POV: Carina
O pânico toma conta de mim, esmaga qualquer resquício de racionalidade.
Não confio nos meus pais, não tenho uma única lembrança de confiar neles desde que os sussurros começaram a invadir meus sonhos, dizendo para fugir.
A única coisa boa é que Charles não está aqui, ele gosta de me ver assustada, e faz de tudo para que eu tenha mais medo ainda.
O Rito do Despertar Prateado é algo que conhecemos das canções, escutava da torre as cantigas entoadas nos dias de festivais, mas hoje não é uma cantiga para assustar filhotes.
É real, e vai me destruir.
Eles planejam forçar minha primeira mudança com um ritual bárbaro que nem deve ser verdade.
É ultrapassado, cruel, mas os dois discordam, veem a prática como uma forma de separar os fortes e os fracos da matilha.
Sem a voz dizendo o quanto tudo é errado, eu teria continuado feito o bichinho dócil de sempre, mas ela começou, primeiro sozinha, depois todas ao mesmo tempo.
Sei que o Alfa supremo de Lycanthara, o Rei Lycander Fenris, baniu muito dos rituais antigos durante a unificação. O Despertar Prateado foi um deles.
Alterar nossa litania não deixou os lycanos felizes, e isso incluía meus pais, ansiosos para reviver os costumes do velho mundo.
Pela vontade dos dois, não fosse o édito do rei impedindo sua perpetuação, cada criatura com sangue lycan correndo nas veias seria submetida a ele em Celestial Spire assim que atingissem a puberdade.
O ritual é realizado em uma clareira isolada, longe dos olhos da matilha. A clareira é cuidadosamente escolhida pelo alfa, sendo um local onde a lua brilha intensamente, aumentando a influência de Luna sobre o filhote.
Uma corda incrustada com pequenos ganchos de prata é usada para amarrar a pobre alma, para que seu despertar seja cheio de dor.
Depois de amarrado, é permitido que o prisioneiro beba uma mistura de ervas preparada pelos curandeiros da matilha. Essa mistura aumenta a resistência e estimula seus sentidos, dando uma pequena vantagem para tentar escapar.
Minha mãe é a curandeira, ou deveria ser. Nos dias bons fica comigo na torre e me ensinava um pouco sobre o manejo de ervas e poções, nos ruins me faz experimentar várias delas.
Quase consigo sentir os ganchos em minha pele, e não é nem a pior parte.
Após amarrar o filhote, o alfa se afasta da clareira, sinaliza para os lobos comuns cercarem a área. O alfa não participa diretamente, mas observa de uma distância segura, pronto para intervir apenas em caso de emergência, ou não.
Conhecendo o meu pai como conheço, ele é do tipo que não interviria nunca.
Morte ou glória.
Se o filhote conseguir se transformar, terá força suficiente para romper as amarras e afastar os lobos.
No entanto, se o filhote falha, ele quase sempre sucumbe aos ferimentos infligidos pelos lobos, morre na clareira. Esta morte é considerada um sacrifício para a força e pureza da matilha.
Não quero isso, não posso.
Minhas mãos tremem, meu coração b**e descompassado, e só há uma saída clara em minha mente: a janela da torre.
Acabar com tudo é algo que ia e vinha constantemente desde que eles começaram a falar sobre o incômodo que era minha incapacidade de mudar.
Eles tinham esperanças de que eu mudaria nos primeiros anos da puberdade, o que nem de longe é bom, pois quanto mais jovem um lycan muda, maior é a chance de não conseguir se controlar durante essas primeiras mudanças. Os mais velhos não, são mais estáveis.
Subo na janela, algo que fiz inúmeras vezes para observar o pátio. Despencar daquela altura não me assusta tanto quanto o ritual.
O medo da dor é maior do que tudo, uma queda me assusta menos do que ser dilacerada.
Sou covarde, acho, pois lutar é a última coisa que passa pela minha mente agora. Tenho certeza que perderia.
Mamãe é uma guerreira de renome.
Papai empunha um machado desde que começou a andar.
A cena passa pela minha mente enquanto subo no parapeito.
Sinto uma vertigem ao olhar para baixo, mas a voz do meu pai quebra o silêncio.
—Carina!— Tento me concentrar na queda, na sensação de liberdade que poderia me livrar desse destino cruel, mas meu corpo congela.
