Meu corpo estava quase completamente curado quando chegamos em casa. Eu já conseguia falar normalmente, mas ia demorar um pouco até que minhas plumas crescessem de modo que eu pudesse voar sem problemas.
De todas as partes do corpo de um leedwee, ossos e plumas eram os que mais custavam tempo para se regenerar. Claro, o tempo levado para a cura completa variava de leedwee para leedwee.
Apesar da dor excruciante que senti, eu estava aliviada por Kris estar são e salvo, não só porque isso significava que eu ficaria bem, mas também pelo fato de que ver meu amo sofrendo me partia o coração, sentimentalmente falando.
O que aconteceu no beco foi algo que só vi em filmes de ação: labaredas de fogo gigantes que surgiam do nada destruindo um prédio inteiro, causando pânico nas pessoas.
Kris esteve perto da morte, e eu de virar cinzas, porém fomos salvos por uma misteriosa rajada de vento que desviou o fogo mortal. Os membros do jornal daquela noite estavam tratando aquilo como um atentado terrorista orquestrado por grupos radicais, provavelmente formados por jovens alienados. Lembro bem do termo usado por eles para se referir a essas pessoas: Anticonformistas.
As palavras da âncora foram que esses jovens se deixaram acreditar em histórias absurdamente mentirosas sobre atrocidades que supostamente ocorrem nos Centros de Domesticação. Eu não acreditei em sequer uma única palavra que aquela mulher de voz robótica fora obrigada a dizer por seus superiores. A cada dia que passava eu sentia mais medo e nojo dos Centros de Domesticação, alguns deles sendo grandes patrocinadores de algumas das emissoras de TV mais influentes da nossa nação.
Anticonformista... Essa palavra havia ganhado força nos anos anteriores. Era geralmente usada para se referir às pessoas como a família de Kris, que acreditavam na igualdade entre humanos e leedwees e que achavam piamente que merecíamos direitos humanos. O termo era usado também para aqueles que não acreditavam na existência de Gaia ou Tyr, que consideravam ridícula a ideia de suplicar proteção à estatuas de bronze, que achavam tudo isso uma desculpa muito ruim para maltratar leedwees e que diziam não haver provas concretas de todas as histórias que nos contaram, a não ser livros escritos centenas de anos depois de tudo ter acontecido.
A família de Kris acreditava em Tyr, eram gratos pelo que ela fez pela humanidade, mas crendo que nós não deveríamos ser culpados pelos pecados dos nossos antepassados, muito menos pagar por crimes que nós, descendentes, não cometemos.
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Fomos recebidos por Katia angustiada por me ver naquele estado. Kris explicou o que havia ocorrido no Calçadão Comercial, o fogo, o pânico, a morte certa que nós evitamos. As palavras de Kris não deixara sua mãe menos assustada.
Enquanto Kris se preparava para a festa, fiquei descansando na minha cama para acelerar minha regeneração. Até o horário que marcava o início da comemoração meu corpo estava curado.
A festa foi um sucesso. Muitos dos parentes de Kris compareceram, e eu pude reencontrar alguns leedwees que há muito tempo não via. Era muito bom encontrar outros como eu que não estavam acostumados a apanhar de seus humanos, para variar.
Havia muitas coisas gostosas para se provar, brigadeiros, salgados de frango, cachorros-quentes com molho, pipoca doce e salgada, creme de morango com pedacinhos de fruta e, para finalizar, um delicioso bolo de baunilha com recheio de creme. Kris comeu até se empanturrar, e eu, através dele, apreciei o sabor de tudo.
Os amigos de Kris também apareceram, os vizinhos, os colegas da escola, ele também se alegrou muito ao ver que ganhara do pai o novíssimo console que acabara de ser lançado. Mas, de novo, algo estava faltando. Meg, assim como na escola, não compareceu à festa.
