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A Lembrança De Um Sorriso Gentil

Agonia.

Foi assim que eu acordei no meio da noite. Em agoria.

O calor do meu corpo estava quase insuportável, o suor escorria no meu rosto e pescoço. Não era um sintoma desconhecido, porém, estava mais forte.

Saí da cama sentindo-me tonta e, mesmo no escuro, cheguei ao banheiro. Quase não achei o interruptor para ligar a luz, meu corpo estava doendo como se estivesse prestes a quebrar-se, queimava como se rolasse em brasas.

Tateei a pia para apoiar-me e derrubei vários frascos, vidros e embalagens metálicas caíram no chão fazendo um grande barulho. Gemi ao me cortar nos pés, o cheiro de perfume estava forte, embaralhando ainda mais meus sentidos. Foi um custo chegar ao chuveiro, eu não iria conseguir colocar a banheira para encher.

Era sempre assim, as crises aconteciam durante a noite, eu deixava sempre a banheira ou qualquer outro recipiente grande com água, mas dessa vez fui pega de surpresa.

Algo estava errado.

Consegui ligar o chuveiro e escorreguei para o chão, não demorou um minuto e minha mãe entrou.

— Aurora!!

Não a olhei, estava tão atordoada que permaneci quieta de olhos fechados, tentava me concentrar para que aliviasse. Meditar sempre ajudava e a água caindo em meu rosto estava me tranquilizando.

Havia um sintoma a mais daquela vez, minhas gengivas estavam doendo. Isso me fez ranger os dentes várias vezes, mas não importava o que fizesse, nada aliviava.

Percebi que minha mãe tinha colocado a banheira para encher e logo uma brisa fria me envolveu

A coceira nas pontas dos dedos também estava forte, já tinha sentido em outras ocasiões, mas não como agora.

Tudo estava intenso demais e sem que eu esperasse, aqueles olhos escuros vieram à mente. O sorriso gentil… O que há de errado comigo? Algo está diferente do habitual. Por que estou lembrando dele em um momento terrível como esse?

— A banheira está quase cheia, abri a janela para entrar o ar frio, mas a água não está fria, a água do reservatório é sempre aquecida ou então vira gelo. — Sua voz aflita me deixou mais amargurada.

Ela ajudou-me a tirar as roupas e a chegar na banheira, apenas afundei meu corpo.

— Vou juntar os cacos e trocar os lençois, estão rasgados e com manchas de sangue, deixe-me ver suas mãos.

Coloquei minhas mãos do lado de fora da água e ela examinou, não havia nada.

— Dessa vez está pior, mãe! O que está acontecendo?

— Não sei, meu amor.

— Não aguento mais, estou farta de tudo isso. Por que eu não sou normal? — sussurrei, a dor tirava minhas forças até para falar.

— Tenha paciência, meu amor, vai dar tudo certo. Agora concentre-se e se acalme, logo a febre vai passar. — Levantou e olhou a bagunça no chão. — Não saia da banheira.

Fechei os olhos novamente voltando a meditar, a dor na gengiva continuava.

Permaneci imóvel o máximo que pude, o ar gélido que entrava pela janela, ajudava a manter o ambiente frio o bastante para diminuir a queimação, estava sendo mais eficaz que os cubos de gelo que costumava colocar na água, mas certamente, aquele era o lugar mais frio que já estivemos.

— Mãe, por que não me conta toda a verdade?

Ela parou de juntar os cacos no chão e respondeu:

— Eu não sei muito, Aurora. Mas saiba que nunca parei de buscar uma solução.

— Mas nem um médico a senhora procurou. Como pode achar que irá encontrar uma cura para isso?

— Nenhum médico é capaz de te ajudar, já te falei várias vezes.

— Como a senhora pode saber? Acho que está mais do que na hora de eu mesma procurar um especialista. Afinal, já tenho a maioridade, posso tomar minhas próprias decisões.

— Não, Aurora, você não pode! — exclamou, alarmada.

— Por que não? Diga-me. Me dê uma explicação para toda essa loucura.

— Aurora, concentre-se na sua meditação ou esse molho não adiantará de nada. — Ignorou-me e voltou a juntar os cacos de vidro.

Como sempre, ela não estava me dizendo a verdade. Meus questionamentos sempre terminavam dessa forma; não é que me convencia, eu apenas desistia, era vencida pelo cansaço.

Sim, eu estava sendo vencida pelo cansaço em todos os sentidos e cansaço mental era maior. Então me concentrei naquele pensamento insistente. Naquele homem que sorriu tão gentilmente pra mim.

Eu queria vê-lo de novo, mas o receio de me mostrar como sou pesava bastante. Ninguém em sã consciência quer ficar perto de alguém problemático. Porém, ele foi o primeiro que olhei tão atentamente, o primeiro que senti vontade de tocar.

Certo que era uma loucura, eu o vi por poucos minutos, trocamos breves palavras, mas não sei, tinha algo com ele que me puxava. Gostaria de saber que sentimento estranho é esse.

Pensando bem, eu quero vê-lo agora mesmo.

Afundei na água e soltei o ar do nariz provocando bolhas. Fiquei por um momento assim, olhando o teto através da água que se acalmava. Mas só ela estava estava ficando tranquila, já eu, não.

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