POV: Carina
A sensação de derrota ainda queima em meu peito enquanto meus pais me conduzem para uma passagem secreta da torre de olhos vendados.
Isso já aconteceu antes algumas vezes, mas só quando meu irmão me levava para sair escondido dos dois.
O terror que sinto parece se intensificar a cada segundo.
A escuridão é sufocante, e não deve ser nem metade do tormento que o rei deve estar passando agora. Se formos pegos a morte será um presente adorável.
Não passo de uma marionete arrastada para um destino que não escolhi.
—Vamos, Carina,— ela sussurra, como se suas palavras pudessem acalmar meu terror, apagar toda a desonra dos seus feitos. —É para o seu bem, quando tudo der certo as aulas ficarão mais fáceis, seu corpo ficará mais forte, e então não precisará reprimir nada.—
Odeio os livros, sempre odiei, pelo menos os que ela me forçava decorar e repetir em voz alta, mas quando ela usa a palavra aulas com aquela nota de aborrecimento na voz todo meu corpo treme.
Ouvi essa mentira tantas vezes que sinto vontade de gargalhar.
Ela deixava de me alimentar por dias e dizia que era para o meu bem.
Ela me obrigava a beber poções que me faziam vomitar sangue e dizia que era para o meu bem.
Ela me trancou por dezoito anos e dizia ser para o meu bem.
Odeio tanto os dois, então por que desobedecer é difícil?
Descemos pelas escadas estreitas e saímos no jardim iluminado pela luz pálida da lua. A tranquilidade soa mais como uma zombaria. Cada folha que farfalha, cada sombra que se move, tudo parece rir da minha situação.
É a primeira vez que venho aqui desde meu aniversário de dezessete anos, quando meu irmão Charles me trouxe escondido e sequer consigo aproveitar as migalhas de liberdade.
Eles me arrastam pelo bosque, o caminho é tortuoso e de nada adianta atrasar o passo, pois papai me arrasta.
Finalmente, chegamos à clareira.
O ar parece mais frio aqui, como se a própria natureza estivesse ciente do ritual.
O centro está vazio, a despeito de uma espécie de gancho esquisito fincado no chão.
Papai me empurra para lá.
A sensação de impotência é esmagadora.
Sinto o toque frio da prata contra minha pele, o medo se transforma em desespero puro. Mira se ajoelha, pegando a corda e começa a amarrar meus pulsos, quando termina, amarra a extremidade da corda ao gancho.
A dor não é intensa, mas incomoda, como não passei pela transformação não tenho alergia a prata, mas os ganchos rasgam minha carne do mesmo jeito.
Tento me soltar, mas o aperto só se torna mais firme.
—Eu sou sua filha, ainda há tempo.— imploro, minha voz quase inaudível e ela ignora mais uma vez.
—É para a glória dos Starbane, aguente.—
Os dedos do meu pai se fecham nos meus cabelos e puxam. Minha garganta fica exposta e ele aumenta o aperto até ouvir um grito. Ele aproveita isso para forçar uma bebida amarga na minha boca, e eu me pergunto se Charles está assistindo de algum lugar.
Não nos vemos desde a última primavera, é o tipo de ritual mórbido que ele adoraria assistir. Os três se parecem em tudo, como deixei que seu aspecto gentil me enganasse por tanto tempo?
As ervas começam a fazer efeito, aumentando minha resistência e aguçando meus sentidos, mas isso aumenta minha percepção da dor. A corda com ganchos de prata agora está firmemente presa, mas consigo me mover um pouco.
Cada tentativa de me livrar só aumenta a agonia.
Pensar é difícil, a poção aumenta a raiva, mas atrapalha meu raciocínio.
Quero rasgá-los, mas não tenho garras.
Morder cada um deles, mas onde estão minhas presas?
Crator e Mira se afastam, seus rostos sombrios sob a luz da lua.