Meghann Cobalto, ou simplesmente Meg, era uma menina baixinha, magra e loura de 10 anos. Tinha o rosto salpicado de sardas, lábios finos e rosados e olhos azuis. Em sua bochecha direita ela ostentava uma cicatriz vermelha em forma de lua crescente. Como sempre, ela estava sorrindo quando Kris se aproximou. Nas costas ela levava sua mochila lilás e nos braços um embrulho verde na forma de paralelepípedo, envolto em um laço vermelho. Havia nele um selo com os dizeres: "Para Kris, de Meg e Júpiter".Meg mal esperou Kris chegar e correu para abraçá-lo com um dos braços, o outro segurando o presente. Quando o ônibus escolar partiu os dois foram se sentar juntos.-Parabéns aniversariante! - disse eufórica - 10 anos! Enfim conseguiu me alcançar! Aqui - disse erguendo o embrulho. Kris sorriu recebendo o presente.-Você não devia, Meg. Não precisava.-Não ouse dizer o que posso ou não fazer! Vamos, abra! - disse a jovem, os olhos brilhando.Meu amo desatou o laç
Eu não costumava conversar muito durante as aulas. Ainda que nós leedwees não precisássemos prestar atenção no que era explicado pelos professores, eu fazia questão de aprender tudo para auxiliar Kris nas tarefas de casa. Contudo não nos era permitido dar dicas durante provas, tanto que nessas ocasiões os professores nos mandavam para uma saleta que ficava na própria sala de aula. Entrávamos por uma portinhola em um espaço de cerca de dois metros cúbicos onde havia mini poltronas e versões em miniatura de jogos de tabuleiro para passarmos o tempo. Foi numa dessas ocasiões que conheci as corridas de leedwees. Kris tinha 5 anos na época e estava ocupado com um teste sobre cores e formas, enquanto isso fiquei num canto com os acompanhantes dos outros alunos. Eu conhecia a maioria dos presentes, mas não mantinha conversa com nenhum. Eu estava simplesmente sentada perto
-Cara, Bluey foi incrível! - anunciou Meg, em pé gesticulando excitada, para quem quisesse ouvir no ônibus - Ela voou tão depressa pela pista que eu a perdi de vista! Nunca vi nenhum leedwee ser tão veloz assim! Nem mesmo no campeonato continental!Senti meu rosto corar, envergonhada, o sentimento foi genuinamente meu, pois Kris estava olhando sorridente para Meg, feliz por minha vitória e ligeiramente aliviado por ter se livrado da surra que receberia caso eu fosse derrotada.Júpiter pairava sobre sua humana com a cara amarrada de sempre, apesar de estar completamente indiferente às palavras dela.-E o Arnon Trox... - continuou Meg - Tinham que ver a cara do idiota! Vou gravar aquela expressão ridícula naquela cara inchada para sempre! - o sorriso de Meg de repente se desfez, e uma expressão de tristeza e indignação tomou o lugar. Ela parecia ter se lembrado do que Arnon fizera a Jujuba por ter perdido a corrida - Babaca insensível - murmurou.Não pude deixa
Assim que Kris retornou a sua casa, mostrou aos pais o livro que ganhara de Meg, e contou como eu venci Jujuba na corrida, sem comentar que provavelmente voltaria para casa bem machucado caso eu perdesse.Após o jantar, Kris subiu para o quarto, arrancou a cobertura de plástico que envolvia o livro novo, sentindo aquele cheiro característico de papel e tinta de impressora, e pôs-se a ler deitado de bruços na cama."Enderson Corduroy (402-436) nasceu na cidade de Kruster, no território de onde atualmente é Neander. Não se sabe muito sobre a vida de Corduroy, mas estima-se que ele escreveu seu único livro, Contos de Fadas, em algum momento entre 420 e sua morte. Corduroy nunca chegou a publicar pessoalmente seu livro, o manuscrito foi encontrado décadas após seu falecimento. Contos de Fadas não é um livro particularmente bem escrito, mas atualmente é considerado um marco por ser um dos primeiros livros da história da humanidade e, até onde se sabe, o primeiro a retratar Ty
