Bluey

Eu vi meu humano quando abri os olhos pela primeira vez. Estávamos em seu berço e ele dormia serenamente ao meu lado. Foi o meu primeiro dia de vida, mas eu já sabia que aquele garotinho de finos cabelos negros, bochechudinho e de nariz achatado era o meu humano.

 Me aproximei devagar, meio desengonçada. Estendi minha mão para tocar seu rosto, mas hesitei, temendo acordá-lo. Para falar a verdade, eu estava com muito sono e acabei adormecendo ali mesmo. Na manhã seguinte despertei com o som do meu humano chorando. Lembro que ver ele triste assim me partiu o coração. Sua mãe logo veio, o tirou do berço e o pôs em seu colo, me ignorando por um momento, mas logo sorriu e estendeu o braço para que eu pudesse subir na palma de sua mão e me levantou até a altura dos seus olhos - Oi pequenina. Não se preocupe, logo aprenderá a voar - vi sobre seu ombro esquerdo um pequeno homenzinho de cabelo e vestes verdes, olhos puxados, orelhas pontudas e medindo mais ou menos a minha altura. Ele pairava no ar com a ajuda de duas asas emplumadas que se agitavam freneticamente. O homenzinho olhou para mim com uma expressão acolhedora e se aproximou.

-Bem-vinda à família! - entoou em alto e bom som abrindo os braços - Meu nome é Birdie - se apresentou apertando minha mão. Consegui sentir a leve brisa que suas asas provocavam - Esta é Cátia - apontou para a mãe do meu humano - Ela é a minha Ama. O bebê que ela está amamentando é o Kris, o seu amo. Acredito que você já saiba das suas obrigações, estou certo? - ele me fez uma pergunta, mas eu não sabia como responder. Nunca havia dito uma única palavra em minha curta vida e não sabia direito como usar os meus lábios. Birdie me olhou por um tempo aguardando uma resposta, mas como não obteve nenhuma continuou a falar - Em todo o caso vou explicar-lhe. Você, assim como eu, é uma Leedwee. Você nasceu junto com o Kris, portanto você é a Leedwee dele. Seu papel nos primeiros anos do garoto é garantir seu bem-estar. Deverá vigiá-lo, aconselhá-lo e comunicar aos pais sempre que algo estiver errado. Acredito que esteja com uma sensação estranha no estômago que causa um certo desconforto, estou certo? - de fato eu estava, então concordei com a cabeça - O nome disso é fome. Se você sente isso então significa que o Kris está com fome e precisa comer, por isso ele estava chorando ainda a pouco. Quando sua mãe terminar de alimentá-lo a sensação de fome no seu corpo irá passar. Tudo o que ele sente, você também sente, mas não se preocupe, você não precisa comer, beber, ou ingerir medicamentos. Kris e você tem uma ligação espiritual, portanto se ele estiver bem você também estará, é simples. A sua voz será a voz dele durante seus primeiros anos. Você entendeu? - tornei a concordar com a cabeça. - Ótimo - ele sorriu em aprovação, mas logo sua feição se tornou mais séria - Mais uma coisa: em hipótese alguma se afaste do seu amo! Se fizer isso seu corpo se tornará cinza e quebradiço podendo até mesmo virar poeira com uma simples brisa. Assim você morrerá e seu amo sofrerá as consequências de perder seu Leedwee. O limite máximo é de 3 quilômetros, mas sugiro que sempre fique no mesmo aposento que seu amo no início, para evitar possíveis complicações. Compreende? - concordei novamente - Muito bem. - Birdie tornou a sorrir. De repente me senti tonta e bocejei. - Cansada, hein? Significa que Kris está pronto para voltar a dormir. - Ele voou até bem perto do rosto de Cátia - Minha ama, creio que vosso filho saciou sua fome e está pronto para retornar ao berço.