—Lembre-se, querida,— minha mãe diz, sua voz é um sussurro trazido pelo vento. —Transforme-se ou morra.—
Eles se afastam para a borda da clareira, e eu fico sozinha no centro, presa e vulnerável.
Nada.
Por longos minutos não há nada além do som da minha respiração.
Aproveito as migalhas de paz para lutar contra a onda de adrenalina e raciocinar.
Tiro com dificuldade o prendedor do meu cabelo, a haste é afiada, e mesmo com os pulsos amarrados consigo rasgar os fios da corda, embora o movimento machuque mais os meus pulso.
Livre das cordas, corro para longe, me embrenhando no bosque.
Minhas pernas ardem depois de alguns minutos de corrida, o coração b**e tão forte que parece que vai explodir. Posso ouvir os lobos atrás de mim, seus uivos selvagens e rosnados ecoando através da folhagem das árvores.
Eu tropeço em uma raiz e quase caio, mas consigo me manter de pé e continuar correndo. O ar frio e os galhos cortam minha pele, mas a adrenalina me obriga a continuar correndo. Meu vestido está rasgado, perdi um dos sapatos, e um dos meus pés está ensanguentado por causa dos galhos e pedras no caminho.
Sinto que os lobos estão se aproximando, o cheiro do meu sangue os atiça, e sei que se parar, será o meu fim.
Eu corro.
Corro como nunca corri antes.
Há um caminho bifurcado à frente – escolho o da esquerda, uma trilha estreita e cheia de espinhos, mas talvez os lobos desacelerem.
Talvez.
A floresta ao meu redor se transforma em um labirinto.
Então, tropeço novamente, desta vez caindo de joelhos.
O silêncio é quebrado pelo ruído de passos na folhagem.
Lobos começam a aparecer, suas figuras escuras movendo-se com uma graça letal. Seus olhos brilham com uma fome, focados em mim.
Cercam-me, rosnando e mostrando suas presas afiadas.
O medo me consome, minha mente grita para Luna me agraciar com sua dádiva agora, mas é inútil.
Ela nunca me ouviu.
Fiz preces para que alguém me tirasse da torre.
Fiz preces para que meus pais fossem mais gentis.
Fiz preces para alguém impedir o plano dos meus pais de se aproveitar da profecia para substituir a rainha.
Tudo foi inútil.
O primeiro ataque é brutal.
Um lobo salta sobre mim, suas presas rasgam a pele do meu ombro.
A dor é insuportável, e eu grito, lutando para me soltar.
Outro lobo morde minha perna, e sinto o sangue escorrendo, quente e pegajoso.
Não estou mudando.
A palavra sangue fraco ecoa na minha mente quase perdida na escuridão.
Eles teriam mordido minha garganta se quisessem, mas escolheram prolongar a tortura.
Não, meu pai escolheu, pois é a vontade dele guiando os lobos.
Os ataques continuam.
A transformação não vem.
Sinto-me fraca, quase desmaiando, mas a dor me mantém consciente.
Nunca desmaiei na vida, não importava quão duros eram os castigos, qual seria a sensação?
De repente, os lobos recuam, seus olhos ainda fixos em mim, mas algo os faz parar.
Ouço um som distante, o som de cascos de cavalo.
Meu coração b**e mais rápido.
Meus olhos se fecham parcialmente, a exaustão e a dor me arrastam para a escuridão.