Acordei numa saleta, a mesma onde todos os leedwees ficavam em dias de prova. Conforme eu fiquei sabendo depois, Arnon acertou em mim e em Jujuba um chute tão forte que desmaiei. Kris correu desesperadamente para pegar a mim e a Jujuba, e não viu Arnon chegando para socá-lo no rosto. Meg ficou tão horrorizada que não conseguiu fazer nada.Eu estava deitada num dos mini sofás da saleta, me recuperando. Logo descobri que Arnon me presenteara com o braço esquerdo e 2 costelas quebradas. A concussão em minha cabeça já havia sarado. Jujuba descansava no outro sofá. Ligeiramente mais ferida do que eu, ela ainda estava desacordada, sendo cuidada por meia dúzia de leedwees dos colegas de Kris. Através da portinhola da saleta pude ouvir a aula acontecendo normalmente. Espiei pela fresta da abertura e, para o meu desagrado, Arnon Trox estava em sua carteira, a cara amarrada. Kris do outro lado da sala, tinha um curativo na bochecha esquerda.Os leedwees me contaram que
-Ela já está assim há 2 horas! Você deveria ter atirado uma somnum menor! - disse uma voz estranha. -Não tive escolha, eram muitas crianças humanas! - disse uma voz mais familiar. -Calem a boca, ela está acordando! - ralhou uma terceira voz. Lentamente abri meus olhos. Minha visão turva avistou três borrões coloridos que pareciam me encarar. Levei as mãos ao rosto e esfreguei os olhos, como se tivesse acabado de despertar de uma longa noite de sono. Ainda morosa, olhei para os lados, os olhos semiabertos, procurando por Kris. Pensei estar no quarto dele, mas quando minha visão se tornou nítida descobri que eu não poderia estar num lugar mais distinto do quarto da minha criança. Com o susto, caí do lugar onde estava sentada. Procurei à minha volta por algo que pudesse explicar por que eu me encontrava num lugar que parecia uma caverna sem saída. Antes de despencar, eu estava sentada numa cadeira que parecia ter sido esculpid
Meu queixo tornou a cair. O Cristal das Fadas, o lendário artefato que armazenava a essência vital de todas as fadas, perdido há quase 1 milênio, pendurado no pescoço daquela leedwee.-O-Onde...? C-Como...? - gaguejei incrédula.-Meus antepassados. Vim de uma linhagem de curandeiros que encontraram este fragmento em suas viagens de aprendizado. Pequeno, porém com um poder além da imaginação. Foi sabiamente passado de pai para filho e usado secretamente para curar os mais profundos ferimentos e as mais terríveis pestes que assolavam nosso vilarejo. Minha família era muito querida e respeitada na região, mas nem mesmo isso foi suficiente para amenizar a ira daqueles que me viam como uma aberração que cometeu o imperdoável crime de nascer. Foi o Cristal que me salvou quando meu humano morreu. Meu pai me deixou em um barco com o fragmento pendurado no pescoço e permitiu que a correnteza me carregasse para longe daquela vila. Na última vez que vi meu pai e
Foi você quem atacou o Centro de Domesticação na última segunda-feira? -E se fui eu? -Você quase matou Kris e eu! -Eu não sabia que você era uma fada. Vi um humano dando mole e eu não podia perder uma oportunidade assim. Eu estava prestes a explodir num berreiro, mas Pandora falou: -Surt, você andou depredando uma cidade humana? -Senhorita, eu depredei aquele lugar horrível que aliena leedwees! -E no processo matou humanos, consequentemente matando leedwees, não? -Foi um sacrifício necessário! -Surt, já conversamos sobre isso. Durante nossa busca não podemos matar ninguém. Lembre-se de que, segundo a lenda, se uma fada estiver na sua forma leedwee quando seu humano morrer ela também morre. Se você tivesse assassinado o humano da Bluey, perderíamos ela e seu poder, e então teríamos que esperar 200 anos a mais para concluir a