No ano dois mil e noventa e sete, habitava Olímpia, Zeus, o soberano dos deuses, que governava o céu e dominava fenômenos naturais como relâmpagos e trovões. Ele tinha uma águia, que por vezes o permitia visualizar alguns acontecimentos que o animal observava. Com Zeus, vivia Athena, sua filha mais nova, deusa da Justiça e da Sabedoria. E, também, Vênus, deusa da Beleza e do Amor, filha mais velha de Zeus e que era mantida em reclusão em seu templo. Em Olímpia esses deuses eram bastante adorados.
Geralmente, Zeus protegia seus domínios de outros deuses e seres mitológicos que tinham intenções malignas. Athena seguia à risca as orientações de seu pai para governar e proteger o povo de Olímpia. Já Vênus era excluída sobre qualquer assunto sobre o mundo externo. A bela deusa não compreendia o porquê de sua própria família a manter isolada. E então, com o passar dos anos, tornou-se indiferente.
Na plenitude de sua solidão, ela desenvolveu uma habilidade. Para acalmar seu coração, começou a manipular os tecidos e assim Vênus dominou as artes da alfaiataria. Esse dom lhe trazia conforto preenchendo as lacunas de tantos dias de solidão. Adorava estar sempre muito bem vestida, mesmo que não tivesse ninguém para admirá-la.
Num certo dia, como de costume, a jovem deusa, que estava com catorze anos, apresentava-se cabisbaixa em seus aposentos. Debruçada sobre o peitoril da janela e observando os relâmpagos ferozes nas cinzentas nuvens naquele fim de tarde. Raramente chovia naquela região. Nesse dia seria diferente. Ela aguardava ansiosamente, olhando para o céu. Maravilhou-se com as primeiras gotículas que respingaram no solo do jardim.
Correu até a porta do seu quarto que dava para um extenso corredor e bateu três vezes afoitamente.
– Peço permissão para ir ao jardim e contemplar a chuva.
– Só um momento, senhorita. – Respondeu serenamente a voz máscula do outro lado. Era Amú, um soldado olimpiano que desde os seus quinze anos fazia a guarda de Vênus.
Ele encaminhou-se até o aposento no fim daquele corredor e, como se encontrava de portas abertas, apenas pediu anuência para entrar. Tendo seu pedido aceito, encontrou-se com o ser divino que o fitava plácida. Ele prostrou-se antes de falar.
– Vossa irmã deseja ir ao jardim.
– Para quê?
– Almeja apreciar a chuva.
A moça de cabelos escuros como a noite, tão jovem quanto sua irmã, olhou pela janela e caminhou em direção ao soldado.
– Já faz mais de um ano que não chovia por aqui. – Teve uma súbita lembrança dela com sua irmã. Quando menores, Vênus amava brincar na chuva.
Amú continuou prostrado, enquanto a jovem refletia. De repente, Athena suspirou e acenou positivamente para o rapaz. Ele, então, retornou pelo mesmo corredor. Chegou até a porta dos aposentos de Vênus e a abriu. Imediatamente curvou-se e sem levantar o olhar deixou que a garota saísse. Apenas observou curiosamente seus pés descalços, o calcanhar e os babados do vestido rose, feito de laise, que ela usava. O perfume dela invadiu a narina do rapaz, causando-lhe um êxtase de sensações.
Vênus correu por aqueles corredores como uma criança desejando logo alcançar o jardim externo. Ofegante, vislumbrou decepcionada que a chuva já tinha passado. Emburrada começou a caminhar chutando as poças de água que tinham se formado daquela breve tempestade. Em uma destas se refletia a luz da lua que estava cheia. Ela olhou para o céu e sorriu diante de tamanha beleza. O anoitecer chegava com todo seu esplendor. A jovem deusa aproximou-se mais da poça e mais encantada ainda ficou com sua aparência. Tocou seu rosto, admirando cada detalhe do seu ser. Ainda era criança a última vez em que viu seu reflexo. Nem se lembrava de seus olhos castanho claros assim como de seu cabelo, a pele alva até demais, a boca rosada, o sorriso encantador. Ficou pensando se outras pessoas seriam tão belas quanto ela, pois amava a beleza. Da mesma forma se questionou se as outras pessoas também a admirariam por sua perfeição. Entristeceu-se por se recordar do dia em que seu pai a aprisionou, ainda criança. E nem se quer desconfiava de que um dos motivos era exatamente por causa da beleza dela. Vênus, até então, não sabia que tinha o poder de encantar qualquer deus ou mortal deixando o alvo completamente à sua mercê.