Não me lembro de muito mais daquele dia, nem dos dias subsequentes. Assim como Kris, passei a maior parte do tempo dormindo no berço. As vezes acordava num pulo por meu amo estar com fome ou ter molhado a fralda, mas logo comunicava aos pais de Kris. Nas semanas seguintes, enquanto meu amo se distraía assistindo ao DVD de canções infantis de domínio público, Birdie se dedicou a me dar aulas de voo. Tive dificuldades no início, cheguei a levar quedas bem feias que seriam fatais para um humano normal, mas como Leedwee sofri poucos arranhões que se curaram quase que imediatamente. Na terceira aula consegui me manter parada no ar sem despencar. No quinto dia eu conseguia me mover pela sala, ainda que bem devagar. Na décima aula eu podia voar com mais velocidade e desviar de alguns obstáculos. Duas semanas depois da primeira aula eu já dominava totalmente o dom de voar. Minhas asas batiam freneticamente quase que automaticamente, então eu conseguia me concentrar em outras coisas sem correr o risco das minhas asas pararem me fazendo ir de encontro ao chão. Birdie elogiou meu desempenho dizendo que ele levara pouco mais de três meses para voar perfeitamente, e que aprender a voar era equivalente à experiência de um humano com sua primeira bicicleta.

 Birdie me explicou o motivo de eu ainda não ter um nome. Me contou que apenas meu amo pode me nomear, e que até ele conseguir falar e ter capacidade para entender que precisava me batizar, eu seria um Leedwee sem nome. Então por alguns anos eles me chamaram de Azulzinha, referente à cor do meu cabelo e das minhas "vestes", uma cobertura natural de queratina que reveste o corpo de todos os Leedwees, que é da mesma cor que seus cabelos e que parecem vestidinhos.

Quando meu amo tinha três anos ele me batizou. Passarinha. Sim, esse foi o meu nome por um tempo, até que Kris mudou de ideia e passou a me chamar pelo meu nome atual: Bluey.

Por essa regra dos humanos nomearem seus Leedwees desde pequenos, alguns de nós acabam com primeiros nomes toscos.

Alguns anos atrás, uma prima distante de meu amo veio passar o Natal na cidade e tive a oportunidade de conhecer o Leedwee dela. Ele tinha cabelos e vestes marrons, o que me fez entender o porquê de seu nome ser Cocô. Senti pena dele. Dava pra ver sua expressão de vergonha e desconforto quando sua ama de 4 anos o chamava perto das pessoas.

Não demorei a fazer amizade com os Leedwees da família de Kris. Bolly, que pertencia ao pai de Kris tinha cabelos brancos, era esguia e adorava se sentar para assistir a esportes com seu amo. Já Karlito, de cabelos e vestes negras, era da irmã mais velha de Kris. Não costuma falar muito comigo, mas é um cara legal, na maioria das vezes. Também conheci o Velho Jack que pertencia a avó do meu amo, mas infelizmente ele virou cinzas quando a avó de Kris faleceu. Suas cinzas foram postas em uma pequena urna e enterradas junto com ela. Na lápide está escrito "Aqui jaz Hebe Karino, amada esposa, mãe e avó, e Velho Jack, seu eterno companheiro". Os amigos de Kris também possuíam companheiros muito amigáveis, mas não vou falar deles agora.

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Levantei-me eufórica naquela segunda-feira pois eu queria ser a primeira a desejar feliz aniversário para o meu amo!

Tirei os dois protetores de asas que impediam que minhas plumas fossem arrancadas caso eu me mexesse muito durante a noite, e comecei a arrumar minha cama.

Eu dormia em cima do criado mudo ao lado da cama de Kris. Lá eu tinha uma pequena réplica do quarto de meu amo. Tinha a minha mini cama de 10 centímetros de comprimento onde eu cabia perfeitamente, meu miniarmário guardando meus minis lençóis e cobertores, e meu mini guarda-roupa onde estavam minhas roupinhas, apesar de eu não precisar delas. Do lado da minha cama até tinha um mini criado mudo com uma réplica menor ainda do quarto com uma bonequinha de 1 cm de mim mesma. Eu gostava de brincar com ela, a chamava de mini Bluey.

Me pus a 1 metro de altura de Kris. Ele estava com muito sono, pois eu estava sonolenta apesar da euforia. Olhei para o relógio digital em cima da cabeceira da cama marcar 06:59AM. Ele apitou ao dar 7 horas e eu voei como uma bala em direção ao rosto de Kris, abraçando-o. Ele acordou na hora, levantou-se espantado, me catapultando para frente. Consegui me recompor no ar e abri os braços e um largo sorriso para dizer:

-Feliz aniversário!

