3. Rito do Despertar Prateado 2

POV: Carina

A sensação de derrota ainda queima em meu peito enquanto meus pais me conduzem para uma passagem secreta da torre de olhos vendados.

Isso já aconteceu antes algumas vezes, mas só quando meu irmão me levava para sair escondido dos dois.

O terror que sinto parece se intensificar a cada segundo. 

A escuridão é sufocante, e não deve ser nem metade do tormento que o rei deve estar passando agora.  Se formos pegos a morte será um presente adorável.

 Não passo de uma marionete arrastada para um destino que não escolhi.

Vamos, Carina, ela sussurra, como se suas palavras pudessem acalmar meu terror, apagar toda a desonra dos seus feitos. É para o seu bem, quando tudo der certo as aulas ficarão mais fáceis, seu corpo ficará mais forte, e então não precisará reprimir nada.

Odeio os livros, sempre odiei, pelo menos os que ela me forçava decorar e repetir em voz alta, mas quando ela usa a palavra aulas com aquela nota de aborrecimento na voz todo meu corpo treme. 

Ouvi essa mentira tantas vezes que sinto vontade de gargalhar. 

Ela deixava de me alimentar por dias e dizia que era para o meu bem. 

Ela me obrigava a beber poções que me faziam vomitar sangue e dizia que era para o meu bem. 

Ela me trancou por dezoito anos e dizia ser para o meu bem.

Odeio tanto os dois, então por que desobedecer é difícil? 

Descemos pelas escadas estreitas e saímos no jardim iluminado pela luz pálida da lua. A tranquilidade soa mais como uma zombaria. Cada folha que farfalha, cada sombra que se move, tudo parece rir da minha situação.  

É a primeira vez que venho aqui desde meu aniversário de dezessete anos, quando meu irmão Charles me trouxe escondido e sequer consigo aproveitar as migalhas de liberdade.

Eles me arrastam pelo bosque, o caminho é tortuoso e de nada adianta atrasar o passo, pois papai me arrasta. 

Finalmente, chegamos à clareira. 

O ar parece mais frio aqui, como se a própria natureza estivesse ciente do ritual. 

O centro  está vazio, a despeito de uma espécie de gancho esquisito fincado no chão.

Papai me empurra para lá.

A sensação de impotência é esmagadora. 

Sinto o toque frio da prata contra minha pele, o medo se transforma  em desespero puro. Mira se ajoelha, pegando a corda e começa  a amarrar meus pulsos, quando termina, amarra a extremidade da corda ao gancho. 

A dor não é intensa, mas incomoda, como não passei pela transformação não tenho alergia a prata, mas os ganchos rasgam minha carne do mesmo jeito. 

Tento me soltar, mas o aperto só se torna mais firme.

Eu sou sua filha, ainda há tempo. imploro, minha voz quase inaudível e ela ignora mais uma vez. 

—É para a glória dos Starbane, aguente.

Os dedos do meu pai se fecham nos meus cabelos e puxam. Minha garganta fica exposta e ele aumenta o aperto até ouvir um grito. Ele aproveita isso para forçar uma bebida amarga na minha boca, e eu me pergunto se Charles está assistindo de algum lugar.

Não nos vemos desde a última primavera, é o tipo de ritual mórbido que ele adoraria assistir. Os três se parecem em tudo, como deixei que seu aspecto gentil me enganasse por tanto tempo?

As ervas  começam a fazer efeito, aumentando minha resistência e aguçando meus sentidos, mas isso aumenta minha percepção da dor. A corda com ganchos de prata agora está firmemente presa, mas consigo me mover um pouco.

Cada tentativa de me livrar só aumenta a agonia.  

Pensar é difícil, a poção aumenta a raiva, mas atrapalha meu raciocínio.

Quero rasgá-los, mas não tenho garras.

Morder cada um deles, mas onde estão minhas presas?

Crator e Mira se afastam, seus rostos sombrios sob a luz da lua. 

Lembre-se, querida, minha mãe diz, sua voz é um sussurro trazido pelo vento. Transforme-se ou morra.

Eles se afastam para a borda da clareira, e eu fico sozinha no centro, presa e vulnerável. 

Nada.

Por longos minutos não há nada além do som da minha respiração.

Aproveito as migalhas de paz para lutar contra a onda de adrenalina e raciocinar.

Tiro com dificuldade o prendedor do meu cabelo, a haste é afiada, e mesmo com os pulsos amarrados consigo rasgar os fios da corda, embora o movimento machuque mais os meus pulso. 

Livre das cordas, corro para longe, me embrenhando no bosque. 

Minhas pernas ardem depois de alguns minutos de corrida, o coração b**e tão forte que parece que vai explodir. Posso ouvir os lobos atrás de mim, seus uivos selvagens e rosnados ecoando através da folhagem das árvores.

Eu tropeço em uma raiz e quase caio, mas consigo me manter de pé e continuar correndo. O ar frio e os galhos cortam minha pele, mas a adrenalina me obriga a continuar correndo.  Meu vestido está rasgado, perdi um dos sapatos, e um dos meus pés está ensanguentado por causa dos galhos e pedras no caminho.

Sinto que os lobos estão se aproximando, o cheiro do meu sangue os atiça, e sei que se parar, será o meu fim.

Eu corro. 

Corro como nunca corri antes.

Há um caminho bifurcado à frente – escolho o da esquerda, uma trilha estreita e cheia de espinhos, mas talvez os lobos desacelerem.

Talvez.

A floresta ao meu redor se transforma em um labirinto.

Então, tropeço novamente, desta vez caindo de joelhos.

O silêncio é quebrado pelo ruído  de passos na folhagem. 

Lobos começam a aparecer, suas figuras escuras movendo-se com uma graça letal. Seus olhos brilham com uma fome, focados em mim. 

Cercam-me, rosnando e mostrando suas presas afiadas. 

O medo me consome, minha mente grita para Luna me agraciar com sua dádiva agora, mas é inútil.

Ela nunca me ouviu.

Fiz preces para que alguém me tirasse da torre.

Fiz preces para que meus pais fossem mais gentis.

Fiz preces para alguém impedir o plano dos meus pais de se aproveitar da profecia para substituir a rainha. 

Tudo foi inútil.

O primeiro ataque é brutal. 

Um lobo salta sobre mim, suas presas rasgam a pele do meu ombro. 

A dor é insuportável, e eu grito, lutando para me soltar.

Outro lobo morde minha perna, e sinto o sangue escorrendo, quente e pegajoso.  

Não estou mudando.

A palavra sangue fraco ecoa na minha mente quase perdida na escuridão.

Eles teriam mordido minha garganta se quisessem, mas escolheram prolongar a tortura.

Não, meu pai escolheu, pois é a vontade dele guiando os lobos. 

Os ataques continuam.

A transformação não vem. 

Sinto-me fraca, quase desmaiando, mas a dor me mantém consciente. 

Nunca desmaiei na vida, não importava quão duros eram os castigos, qual seria a sensação? 

De repente, os lobos recuam, seus olhos ainda fixos em mim, mas algo os faz parar. 

Ouço um som distante, o som de cascos de cavalo. 

Meu coração b**e mais rápido.

Meus olhos se fecham parcialmente, a exaustão e a dor me arrastam para a escuridão.

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