Com a movimentação da lua, seu reflexo sumiu tão repentinamente que se aborreceu. Já estava mais escuro e nuvens intrometidas surgiram ofuscando o brilhar do satélite. Ela fez cara de desagrado e decidiu retornar para dentro. Ao se aproximar de seu protetor, tentou timidamente iniciar uma conversa.
– A lua estava belíssima, mas por pirraça se escondeu de mim. – Vênus sorriu esperando uma resposta.
O jovem soldado continuou com o olhar fixo no chão e muito constrangido respondeu:
– Volte aos seus aposentos, senhorita!
Muito entristecida, ela seguiu adiante e, ele fechou a porta e guardou a chave consigo. O rapaz sentiu-se mal por não a responder devidamente, mas jamais deixaria de cumprir as ordens de Athena: jamais olhar diretamente para Vênus e não manter nenhum tipo de relação com a deusa. Sua única tarefa era manter vigia em seu retiro.
Naquela mesma noite, não demorou muito, Athena foi ter uma conversa com sua irmã. Com a chegada da mais nova, em apenas um ano, Vênus a observou detalhadamente.
– Eu sempre imaginei que me parecia com você, mas somos bem diferentes. Não é, irmã?
– Como assim, Vênus?
– Nossas aparências são bem distintas.
– Como chegou a essa conclusão? – Athena estava surpresa com a observação.
– Vi meu reflexo na água da chuva.
– De fato não temos muito em comum fisicamente. E não compartilhamos traços de personalidade. Isso porque somos únicas.
– Sim! Todos os seres são únicos. Concordo. E eu gostaria de poder conhecer outras pessoas, sair de meus aposentos às vezes. Me sinto muito só aqui. Não suporto mais viver trancafiada nesse aposento!
– Eu e papai não lhe bastamos?
– Vocês são preciosos para mim. Mas sinto uma dor terrível por ter que permanecer sempre aqui. Isolada. Tenho vagas lembranças da infância. De quando podíamos correr por entre os vales. Você não sente falta disso?
– Não me lembro dessas coisas. – Athena mentiu para desestimular as lembranças de Vênus. – Nossa vida é aqui, em nossos templos. Devemos seguir as orientações de nosso pai. Quando essa onda de tristeza invadir o seu ser, medite.
– Há muito tempo não consigo meditar. Nem o meu trabalho que me dá tanto prazer tenho conseguido fazer. Eu quero sair daqui! Eu quero conhecer o mundo, Athena! Eu quero viver!
Athena sentiu pena da irmã. Mas nada poderia fazer por ela.
– Esqueça o mundo! Seu dever é permanecer aqui e meditar. Acalme seus sentimentos e mantenha o autocontrole. Você é uma deusa!
Athena se retirou e mais uma vez Vênus se debruçou em lágrimas em seu leito. Não entendia o que era ser uma deusa. Não aceitava mais a vida que tinha.