—Desça daí agora,— ele ordena, sua voz assumindo um tom que não posso ignorar.
É a voz do alfa, sei porque meu irmão usou em mim uma vez, embora papai nunca tivesse ido tão longe.
Meu corpo reage antes da minha mente, um impulso primal me obriga a obedecer. Eu me viro lentamente, as lágrimas que segurei ao saber da morte da rainha escorrem pelo meu rosto.
Resistir dói.
Meu pai segura meu rosto com ambas as mãos com força o suficiente para machucar, e então se abaixa para fazer uma ameaça.
—Talvez deva pedir para que ele venha discipliná-la. Quando foi a última vez? Ah, seu aniversário de dezesseis anos.... somos muito gentis com você, mas seu irmão sempre soube dobrá-la.—
O enjoo volta e eu travo.
As vozes se transformam em zumbidos e minha cabeça dói ainda mais.
Pensar em Charles provoca reações físicas em mim por causa das lacunas, quase nunca me lembro com precisão dos encontros, e tentar encontrar essas recordações me machuca.
Prefiro que mamãe me discipline, ou até mesmo meu pai.
Não quero as mãos de Charles em mim de forma alguma, ele tem um apreço pelo chicote e uma fúria sem limite, não para até ver sangue.
Meus pais são mais cuidadosos e me tratam como uma mercadoria mais preciosa.
—Mãe, por favor. É um ritual antigo, mentiras, não funciona." imploro, minha voz trêmula e desesperada. "O Rito do Despertar Prateado... é uma tortura. Eu não vou sobreviver, se vocês me amam… digo, se precisam de mim, deixem para lá. Sou bonita, você me ensinou tudo, será suficiente, prometo. —
Mais mentiras, pois não tenho a intenção de colaborar com nada. Irei fugir para longe assim que sair dessa torre. Vi pelos mapas, se eu conseguir me desvencilhar dos que me levarem assim que atravessar os portões será mais fácil cruzar a fronteira.
Chegar na capital não é uma opção, fica no meio do território.
Ele se aproxima, cada passo me faz sentir ainda menor e insignificante, até estar a poucos centímetros de mim. Seu olhar perfura minha alma, e conheço bem, está decepcionado.
—Sua mãe não sofreu por duas luas para gerar uma covarde, Carina. Precisamos de você na capital, mais especificamente na cama do rei. Seu irmão irá logo depois.—
O medo se intensifica, meu coração parece que vai explodir.
Não quero ir para lugar nenhum com ele.
Li o suficiente sobre o vínculo de companheiros para saber que a última coisa passando pena mente do nosso alfa supremo agora é acasalar.
Ele deve estar desejando morrer.
Nós dois estamos.
—Por favor, não me façam passar por isso.—
Crator segura meus ombros com força, forçando-me a olhar diretamente em seus olhos.
Olhar para baixo é algo instintivo para mim, odeio encarar a semelhança que existe entre nós três. Não, quatro, pois meu irmão também se parece muito conosco.
—Você não irá morrer. A prata é dolorosa, sim, mas é necessária para despertar sua fúria. A clareira, a dor, os lobos... tudo isso forçará sua real essência a assumir o controle. Você beberá a poção, lutará contra a dor, e sobreviverá. Porque você é uma Starbane, e nós não falhamos.—
Sua voz me prende, feito um feitiço, mas meu coração ainda luta contra o desespero.
Não quero morrer antes de começar a viver.
A ideia de ser amarrada com ganchos de prata, de ser atacada por lobos, é demais para mim.
Sou fraca até para acabar com tudo.
Eu caio de joelhos, soluçando.
—Arranjem outra ou desistam. Temos uma boa vida aqui, vocês vão estragar tudo.—
Papai tem um selo que lhe permite comandar um regimento inteiro, autoridade sobre o que acontece na Cidade-Estado. É o chefe dos ritos e pode administrar tudo que envolve a região.
Somos ricos, por que ele precisa de mais?
Nosso alfa supremo tinha o direito de escolher se queria ser fiel a sua companheira predestinada ou seguir o costume antigo e ter várias concubinas, e ele escolheu ser fiel, por que isso enfurece tanta gente?
Mamãe se ajoelha ao meu lado, suas mãos acariciam meu rosto e isso me faz recuar, esperando outro tapa que não vem.
