2. Rito do Despertar Prateado I

POV: Carina

O pânico toma conta de mim, esmaga qualquer resquício de racionalidade.

Não confio nos meus pais, não tenho uma única lembrança de confiar neles desde que os sussurros começaram a invadir meus sonhos, dizendo para fugir.

A única coisa boa é que Charles não está aqui, ele gosta de me ver assustada, e faz de tudo para que eu tenha mais medo ainda.

O Rito do Despertar Prateado é algo que conhecemos das canções, escutava da torre as cantigas entoadas nos dias de festivais, mas hoje não é uma cantiga para assustar filhotes.

É real, e vai me destruir.

Eles planejam forçar minha primeira mudança com um ritual bárbaro que nem deve ser verdade.

É ultrapassado, cruel, mas os dois discordam, veem a prática como uma forma de separar os fortes e os fracos da matilha.

Sem a voz dizendo o quanto tudo é errado, eu teria continuado feito o bichinho dócil de sempre, mas ela começou, primeiro sozinha, depois todas ao mesmo tempo.

Sei que o Alfa supremo de Lycanthara, o  Rei Lycander Fenris, baniu muito dos rituais antigos durante a unificação.   O Despertar Prateado foi um deles.

Alterar nossa litania não deixou os lycanos felizes, e isso incluía meus pais, ansiosos para reviver os costumes do velho mundo. 

Pela vontade dos dois, não fosse o édito do rei impedindo sua perpetuação, cada criatura com sangue lycan correndo nas veias seria submetida a ele em Celestial Spire assim que atingissem a puberdade.

O ritual é realizado em uma clareira isolada, longe dos olhos da matilha. A clareira é cuidadosamente escolhida pelo alfa, sendo um local onde a lua brilha intensamente, aumentando a influência de Luna sobre o filhote. 

Uma corda incrustada com pequenos ganchos de prata é usada para amarrar a pobre alma, para que seu despertar seja cheio de dor.

Depois de amarrado,  é permitido que o prisioneiro beba uma mistura de ervas  preparada pelos curandeiros da matilha. Essa mistura aumenta a resistência e estimula seus sentidos, dando uma pequena vantagem para tentar escapar.

Minha mãe é a curandeira, ou deveria ser. Nos dias bons fica comigo na torre e me ensinava um pouco sobre o manejo de ervas e poções, nos ruins me faz experimentar várias delas.

Quase consigo sentir os ganchos em minha pele, e não é nem a pior parte.

Após amarrar o filhote, o alfa se afasta da clareira, sinaliza  para os lobos comuns cercarem a área. O alfa não participa diretamente, mas observa de uma distância segura, pronto para intervir apenas em caso de emergência, ou não.

Conhecendo o meu pai como conheço, ele é do tipo que não interviria nunca. 

Morte ou glória.

Se o filhote conseguir se transformar, terá força suficiente para romper as amarras e afastar os lobos.

No entanto, se o filhote falha, ele quase sempre sucumbe aos ferimentos infligidos pelos lobos, morre na clareira. Esta morte é considerada um sacrifício para a força e pureza da matilha.

Não quero isso, não posso. 

Minhas mãos tremem, meu coração b**e descompassado, e só há uma saída clara em minha mente: a janela da torre.

Acabar com tudo é algo que ia e vinha constantemente desde que eles começaram a falar sobre o incômodo que era minha incapacidade de mudar. 

Eles tinham esperanças de que eu  mudaria nos primeiros anos da puberdade, o que nem de longe é bom, pois quanto mais jovem um lycan muda, maior é a chance de não conseguir se controlar durante essas primeiras mudanças. Os mais velhos não, são mais estáveis.

Subo na janela, algo que fiz inúmeras vezes para observar o pátio. Despencar daquela  altura não me assusta tanto quanto o ritual. 

O medo da dor é maior do que tudo, uma queda me assusta menos do que ser dilacerada.  

Sou covarde, acho, pois lutar é a última coisa que passa pela minha mente agora. Tenho certeza que perderia. 

Mamãe é uma guerreira de renome.

Papai empunha um machado desde que começou a andar.

A cena passa pela minha mente enquanto subo no parapeito. 

Sinto uma vertigem ao olhar para baixo, mas a voz do meu pai quebra o silêncio. 

Carina!  Tento me concentrar na queda, na sensação de liberdade que poderia me livrar desse destino cruel, mas meu corpo congela.

Desça daí agora, ele ordena, sua voz assumindo um tom que não posso ignorar. 

