Capítulo 3

Owen

A mulher permanece inconsciente, na verdade, está mais para uma garota.

Ela é pequena demais.

Hugo me olha assustado, como se procurasse uma solução.

— Ei, garota, acorda! — Hugo fala, sacudindo-a e a pegando no colo em seguida.

Vejo minha carteira cair no chão e me apresso em pegá-la, mas a garota não se move.

— Ela desmaiou, não está fingindo — confirma, olhando para a ela, então me aproximo, fitando seu rosto sujo com algo que parece fuligem.

Como ela chegou nessa situação?

Seria menor de idade?

Por um momento, esqueço que a pilantra me roubou e sinto algo que se assemelha a pena, algo que não consigo explicar.

— Devemos chamar a polícia? A ambulância? — me pergunta.

Au au...

O animalzinho rosna e late, sem soltar o tecido da minha calça, enquanto isso os pingos caem mais espessos, nos molhando.

— Não vou envolver a polícia, ela é só uma garota. — Me volta a mente seu olhar assustado.

Encaro novamente seu corpo desfalecido, suas roupas maltrapilhas estão imundas e o tênis que usa está remendado com fita adesiva, olho para suas mãos pequenas, notando que estão pele e osso, então sou invadido por uma sensação estranha, uma que se assemelha a um soco no estômago.

Não quero acreditar que ela vive nas ruas.

Não quero imaginar o motivo para essa garota chegar nessa situação.

— Não podemos ficar aqui — Hugo afirma, negando com a cabeça.

Fazia muito tempo que eu não me sentia assim, sem ter a mínima ideia do que fazer de imediato, mas a chuva não me permitia pensar, ficando ainda mais forte.

— Leve ela para o carro antes que fiquemos ensopados — ordeno.

Todo whisky que bebi parece estar batendo com força agora, é como se eu não conseguisse raciocinar de maneira correta.

— Mas ela acabou de roubá-lo, não seria melhor... — Franzo as sobrancelhas, olhando para ele. — E se ela tiver alguns comparsas?

— Não acho que ela possa ter alguém a ajudando, ninguém além do vira-lata. — Aponto para o cachorro. — Vamos, leva-a para o carro e pensarei no que fazer.

O cachorro solta a minha calça e começa a latir desesperado enquanto pula, tentando alcançar o corpo desfalecido da garota, impedindo Hugo de se mover. Seu latido se mescla com um som que lembra muito um choro de lamento.

Não tinha dúvida alguma de que a garota era dona no bichinho e que ele estava consternado, tentando defendê-la.

— Ei, garoto...Vem aqui! — Tento me aproximar dele, me abaixando. É nítido que ele não vai deixá-la para trás. Ele rosna, me mostrando os caninos em posição de ataque. — Ela é sua dona? — sou idiota o suficiente para perguntar, achando que ele me daria alguma resposta.

Au au!

Ele late e volta a rosnar.

Posso ver em seus olhos escuros, como também em seu pelo arrepiado, o quanto ele está assustado. Eu não sou um canalha a ponto de deixá-lo aqui e, do jeito que ele é valente, me arrancaria um órgão se eu o fizesse.

— Sua dona não está bem, então vou levá-la para cuidar dela, então vai ficar tudo bem. Você pode acompanhá-la, mas preciso que mantenha seus dentes longe de mim. — Rio.

Eu estou agachado no chão, debaixo de chuva, falando com um cachorro que quer arrancar meu braço.

Ele late, como se tivesse entendido cada palavra dita por mim.

— Eu posso segurar isso? — pergunto, apontando para a guia improvisada com cadarços que está presa em sua coleira.

— Não estou acreditando no que estou vendo — Hugo fala, vendo o cachorro dar passagem.

Seguro a guia do animal, que segue Hugo quase correndo, enquanto eu tento acompanhá-lo.

Não vou tentar entender que merda acabou de acontecer, ou o que ainda vai acontecer, por hora eu quero entrar no carro e parar de me molhar. Olho para trás, vendo a garota ainda apagada no banco de trás, o cachorro está grudado a ela, às vezes ele lambe sua bochecha, como se quisesse acordá-la.

Um odor forte invade o interior do carro e não sei se vem do cachorro ou da garota, ou dos dois, mas o que me incomoda é pensar há quanto tempo essa menina está nas ruas sem tomar um banho digno.

E o soco no estômago vem forte.

Estive, por tanto tempo, preocupado em ganhar dinheiro e fazer um nome, que em momento algum parei para olhar o quanto todo esse mundo do glamour e dinheiro é uma merda, enquanto os menos afortunados são ignorados.