POV: Nathaniel, o príncipe herdeiroO festival de comemoração pelos cinquenta anos de paz estava em seu auge quando aconteceu a tragédia.Toda Silver Harbor estava reunida na praça principal, as ruas lotadas de carruagens decoradas com fitas.Papai, o alfa supremo, achou prudente suspender a queima de fogos e garantir que boa parte dos nossos guardas vigiassem o rio.Talvez por isso tenha demorado para ouvir o grito, da minha mãe e pai, e então da dama de companhia. Quem diria que a poderosa Alethea, a Lua do reino, acabasse ferida por uma cobra dentro de um cesta de pães doces. Após uma minuciosa investigação ninguém foi culpado pelo incidente. Silver Harbor é nossa maior cidade portuária fluvial, e cresceu para além dos muros de forma desordenada, invadindo extensas áreas antes ocupadas pelas florestas. Havia toda sorte de áspides e animais invadindo a área agora. A matilha responsável pela administração já estava lidando com isso, o governador, Alfa Raymond Silverbrook já tinha
POV: NathanielMinha ansiedade aumenta a cada minuto que passo esperando notícias sobre Carina. A mulher está aqui, tão perto, mas ainda inatingível. Sentir o cheiro de baunilha misturado ao sangue quase me fez enlouquecer, e ainda agora, quando penso nele, sinto meu pau endurecer de imediato. Designei um dos meus homens para tratá-la, pois não havia a menor possibilidade de um ritual como aquele ao qual ela foi submetida ser feito sem a autorização do alfa da cidade. Papai teve dificuldade com vários governadores ao longo dos anos, mas se for o que estou pensando é a primeira vez em décadas que um deles fere a nova litania e ousa reviver hábitos do velho mundo. Finalmente, meu curandeiro pessoal me chama, e eu me apresso para seguir até a direção indicada. Chego à sala onde Carina está sendo tratada, meu olhar se prende imediatamente em seu rosto abatido. Ela está pálida, há mais pele do que eu gostaria sendo exposta aos olhos dos outros.O curandeiro, Embry, e eu trocamos ol
POV: NathanielTrês meses.A anotação mais preocupante do diário a respeito do histórico de saúde de Carina tem uma observação sobre seu maior período de inconsciência ser de três meses.Os Starbane são orgulhosos, não é estranho manterem uma filha enfermiça e sangue-fraco em segredo, mas isso rivaliza com todas as informações que tenho coletado. Por que pais que odeiam um filho investiram tantos recursos nele? Há volumes de livros raros na torre, e tesouros de valor inestimável. A harpa, que a julgar pelos calos nas pontas dos dedos, Carina toca com frequência, é um deles. O instrumento musical tem a assinatura de Galileu, o melhor luthier¹ de Glacial Watch, arriscaria dizer o melhor de todo o reino. O valor de um instrumento fabricado na fronteira com as terras geladas do norte custa mais moedas de ouro do que uma boa casa.Salvo os mapas e alguns livros de história, um pouco desatualizados, o ambiente está cheio de itens da melhor qualidade. A educação e conforto dentro dos mur
POV: CarinaUma mão gentil acaricia meus cabelos. Despertar dói. Sinto tudo ao mesmo tempo e numa intensidade anormal.O gosto amargo na boca, a sensação de vazio no estômago, a dor nas articulações mas não o repuxar da pele característico da cicatrização. Devo ter dormido muito tempo. O mundo ao meu redor ainda é uma névoa, dedos gentis acariciam meus cabelos e me relaxam. Meu coração se aquece ao pensar que é ele, o homem bonito dos meus sonhos, aquele que se parece com os príncipes dos livros que leio.Ainda devo estar sonhando.Abro os olhos com esforço, esperando um vislumbre daquele rosto encantador. Mas o que vejo me faz recuar imediatamente. Não é ele e estou desperta. É minha mãe, Mira, acompanhada de uma garota estranha de expressão apática. O medo aperta meu peito, e meu corpo, ainda fraco pela doença, reage por instinto.—Ah, você finalmente acordou, Carina,— diz minha mãe, seu tom doce e falso, como sempre. —Estávamos preocupadas.—Sei que é mentira. Seu olhar nunca