—A dor vai passar, mas o poder que você ganhará será eterno. E uma vez que você se transforme, garotinha, nunca mais precisará temer nada. Engula o choro, a única arruinando as coisas aqui é você com a sua covardia.—
POV: CarinaA sensação de derrota ainda queima em meu peito enquanto meus pais me conduzem para uma passagem secreta da torre de olhos vendados.Isso já aconteceu antes algumas vezes, mas só quando meu irmão me levava para sair escondido dos dois.O terror que sinto parece se intensificar a cada segundo. A escuridão é sufocante, e não deve ser nem metade do tormento que o rei deve estar passando agora. Se formos pegos a morte será um presente adorável. Não passo de uma marionete arrastada para um destino que não escolhi.—Vamos, Carina,— ela sussurra, como se suas palavras pudessem acalmar meu terror, apagar toda a desonra dos seus feitos. —É para o seu bem, quando tudo der certo as aulas ficarão mais fáceis, seu corpo ficará mais forte, e então não precisará reprimir nada.—Odeio os livros, sempre odiei, pelo menos os que ela me forçava decorar e repetir em voz alta, mas quando ela usa a palavra aulas com aquela nota de aborrecimento na voz todo meu corpo treme. Ouvi essa mentira
POV: Nathaniel, o príncipe herdeiroO festival de comemoração pelos cinquenta anos de paz estava em seu auge quando aconteceu a tragédia.Toda Silver Harbor estava reunida na praça principal, as ruas lotadas de carruagens decoradas com fitas.Papai, o alfa supremo, achou prudente suspender a queima de fogos e garantir que boa parte dos nossos guardas vigiassem o rio.Talvez por isso tenha demorado para ouvir o grito, da minha mãe e pai, e então da dama de companhia. Quem diria que a poderosa Alethea, a Lua do reino, acabasse ferida por uma cobra dentro de um cesta de pães doces. Após uma minuciosa investigação ninguém foi culpado pelo incidente. Silver Harbor é nossa maior cidade portuária fluvial, e cresceu para além dos muros de forma desordenada, invadindo extensas áreas antes ocupadas pelas florestas. Havia toda sorte de áspides e animais invadindo a área agora. A matilha responsável pela administração já estava lidando com isso, o governador, Alfa Raymond Silverbrook já tinha
POV: NathanielMinha ansiedade aumenta a cada minuto que passo esperando notícias sobre Carina. A mulher está aqui, tão perto, mas ainda inatingível. Sentir o cheiro de baunilha misturado ao sangue quase me fez enlouquecer, e ainda agora, quando penso nele, sinto meu pau endurecer de imediato. Designei um dos meus homens para tratá-la, pois não havia a menor possibilidade de um ritual como aquele ao qual ela foi submetida ser feito sem a autorização do alfa da cidade. Papai teve dificuldade com vários governadores ao longo dos anos, mas se for o que estou pensando é a primeira vez em décadas que um deles fere a nova litania e ousa reviver hábitos do velho mundo. Finalmente, meu curandeiro pessoal me chama, e eu me apresso para seguir até a direção indicada. Chego à sala onde Carina está sendo tratada, meu olhar se prende imediatamente em seu rosto abatido. Ela está pálida, há mais pele do que eu gostaria sendo exposta aos olhos dos outros.O curandeiro, Embry, e eu trocamos ol
POV: NathanielTrês meses.A anotação mais preocupante do diário a respeito do histórico de saúde de Carina tem uma observação sobre seu maior período de inconsciência ser de três meses.Os Starbane são orgulhosos, não é estranho manterem uma filha enfermiça e sangue-fraco em segredo, mas isso rivaliza com todas as informações que tenho coletado. Por que pais que odeiam um filho investiram tantos recursos nele? Há volumes de livros raros na torre, e tesouros de valor inestimável. A harpa, que a julgar pelos calos nas pontas dos dedos, Carina toca com frequência, é um deles. O instrumento musical tem a assinatura de Galileu, o melhor luthier¹ de Glacial Watch, arriscaria dizer o melhor de todo o reino. O valor de um instrumento fabricado na fronteira com as terras geladas do norte custa mais moedas de ouro do que uma boa casa.Salvo os mapas e alguns livros de história, um pouco desatualizados, o ambiente está cheio de itens da melhor qualidade. A educação e conforto dentro dos mur
