o seu marido foi devastador.
— Por que fez isso comigo, Fiorella? — Luísa questionou aos prantos.
Em um movimento rápido, Marcos afastou a cunhada e ajeitou as calças quando levantou.
Compelida pela raiva, Luísa avançou, mas foi contida pelo marido.
— Já basta! — Ele impôs toda a força quando a jogou na poltrona. — Estamos nos separando.
Ali estava a razão pela qual ele estava deixando-a para trás. A sua meia-irmã Fiorella abaixou o vestido sem qualquer pudor.
— Há quanto tempo estão me traindo? — Com o rosto pálido, Luísa encarou o homem que fechava os botões da camisa.
— Não importa. Eu amo Fiorella e quero ficar com ela.
— Ouviu bem, irmãzinha? O Marcos não te ama. — Fiorella exclamou, exaltada.
— Vagabunda! — Gritou Luísa.
Slap! A face queimou após o tapa desferido por Fiorella.
— Nunca mais ofenda a Fiorella. — Marcos vociferou num tom irascível. — Quero me separar de você desde que a nossa filha morreu na sua barriga. — O tom acusador recordou da bebê que ela perdeu naquele mesmo ano. Luísa estava com quase nove meses quando escorregou e caiu no banheiro de casa.
Só naquele momento, ela teve certeza de que não tinha mais ninguém além do filho de quatro anos.
— Quero que arrume as suas coisas e saia da minha casa, — Marcos deu a ordem. — A partir de hoje, a Fiorella vai morar comigo.
— Não pode fazer isso.
— A casa é minha, arrume outro lugar para morar.
Cinco anos atrás, Luísa foi golpeada no distrito da luz vermelha de Bari. Desde então, ela perdeu parte da memória após levar uma pancada forte na cabeça. Tudo o que lembrava era de sua meia-irmã e do seu ex-noivo.
Na época, foi Fiorella quem disse para Luísa que Marcos era o pai do bebê que ela esperava e que ambos tinham que se casar antes que a barriga aparecesse. Envergonhada, ela se enfiou em um casamento sem amor, mas acabou se afeiçoando ao homem que não a merecia.
Do lado de fora, as pessoas se reuniam para ver o que acontecia na sala do encarregado da empresa de construção. Ultrajada, Luísa fugiu dali. Saindo do prédio, continuou andando sem rumo pela cidade.
Havia parado de tocar piano desde que se casou com Marcos e não trabalhava porque o marido insistia para que ela ficasse em casa para cuidar do filho. Luísa não tinha noção de que havia muito mais por trás daquilo tudo.
Desnorteada, ela continuou a caminhar até que o céu escureceu. Quando voltou a si, ela se deu conta de que estava na Zona Vermelha.
— Aquela é a pianista gostosa que tocava no Cally sexy’s bar! — Apontando para Luísa, o homem sibilou.
— Está perdida, amorzinho? — Indagou o outro antes de assoviar. — Quer que eu cuide desse ferimento no seu rosto?
Ela tocou a face e apressou os passos, o seu coração parecia que ia saltar pela boca.
— Eles estão falando com você. — Um grandalhão apareceu, bloqueando o seu caminho. — Seja boazinha e dê atenção para os rapazes.
Com medo, Luísa tentou correr, mas uma roda se formou, impedindo-a de fugir.