Kris esfregou os punhos nos olhos.

-Oi Bluey - ele respondeu com um leve sorriso, ainda tentando acordar direito. Ele levantou devagar e caminhou arrastando os pés até o banheiro no fim do corredor. Eu não o segui pois Kris não gostava que eu o assistisse fazendo suas "coisas", embora eu conseguisse sentir quando ele fazia força ou quando seu corpo é envolvido pela água morna do chuveiro.

Eu não tomava banho. Não que eu detestasse me lavar, o caso é que eu não precisava. Como meu corpo não produzia fluídos malcheirosos, como suor, eu apenas me limpava no início e no fim do dia com lenços umedecidos.

Enquanto Kris estava no banho, tentei arrumar sua cama. Fiz força e bati minhas asas mais rápido para colocar o cobertor em seu lugar. Para mim era difícil lidar com trabalho braçal, afinal era pequena e mal conseguia mover um décimo de um cobertor. Acho que a coisa mais pesada que já consegui levantar até então tinha cerca de 300 gramas.

Como falhei na tarefa de arrumar a cama, meu amo o fez quando voltou do banheiro, enrolado numa toalha.

Kris, já arrumado com o uniforme branco da escola, desceu as escadas e se virou para entrar na cozinha, onde todos já estavam acomodados, com exceção da Sra. Cátia que mexia em panelas no fogão. Eu o segui.

Cumprimentei a todos.

O Sr Pet Karino, um homem grande e corpulento de cabelos castanho e aspecto a princípio ameaçador, lia o jornal quando chegamos. Quando encontrou as palavras cruzadas ele sacou uma caneta do bolso do seu uniforme policial e começou a preencher os quadradinhos com letras. Bolly se sentou no ombro do Sr Pet para lhe dar dicas, conforme ele solicitou.

Tryna, a irmã de meu amo, uma adolescente esguia, de longos cabelos negros e amante de maquiagens com sombras escuras sempre estava com a cara num aparelho eletrônico, seja seu smartphone ou notebook. Karlito sempre estava ao seu lado para aconselhá-la a ler um livro, mas como ela não gostava, ele se rendeu e passou a ajudá-la a editar suas fotos e opinar sobre "De 0 a 10, o quando essa garota parece piranha?". Como o seu colégio não tinha uniforme, ela sempre ia de preto ou com a camisa de alguma banda de rock ou punk.

Enquanto a Sra. Cátia cozinhava, Birdie lia em uma pequena prancheta todos os compromissos que sua ama teria no dia. Me animei quando ele anunciou que às 6 da tarde teríamos uma pequena festa de aniversário para Kris.

Todos cobriram o garoto de amor quando o viram. O Sr Pet deu um forte abraço e alguns cascudos carinhosos no garoto. Eu consegui sentir.

Tryna milagrosamente largou o celular para beijar seu irmão na bochecha. Kris desesperadamente passou a mão onde fora beijado, alegando que aquilo era nojento.

  A mãe de meu amo preparou um super café da manhã de aniversário para ele, o que sempre foi tradição na casa. O aniversariante sempre tinha tudo o que gostava de comer no café. Por isso a Sra. Cátia serviu para Kris um prato com ovos mexidos com pedaços de bacon formando o número 10. No restante da mesa tinha uma jarra com suco de laranja, um pote com torradas, melão cortado, café, leite, omeletes de queijo e meio bolo de cenoura. Eu fiquei ansiosa para provar a comida. Apesar de não comer, eu sentia o gosto das coisas que Kris comia.

Kris aproveitou o café. Comeu de tudo. Pegou um pedaço de bolo e o enfiou na boca quando o ônibus escolar buzinou o chamando.

Meu amo correu apressado antes que o grande ônibus amarelo o abandonasse. Ele chegou a tempo, mas o motorista fechou a porta e partiu antes de eu entrar. Por sorte consegui passar por uma janela aberta. Não quero me gabar, mas eu era realmente veloz quando queria. Poderia facilmente ultrapassar um humano correndo.

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