É a voz do alfa, sei porque meu irmão usou em mim uma vez, embora papai nunca tivesse ido tão longe.

Meu corpo reage antes da minha mente, um impulso primal me obriga a obedecer. Eu me viro lentamente, as lágrimas que segurei ao saber da morte da rainha escorrem pelo meu rosto.

Resistir dói.

Meu pai segura meu rosto com ambas as mãos com força o suficiente para machucar, e então se abaixa para fazer uma ameaça.

Talvez deva pedir para que ele venha discipliná-la. Quando foi a última vez? Ah, seu aniversário de dezesseis anos.... somos muito gentis com você, mas seu irmão sempre soube dobrá-la.

O enjoo volta e eu travo. 

As vozes se transformam em zumbidos e minha cabeça dói ainda mais.

Pensar em Charles provoca reações físicas em mim por causa das lacunas, quase nunca me lembro com precisão dos encontros, e tentar encontrar essas recordações me machuca.

Prefiro que mamãe me discipline, ou até mesmo meu pai. 

Não quero as mãos de Charles em mim de forma alguma,  ele tem um apreço pelo chicote e uma fúria sem limite, não para até ver sangue.

Meus pais são mais cuidadosos e me tratam como uma mercadoria mais preciosa. 

Mãe, por favor. É um ritual antigo, mentiras, não funciona." imploro, minha voz trêmula e desesperada. "O Rito do Despertar Prateado... é uma tortura. Eu não vou sobreviver, se vocês me amam… digo, se precisam de mim, deixem para lá. Sou bonita, você me ensinou tudo, será suficiente, prometo.

Mais mentiras, pois não tenho a intenção de colaborar com nada. Irei fugir para longe assim que sair dessa torre. Vi pelos mapas, se eu conseguir me desvencilhar dos que me levarem assim que atravessar os portões será mais fácil cruzar a fronteira.

Chegar na capital não é uma opção, fica no meio do território. 

Ele se aproxima, cada passo me faz sentir ainda menor e insignificante, até estar a poucos centímetros de mim. Seu olhar perfura minha alma, e conheço bem, está decepcionado.

Sua mãe não sofreu por duas luas para gerar uma covarde, Carina. Precisamos de você na capital, mais especificamente na cama do rei. Seu irmão irá logo depois.

O medo se intensifica, meu coração parece que vai explodir.

Não quero ir para lugar nenhum com ele.

Li o suficiente sobre o vínculo de companheiros para saber que a última coisa passando pena mente do nosso alfa supremo agora é acasalar. 

Ele deve estar desejando morrer.

Nós dois estamos.

Por favor, não me façam passar por isso.

Crator segura meus ombros com força, forçando-me a olhar diretamente em seus olhos. 

Olhar para baixo é algo instintivo para mim, odeio encarar a semelhança que existe entre nós três. Não, quatro, pois meu irmão também se parece muito conosco. 

Você não irá morrer. A prata é dolorosa, sim, mas é necessária para despertar sua fúria. A clareira, a dor, os lobos... tudo isso forçará sua real essência a assumir o controle. Você beberá a poção, lutará contra a dor, e sobreviverá. Porque você é uma Starbane, e nós não falhamos.

Sua voz  me prende, feito um feitiço, mas meu coração ainda luta contra o desespero. 

Não quero morrer antes de começar a viver.

A ideia de ser amarrada com ganchos de prata, de ser atacada por lobos, é demais para mim. 

Sou fraca até para acabar com tudo.

Eu caio de joelhos, soluçando.

Arranjem outra ou desistam. Temos uma boa vida aqui, vocês vão estragar tudo.

Papai tem um selo que lhe permite comandar um regimento inteiro, autoridade sobre o que acontece na Cidade-Estado. É o chefe dos ritos e pode administrar tudo que envolve a região.

Somos ricos, por que ele precisa de mais? 

Nosso alfa supremo tinha o direito de escolher se queria ser fiel a sua companheira predestinada ou seguir o costume antigo e ter várias concubinas, e ele escolheu ser fiel, por que isso enfurece tanta gente?

Mamãe se ajoelha ao meu lado, suas mãos acariciam meu rosto e isso me faz recuar, esperando outro tapa que não vem.

A dor vai passar, mas o poder que você ganhará será eterno. E uma vez que você se transforme, garotinha, nunca mais precisará temer nada. Engula o choro, a única arruinando as coisas aqui é você com a sua covardia.

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