Chegada

Atualmente

Aurora

— Não acredito que estamos fazendo isso de novo — murmurei ao ver minha mãe saindo da loja de conveniência.

Tirei a mangueira de gasolina do carro e devolvi para a suporte. Estávamos há dias na estrada e ainda faltava muito para chegar na tal cidade.

— Quer que eu dirija agora? — perguntei sem esconder meu aborrecimento.

— Não. Ainda estou bem disposta. — Entregou-me a sacola ao passar por mim. — Anime-se, essa viagem está sendo ótima.

Quase revirei os olhos ao ouvir isso. Entrei no carro e olhei as guloseimas que tinha comprado.

— A senhora sempre diz a mesma coisa. — Bufei.

— Aurora, não reclame. A cidade parece ótima, tenho certeza que vai gostar. — Ligou o carro e saímos devagar.

— Fim de mundo a senhora quer dizer — retruquei.

— Já vi fim de mundos piores... — Cantarolou daquele jeito provocador e irritante que sempre fazia.

— Mãe, essa cidade nem está no mapa. Pra chegarmos aqui tivemos que atravessar o país e ainda entrar naquele mini avião que antes de nos matar da queda, iria nos matar do coração de tão velho que estava. — Recuperei o fôlego antes de continuar. — Fora que tudo o que temos agora são quatro malas na traseira desse carro velho.

— Querida, será apenas uma temporada. E se gostarmos da cidade, podemos ficar por mais tempo, quem sabe. — Passou a marcha do carro e aumentou a velocidade.

— A senhora disse isso nas últimas dez vezes que nos mudamos. E essas são só as que eu me lembro. — reclamei novamente antes de abrir um pacote de chocolate.

— Para de reclamar e coloque um casaco, o aquecedor do carro não parece funcionar bem.

— É claro, aquele vendedor era muito suspeito, me admira esse carro está inteiro até agora. E, eu não estou com frio.

— Não acredito! Deve estar fazendo uns dez graus agora e daqui para frente as temperaturas vão diminuir mais ainda. E não reclame do carro, seu pai dizia que os modelos antigos são os melhores. Essa caminhonete é muito boa, escute só o motor.

— A senhora não entende nada de carros, mãe.

— É verdade. — Sorriu. — Seu pai faz muita falta, ele sim sabia fazer bons negócios.

Concordei sentindo aquele sentimento pesado.

Sempre nos mudamos muito, no início até questionava naquela inocência infantil, mas depois entendi que era algo sério. Aparentemente, fugimos de alguém, mas eles nunca me diziam, então parei de insistir, já bastava meus problemas, que não eram poucos.

O problema de socialização era o menor deles. Não conseguia assistir às aulas regulares nas escolas, brigava muito, simplesmente perdia o controle das minhas próprias ações. Era tão sério na infância que passei um longo período sendo educada em casa.

A adolescência foi outra fase desafiadora, apesar de ser consciente, meu temperamento também não era fácil, além disso, depois dos quinze anos, passava um período do mês doente, não havia explicação lógica.

Eu também não me adapto em empregos e isso é frustrante, me deixa deprimida. As incertezas sobre mim mesma me atingem de forma grave e dolorosa, me sinto culpada por ter mudado a vida dos meus pais drasticamente, por sempre receber o olhar aflito e cheio de angústia. Mas eu não sabia o que fazer. Se ao menos minha mãe me contasse tudo.

Se ao menos ela me dissesse porque tenho febres a ponto de ter que mergulhar em banheiras de água com gelo para conseguir suportar a dor. Ou talvez porque eu sinto repulsa no toque de outras pessoas. Sem falar no meu corpo mal desenvolvido que nem ao menos teve um ciclo menstrual.

Janete era atenciosa na medida do possível, nós nos dávamos bem. Sempre soube que ela não era minha mãe biológica. Claro, as diferenças são gritantes. Ela tem cabelos escuros, traços latinos, eu sou ruiva, olhos claros e cheia de sardas.

Fui adotada quando bebê, minha verdadeira mãe morreu no parto e não se sabia nada dela. É uma história um pouco mal contada, difícil de acreditar. Afinal, o que minha mãe biológica estava fazendo na beira de uma estrada no meio da mata?

De todo modo, era grata. Por isso, mesmo que eu já fosse maior de idade, não a deixaria, sempre embarcaria nas suas loucuras e mudaria mais vinte vezes se assim ela quisesse. Espero poder retribuir tudo o que fizeram por mim.

...

Depois de mais alguns dias na estrada, chegamos até a tal cidade. Demorou menos que o previsto pois nós só parávamos só para dormir e às vezes nem isso. Era uma cidade praticamente fora do mapa, o sinal de internet também devia ser péssimo.

— Parou de nevar esses dias, as estradas daqui ficam intransitáveis nessas épocas. — comentou fazendo uma curva mais fechada na estrada cercada por florestas — Ainda bem que troquei os pneus.

Analisando a paisagem ao redor, entendi menos ainda o motivo de estarmos ali, não fazia ideia do porquê as pessoas morarem tão distante.

Passamos pela placa da cidade quase toda coberta pela neve, dizia apenas: “Nivis – Bem-vindos". Segundo minha mãe, esse nome significava neve e era tão simples como o lugar.

Suspirei tentando segurar minha impaciência.

A cidade logo depois da curva se revelou com grandes contrastes, não estava nevando no momento e apesar de nublado, o dia estava no auge.

Um carro limpava a neve de um lado da rua e o movimento de pessoas era pequeno. As casas rústicas tinham pedras e madeiras aparentes, em sua maioria de pintura escura. As janelas compridas e envidraçadas deixava tudo mais charmoso e bonito, existia um certo padrão, afinal, essa era uma cidade turística.

— Ele disse que a imobiliária fica logo na avenida principal. — Minha mãe estacionou e conferiu através do vidro um pouco sujo devido a longa viagem. — Oh, ali está! Você vem? Vou só pegar as chaves.

— Não, espero aqui.

— Okay — Ela alcançou a bolsa nos meus pés e saiu.

Acompanhei até quando entrou em um estabelecimento de dois andares, onde em cima, parecia ser uma residência, contudo, virei rapidamente depois de sentir um arrepio forte.

Olhei para o lado, mas não havia ninguém passando naquele momento, me senti nervosa, inquieta.

Apertei as mãos antes de abrir a porta e sair. A neve afundou sob meus tênis surrados e depois de alguns passos, ela já estava bem rala na calçada.

Alguém me olhou curioso ao passar por mim, devia ser pelo fato de estar apenas de jeans e uma camisa de tricô em meio a uma temperatura baixa o suficiente para matar alguém.

Não me importava, estava focada naquele ponto, um que tinha o nome “aberto” piscando em um letreiro vermelho.

Ao entrar, senti os olhares e fui recebida com um grande silêncio. Foi como se não existissem, meus passos foram certos até o balcão daquele bar onde um homem me olhava com certo espanto.

Quando parei na sua frente, estudei sua face atentamente. Ele abriu a boca uma vez e voltou a fechar, mas quando falou, meu corpo reagiu estranhamente.

— Oi, bem vinda. — Seu sorriso deixou meu coração acelerado.

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