— Os rapazes querem se divertir um pouco, gata! — O grandalhão tocou suas costas.De repente, um Porsche se aproximou e diminuiu a velocidade.— Deixem ela em paz. — A ordem veio do homem que estava no carro de luxo.Gradualmente, os homens recuaram após acatar a ordem do chefe.— Pianista, entre no carro. — O desconhecido falou.Como todos naquele bairro sabiam que ela tocava piano? Ela se perguntava enquanto alargava os passos para fugir do carro que a acompanhava.— Se eu for embora, não vou voltar para impedir que aqueles caras ataquem você… — Paolo a advertiu. — Venha logo, Luísa! — A pouca paciência que tinha exauriu.— Como sabe o meu nome, senhor? — Estagnou na calçada e fitou o homem com a mandíbula quadrada.— Todos aqui já te viram tocando piano.Os lábios de Paolo se mexeram, mas ele não se pronunciou. Tinha poucas semanas que voltou ao país e tudo o que sabia era que a pianista se casou e teve um filho.— Pare de se fazer de rogada e entre na porra do carro. — Tirou os ó
Numa ampla suíte da cobertura do hotel Mercure Villa Romanazzi Carducci Bari, uma mulher jovem se remexeu na cama. A cabeça de Luísa latejava enquanto massageava as têmporas e lutava para abrir os olhos. Com esforço, abriu as pálpebras e, ao virar a cabeça, estreitou os olhos para enxergar o homem sentado na poltrona. Assustada, ergueu o torso e puxou o lençol para cobrir o corpo.“Cadê a minha roupa?” pensou, engolindo em seco ao fitar Paolo novamente. Ele usava apenas uma calça de moletom com o cós abaixo da cintura. “O que foi que eu fiz?” Forçando a memória, ela tentou recordar o que ocorreu no bar após a última música que tocou, mas sua mente estava fragmentada.O homem a observava com uma postura fria, sem qualquer emoção aparente. Paolo se levantou, revelando um físico impecável, com ombros largos e o abdômen trincado por músculos. Quando chegou mais perto, ela sentiu o cheiro da fragrância ambarada. A proximidade fazia o seu coração bater mais forte.— Como cheguei aqui? — A
Inerte, Luísa olhava para o líquido vermelho que escorria em suas mãos.Um misto de horror e incredulidade a consumia enquanto seu coração pulsava em um ritmo desenfreado. A visão do sangue parecia distorcer o tempo, e pensamentos confusos atropelavam-se em sua mente: “Oh, Deus, o que foi que eu fiz?” Seus dedos tremiam, incapazes de conter o choque que dominava seu corpo. Atordoada, não acreditava que tinha sido capaz de usar aquilo. Tremendo, Luísa colocou a pistola sobre a mesinha de centro, enquanto Marcos gemia de dor no outro sofá. Seus movimentos eram hesitantes, a respiração descompassada denunciava o estado de choque.— Vocês estão bem? — Uma vizinha gritou do outro lado da porta. — Não sei o que está acontecendo, mas eu já chamei a polícia!Sem experiência, Luísa permanecia estática, incapaz de processar a gravidade do momento. Seus pensamentos giravam em um redemoinho de confusão e medo: “O que devo fazer agora?” O som dos gritos parecia distante, abafado pelo pulsar intens
Ao entardecer, uma policial chamou pelo nome de Luísa, ordenando que ela se juntasse às outras detentas. O grupo foi conduzido para a sala de visitas, um espaço simples, mas funcional, com mesas alinhadas em fileiras. Luísa caminhou hesitante, os olhos varrendo o ambiente em busca de quem poderia estar ali para vê-la.— Vá logo! — disse a policial, empurrando-a pelas costas para apressá-la.Seus ombros estavam tensos, e ela apertava as mãos, tentando conter a ansiedade que lhe apertava o peito. Ainda assim, reuniu forças e continuou andando, com o olhar fixo no chão. Quando finalmente ergueu o olhar, encontrou Fiorella sentada à sua frente. O sorriso arrogante que curvava os lábios da mulher acendeu uma raiva intensa em Luísa. — Olá, irmãzinha! — proferiu Fiorella, a voz transbordando sarcasmo enquanto se inclinava para frente com o olhar desafiador.Luísa semicerrou os olhos, cruzando os braços como se tentasse conter a revolta que subia pelo peito.— O que você faz aqui, Fiorella?