POV: NathanielA água fria atinge minha pele assim que afundo na banheira localizada no centro do quarto.É menor do que a casa privada de banho que possuo no palácio, além de não ser naturalmente aquecida, mas é perfeita agora.Meu corpo se acalma aos poucos, e a tensão que nublava meu juízo se transforma num incômodo suportável.Preciso me acalmar, focar em outra coisa que não seja Carina.—Senhor, devo buscar água quente para seu banho?— A voz da criada interrompe meus pensamentos. Sem olhar para ela, respondo depressa, na esperança que saia logo.—Não, vá embora e feche a porta.—Ela hesita, e então ouço passos se aproximando. Rosno de frustração, antecipando o que acontecerá a seguir. A hospitalidade das cidades frias tem certa fama na capital, só não esperava experimentar isso hoje. Sinto suas mãos deslizando pelo meu ombro, o toque da ponta dos dedos é suave, mas a esponja que segura é áspera. Sua pele é morna, mas seu toque não funciona para mim.Ótimo.Toda a excitação se dis
POV: CarinaO quarto está um desastre, e ao virar o rosto para contemplar meu reflexo no espelho percebo que eu também. Devo ter passado a mão com a atadura, pois há resquícios de sangue na minha bochecha e queixo. Meu cabelo está desgrenhado, a camisola branca imunda. No entanto, o aperto firme em minha cintura me deixa mais calma. Não, é o cheiro, ele tem cheiro de terra molhada e menta. Ergo a face para encará-lo, feliz por não ser um delírio, mas o que vejo em sua írises rubras é um misto de pena, dúvida e medo. Ele acredita que estou louca?Afasto-me dele a contragosto,e cada fibra do meu corpo sente a perda do calor e segurança que tive em seus braços. A possibilidade dele achar que sou maluca só me deixa mais irritada. Minha mente luta para processar tudo, mas o pânico que senti quando as duas chegaram com a comida distorceu meus pensamentos e agi por instinto. Não, a frustração acumulada de anos explodiu. Até um rato acuado é capaz de morder, e tenho sido um rato acu
POV: NathanielAbandonamos o quarto revirado assim que Carina adormeceu após tomar uma poção de valeriana. Não o fez de bom grado, dois guardas tiveram que segurá-la. Achei prudente não fazer isso pessoalmente para evitar adicionar mais uma ação na lista de animosidades entre nós, considerando que tínhamos uma longa viagem a fazer.O aspecto era de uma pessoa perturbada, perdida em meio a um frenesi de paranoia e medo. A dúvida cresce e se instala dentro de mim. As anotações falavam exatamente o que os rumores sobre a loucura dos Starbane. Mas é a verdade? Ou tudo isso é apenas um rumor que ganhou força com o tempo?Resolvi acompar Mira até o quarto, a garota interrogada ficou para organizar o quarto. Durante a caminhada silenciosa, minha mente era uma miríade de pensamentos conflitantes. É assustador observar agora quão semelhantes são as duas. A beleza exótica de Carina reflete a graça de sua mãe.Talvez eu estivesse deixando minha atração pela mulher e o fato do meu corpo r
POV: CarinaNão consigo acreditar no cinismo dos meus pais, mais especificamente na minha mãe, pois meu pai desapareceu desde que saiu para resolver sabe-se lá o quê.A forma como eles mentem, a maneira como tentam me fazer acreditar que sou louca deixa a situação ainda mais insana. Passada a noite, duvido que tenha sido coincidência a comida ser exatamente da mesma cor que o veneno da história, ela sabia quais cordas puxar para me tirar do controle.Charles existe, eu tenho certeza disso. Também tenho certeza que nunca vi a garota responsável por arrumar meu quarto na vida, entretanto, todos dizem ser minha criada.Maldição.Meu estômago ronca, meus lábios estão rachados, mas não me atrevo a beber nem comer nada aqui. As velas ou os incensários também seguem apagados.Permaneço sentada em meu quarto, esperando o forasteiro de cabelos loiros e olhos rubros. Sei que ele vem para me levar como refém, só preciso aguentar mais um pouco.É uma boa oportunidade de fuga, minha melhor chanc