Já na madrugada, a deusa da beleza ainda não tinha conseguido dormir. Se revirava de um lado para o outro na cama. As nuvens se dissiparam e a forte luz do luar voltou a irradiar, iluminando o quarto dela. Sentindo-se chamada pelo astro noturno, ela foi até a janela e admirou aquele esplêndido corpo celeste.– Você é livre para percorrer esse imenso céu. E eu?A jovem garota suspirou desanimada. Sem muito o que fazer, começou a observar os jardins e mais abaixo pequenos pontos distantes de luz. Era Olímpia, o reino dos deuses. A bela desejou ser livre, com todo seu coração e alma.E na impulsividade de seus catorze anos, ela decidiu sair de seu refúgio para ver como eram as pessoas que estavam tão próximas dela. Do alto da janela de seu templo, a visão do jardim. Pular seria impossível, devido à altura. A única forma de se arriscar a sair seria pela lateral, onde havia uma oliveira. Mas, por se tratar de uma árvore de baixa estatura, só serviria para suavizar sua queda. Para retornar,
Dois meses passaram. Athena estava introspectiva nos últimos dias. A mansidão da irmã à preocupava. Diante disso, chamou Amú.– Em que posso ser útil, minha senhora?– Como está a Vênus?– Ultimamente ela está bem entretida com sua arte. Tem pedido materiais diversos com bastante frequência.– Que bom! E como estão as coisas pela cidade?– Os demais soldados não reportaram nenhum problema. Porém, há relatos de que uma entidade misteriosa tem surgido nos arredores do cais às noites de luar.– E como descrevem tal entidade?– Aqueles que a veem apenas dizem ser belíssima e encantadora. Os contatos são muito rápidos.– Então é uma entidade feminina? – Athena ficou muito intrigada. – As pessoas conseguem interagir com ela?– Sim, minha senhora! Os relatos são muito breves e todos provenientes de homens. A entidade surge e em poucos minutos desaparece. Apesar de deixar os indivíduos atordoados e com vagas lembranças, não faz mal a ninguém.– Entendi. Faça-me o favor de convocar Shakina, Io
Enquanto Zeus consolava Athena, a jovem Vênus percorreu os corredores do palácio afim de buscar um novo sentido para sua vida. Ao passar rapidamente por Iolo, o soldado se assustou com o vulto da bela correndo desesperadamente e gritou para que ela parasse. Em vão. Quando ele ameaçou correr atrás dela, ouviu uma voz o chamando.– Espere, Iolo!– Você viu aquilo? Quem era?– Era Vênus. E Athena deu ordens de não irmos atrás dela.– Como assim? O que está acontecendo aqui?– Vênus é a entidade que tem aparecido na cidade. Arantis foi designado para investigar o que estava acontecendo em nosso território. De alguma forma ela vinha fugindo sem que eu me desse conta. E agora, parece que se rebelou e os deuses não conseguem mais mantê-la aprisionada.– E o que faremos agora?– As ordens não mudaram. Devemos manter nossos postos e vigilância.– Está certo. – Iolo observou o caminho pelo qual Vênus tinha escapado e retornou para sua posição.Vênus adorava as noites de lua cheia porque todos p
Athena ficou atônita com o pedido da irmã. Por um instante a fitou. Vênus estava eufórica e ansiosa por ouvir sua resposta.– Me diga Vênus: de onde surgiu essa ideia repentina de querer lutar?A deusa do amor suspirou. Não queria dizer para a irmã o que tinha se passado com ela naquela madrugada. Provavelmente ouviria um prolongado sermão.– Minha querida, irmã... o que posso dizer é que realmente estou determinada a aprender a lutar e persistirei até alcançar meu objetivo. – Vênus respondeu muito séria. Apesar disso, Athena ainda não acreditava nas intenções dela. Mas como a amava muito, resolveu apoia-la.– Está bem. O que eu posso fazer para ajudá-la?– Gostaria que você me ajudasse a organizar um jantar para me apresentar aos soldados de Olímpia.– O quê? Nem pensar.– Qual o problema, Athena?– Você está tentando inventar meios de fugir de sua clausura. Por isso veio com essa história sem cabimento de querer lutar.– Eu não estou inventando nada. Já ficou bem claro que eu não ac