Quando Paolo ameaçou sair do carro, Luísa recuou rapidamente. Seu tamanho reduzido fazia com que o sobretudo dele parecesse um vestido em seu corpo franzino. Ele jamais imaginou que um dia gostaria de ver uma mulher usando sua roupa daquela maneira.— Você quer voltar para a prisão? — indagou em tom seco, quase brusco.A ameaça velada a fez parar imediatamente, os ombros tensos e o olhar hesitante denunciavam sua relutância. Respirou fundo, como se tentasse reunir coragem, mas permaneceu imóvel, o medo evidente em sua postura retraída. A experiência de uma noite na cadeia aparentemente não havia sido tão suportável quanto ela talvez tivesse previsto.— Entre logo! — ordenou entre dentes, esforçando-se para conter a raiva e não deixar que seu estresse explodisse sobre ela.Sem replicar, ela se acomodou na poltrona. Moveu-se um pouco para o lado, criando mais espaço entre os dois, e suspirou profundamente, exausta. Manteve o olhar fixo no chão.Ele observou o rosto amedrontado dela e, e
— Claro que vou! — Don Morano finalmente quebrou o gelo do silêncio.Enquanto o motorista conduzia o carro pelas avenidas movimentadas, Paolo continuou olhando para ela.— Não! — Luísa respondeu prontamente, quase em um sobressalto. — Só quero te lembrar de que você está me devendo.— O quê?— Paguei a sua fiança, Luísa… — Ele salientou. — Você foi presa por porte ilegal de arma e por tentativa de assassinato. Esqueceu?Ao se dar conta, ela apertou os lábios. Enquanto isso, os olhos dele examinavam cada detalhe das marcas deixadas pela violência de seu marido. — Você pode trabalhar para mim… — Paolo deixou escapar. — E eu posso dar uma lição no maledetto que te agrediu.Meia aturdida, Luísa começou a alisar as articulações dos dedos de forma metódica, como se isso pudesse acalmá-la. — Não será necessário, senhor. — A sua voz estava incrivelmente serena quando o rejeitou. — Vou arrumar o dinheiro para lhe pagar. Prometo.A tranquilidade dela o desarmou momentaneamente. Ele se pergun
Durante a noite, o sono foi constantemente interrompido pela preocupação de que algo pudesse ser roubado. A cada ruído vindo da rua ou das paredes finas do abrigo improvisado, Luísa se sobressaltava, temendo que alguém pudesse invadir seu espaço.Enquanto o cansaço físico a puxava para a inconsciência, sua mente se recusava a descansar. Pensava no filho, nas decisões que a levaram até aquele momento, e em como conseguiria reverter sua situação. Cada pensamento era uma âncora que a mantinha acordada. Ela mal conseguia pensar em outra coisa senão no filho.Na manhã seguinte, Luísa despertou antes do sol. O seu coração inquieto continuava pulsando em ritmo acelerado. Ela se levantou da cama improvisada, calçou os sapatos desgastados e apanhou a bolsa que continha seus poucos pertences. Do lado de fora, ergueu os olhos ao céu e viu as nuvens cinzentas encobrindo o horizonte. O ar estava denso e frio, prenunciando um temporal. A escola de Enzo ficava a algumas quadras dali, por ruas estre
— Paolo, você é o herdeiro do nosso clã e não pode ficar trancado para sempre dentro desta casa. — Stefano falou com o sobrinho. — Precisa casar e fazer alianças. Temos que expandir os negócios da nossa família.— Não vou a lugar algum, tio. — O jovem robusto, com traços marcantes, passou os dedos pelas veias que saltavam nas têmporas e, em seguida, enterrou nos cabelos e jogou os fios lisos para trás. — Preparei uma surpresa para você! — Stefano revelou, tentando ludibriar o sobrinho. — Você não pode faltar à sua festa.— Tenho muita coisa para resolver, tio… — Mas é o seu aniversário.— É só mais uma data como outra qualquer. — Ao rebater, Paolo cerrou o punho sobre a mesa.Naquele mesmo dia, fazia um ano que a mãe dele faleceu. A mente dele ia e voltava para o dia em que escutou a última canção que a mãe reproduziu no piano. Cada nota da missa fúnebre de Réquiem em ré menor ainda ressoava em sua mente.— O seu pai não está na cidade, e querendo ou não, você terá que ir ao evento