POV: CarinaUma mão gentil acaricia meus cabelos. Despertar dói. Sinto tudo ao mesmo tempo e numa intensidade anormal.O gosto amargo na boca, a sensação de vazio no estômago, a dor nas articulações mas não o repuxar da pele característico da cicatrização. Devo ter dormido muito tempo. O mundo ao meu redor ainda é uma névoa, dedos gentis acariciam meus cabelos e me relaxam. Meu coração se aquece ao pensar que é ele, o homem bonito dos meus sonhos, aquele que se parece com os príncipes dos livros que leio.Ainda devo estar sonhando.Abro os olhos com esforço, esperando um vislumbre daquele rosto encantador. Mas o que vejo me faz recuar imediatamente. Não é ele e estou desperta. É minha mãe, Mira, acompanhada de uma garota estranha de expressão apática. O medo aperta meu peito, e meu corpo, ainda fraco pela doença, reage por instinto.—Ah, você finalmente acordou, Carina,— diz minha mãe, seu tom doce e falso, como sempre. —Estávamos preocupadas.—Sei que é mentira. Seu olhar nunca
POV: NathanielA água fria atinge minha pele assim que afundo na banheira localizada no centro do quarto.É menor do que a casa privada de banho que possuo no palácio, além de não ser naturalmente aquecida, mas é perfeita agora.Meu corpo se acalma aos poucos, e a tensão que nublava meu juízo se transforma num incômodo suportável.Preciso me acalmar, focar em outra coisa que não seja Carina.—Senhor, devo buscar água quente para seu banho?— A voz da criada interrompe meus pensamentos. Sem olhar para ela, respondo depressa, na esperança que saia logo.—Não, vá embora e feche a porta.—Ela hesita, e então ouço passos se aproximando. Rosno de frustração, antecipando o que acontecerá a seguir. A hospitalidade das cidades frias tem certa fama na capital, só não esperava experimentar isso hoje. Sinto suas mãos deslizando pelo meu ombro, o toque da ponta dos dedos é suave, mas a esponja que segura é áspera. Sua pele é morna, mas seu toque não funciona para mim.Ótimo.Toda a excitação se dis
POV: CarinaO quarto está um desastre, e ao virar o rosto para contemplar meu reflexo no espelho percebo que eu também. Devo ter passado a mão com a atadura, pois há resquícios de sangue na minha bochecha e queixo. Meu cabelo está desgrenhado, a camisola branca imunda. No entanto, o aperto firme em minha cintura me deixa mais calma. Não, é o cheiro, ele tem cheiro de terra molhada e menta. Ergo a face para encará-lo, feliz por não ser um delírio, mas o que vejo em sua írises rubras é um misto de pena, dúvida e medo. Ele acredita que estou louca?Afasto-me dele a contragosto,e cada fibra do meu corpo sente a perda do calor e segurança que tive em seus braços. A possibilidade dele achar que sou maluca só me deixa mais irritada. Minha mente luta para processar tudo, mas o pânico que senti quando as duas chegaram com a comida distorceu meus pensamentos e agi por instinto. Não, a frustração acumulada de anos explodiu. Até um rato acuado é capaz de morder, e tenho sido um rato acu
POV: NathanielAbandonamos o quarto revirado assim que Carina adormeceu após tomar uma poção de valeriana. Não o fez de bom grado, dois guardas tiveram que segurá-la. Achei prudente não fazer isso pessoalmente para evitar adicionar mais uma ação na lista de animosidades entre nós, considerando que tínhamos uma longa viagem a fazer.O aspecto era de uma pessoa perturbada, perdida em meio a um frenesi de paranoia e medo. A dúvida cresce e se instala dentro de mim. As anotações falavam exatamente o que os rumores sobre a loucura dos Starbane. Mas é a verdade? Ou tudo isso é apenas um rumor que ganhou força com o tempo?Resolvi acompar Mira até o quarto, a garota interrogada ficou para organizar o quarto. Durante a caminhada silenciosa, minha mente era uma miríade de pensamentos conflitantes. É assustador observar agora quão semelhantes são as duas. A beleza exótica de Carina reflete a graça de sua mãe.Talvez eu estivesse deixando minha atração pela mulher e o fato do meu corpo r