Vênus estava jogada em sua cama, com os pés agitados balançando de um lado ao outro, ora olhando para o teto ora observando de cabeça para baixo o vestido que estava no manequim. Era o que ela tinha feito para sua irmã. “Perfeito”, ela refletiu.Mas ao se dar conta de que faltavam apenas dois dias para o jantar e ela nem sequer tinha começado a fazer a própria vestimenta, ficou nervosa. Como faria algo que a deixasse bela e ao mesmo tempo ocultasse seu rosto?Seus pensamentos se perderam nesse pedido incompreensível de Athena. Não podia ter espelhos, as pessoas não podiam vê-la. Por quê?Tinha certeza de que era bela. Por um instante chegou a pensar que talvez a irmã tivesse inveja de sua beleza. Franziu a testa e levantou-se abruptamente como se quisesse espantar aqueles pensamentos tolos.– Minha irmã me ama! Há de ter outro motivo. Agora o que importa é fazer algo triunfal para mim. – Discutiu sozinha, a deusa do amor.Havia alguns livros sobre a escrivaninha de Vênus. Voltou a fol
Finalmente o dia do jantar planejado por Vênus tinha chegado. Tudo já estava organizado, deixando assim, o dia livre para as duas irmãs se dedicarem a si mesmas para o evento tão aguardado.Pela manhã, as duas adolescentes estavam em uma terma particular. Elas se banhavam nuas sob a suave luz do sol primaveril, em uma água morna perfumada com óleos e flores. Entre rosas, lichias e magnólias as deusas relaxavam e conversavam.– Vênus, você tem certeza que vai partir em treinamento? – No fundo de seu coração, Athena ainda queria fazer a irmã desistir de seus planos.– Tenho sim, irmã. Não há outra coisa que eu mais queira no momento.– Me diga, por favor, o que te fez desejar isso? – Athena queria entender o motivo que impulsionava Vênus a seguir por esse caminho imprevisível.Vênus ficou em silêncio por um tempo. Suspirou. Recordou-se da noite em que quase tinha sido ferida por um estranho, da jovem que a alertara sobre os perigos da noite e do medo e desalento que ainda sentia.– Quer
Todos ficaram apreensivos, esperando pela entrada da deusa. Caminhando delicadamente, Vênus surgiu, trajando um encantador vestido charmeuse cor de vinho, de um ombro só, bem marcado na cintura e com uma fenda na perna direita. Parecia uma sereia, estava muito sedutora. Para completar o seu visual, usava contas de pérolas em seu lindo cabelo castanho claro, levemente ondulado. Para ocultar seu rosto, como sua irmã havia pedido, ela usava um lenço semitransparente que cobria seu nariz e boca.A jovem parou por um instante e fez uma reverência aos convidados, sem nada falar. Continuou sua caminhada até chegar no local em que sua irmã estava.Athena ficou estarrecida com as vestes de Vênus. Sussurrou ao ouvido dela:– Está vestida de uma forma muito ousada.– Que bom que você gostou, irmãzinha. Você está linda também. – Vênus respondeu de forma sarcástica esperando que a irmã se contivesse.Um brinde foi feito em nome de Athena e Vênus.A aparência da jovem Vênus deixou a todos estontead
Na manhã seguinte, ao som do canto melodioso de vários pintassilgos que rodeavam por entre o jardim e a janela do quarto de Vênus, ela ainda se encontrava em sono profundo.Estranhando que a irmã ainda não tinha aparecido, conforme tinham combinado, Athena foi procurá-la em seu templo.Ao encontrar Vênus, ainda debruçada em sua cama e toda descoberta, Athena suspirou. Sentou-se ao lado dela e começou a balançar seu tronco a fim de que despertasse.– Acorde, Vênus! – Athena falou com doçura.Vênus despertou aos poucos.– Irmã?– Levante, vamos! Você já está atrasada para seu compromisso.– Ah! Não! Perdi a hora.Vênus deu um salto da cama e correu para tomar um banho. Athena a acompanhou e continuou conversando com a bela.– Gostou do jantar?– Eu adorei, irmã. Foi inesquecível. Gostei de todos, foram muito amáveis comigo. Fiquei tão feliz que custei a pegar no sono. É tão bom poder desfrutar da companhia de outras pessoas.– É verdade. Foi uma noite muito agradável mesmo. E você já de