São Francisco é umas das cidades mais ricas do país?

Como eu pude me cegar de tal forma?

Viro meu rosto, olhando o limpador passar de um lado para o outro no para-brisas. Ainda chove e, conhecendo bem essa cidade, a temperatura deve ter despencado e nas ruas deve estar congelando.

Se ela não estivesse apagada no banco traseiro, onde ela dormiria?

Engulo em seco.

— Tem certeza de que quer fazer isso? — Hugo pergunta, olhando para frente.

— Se a levarmos para o hospital, quem garante que não irão envolver a polícia? — Ele não responde. — Você, melhor do que ninguém, sabe disso — completo.

Se eu aparecesse com a garota no hospital, é claro que alguém daria com a língua nos dentes, e dada a minha atual situação, logo toda a mídia estaria envolvida e, pelas circunstâncias em que a garota se encontra, não demoraria para a polícia aparecer, não posso arriscar.

Quero me socar por ter me envolvido com aquela cantora.

Avisto meu prédio e, em poucos minutos, Hugo estaciona em uma das minhas vagas. Não entendo por que me sinto responsável por uma garota que nem sei o nome e que, ainda por cima, me roubou.

Desço do carro, abrindo a porta traseira e vendo Hugo fazer o mesmo. Ele faz menção de pegá-la no colo e o cachorro rosna.

— Eu a levo — digo, vendo a expressão de surpresa. Entro com cuidado, a pegando no colo e prendendo a respiração para não sentir o cheiro que vem dela e do cachorro. — Leve o Totó.

O animalzinho late, como se tivesse odiado ser chamado de Totó.

— Confira se o elevador está vazio e leve as coisas dela. — Aponto para a mochila suja e remendada que Hugo tirou de suas costas antes de deitá-la sobre o banco do carro.

Enquanto a seguro, consigo ver melhor seus traços, os olhos fechados possuem cílios longos e negros, as sobrancelhas são naturalmente bem desenhadas e a boca, mesmo sem cor alguma, se destaca pelo formato de coração. Mesmo com o rosto manchado de sujeira, seus traços delicados ficam em evidência.

Mas que merda eu estou fazendo?

— Está limpo — Hugo, segurando a guia improvisada do animalzinho, mantém uma expressão apreensiva no rosto.

Entramos no elevador e permanecemos em silêncio até pararmos no andar correto, então entro no meu apartamento e coloco a garota deitada no sofá. A primeira coisa que o vira-lata faz ao entrar na minha sala, é mijar em todos os lugares possíveis, depois se deita ao lado da sua dona no sofá.

— Pode ir, Hugo! — falo, vendo-o apoiar a mochila em uma das poltronas.

— Tem certeza? Vai conseguir resolver isso? — pergunta, se referindo à garota e ao cachorro.

— Vou ligar para Evelyn, ela vai saber o que fazer. Mulheres se entendem, não é? — Dou de ombros e ele me encara, fazendo menção de dizer algo, mas desiste.

— Como desejar. Tenha uma boa noite, Owen.

— Boa noite, Hugo, desculpe pela bagunça que te enfiei, e se você não contar...

— O que aconteceu para sua mãe? — me interrompe. — Fique tranquilo, ela não vai saber de nada, se depender de mim. Só resolva essa questão da melhor maneira e o mais rápido possível. Não deixe o problema duplicar de tamanho. — Olha para a garota apagada no sofá e o cachorro se levanta e rosna.

— Pode deixar, Hugo, muito obrigado e boa noite — digo, abrindo a porta para que ele saia rápido. — Tchau e não dê com a língua nos dentes, vou fazer uma transferência em agradecimento. — Praticamente empurro o homem para fora.

Mal fecho a porta e já alcanço meu celular, discando o número de Evelyn. Não vou nem pensar em sua reação, só preciso que me ajude com a garota, e é melhor que ela veja um rosto feminino quando acordar.

E ela precisa acordar logo, o fato de estar há tanto tempo apagada começa a me preocupar. Nunca fiquei tão feliz por ter Evelyn morando no mesmo prédio que eu como agora.

Chama duas vezes e a filha da mãe desliga na minha cara. Tento mais uma vez, e ela desliga novamente, mas na terceira tentativa, ela atende.

— SEU FILHO DE UMA PUTA, VOCÊ VIU QUE HORAS SÃO? — grita com tanta raiva que afasto o aparelho da orelha.

— Não faço a mínima ideia — respondo.

— Eu vou te matar, Owen, eu vou te matar...—repete entredentes.

— Pode me matar depois, mas agora preciso que venha até o meu apartamento — peço, me virando para o sofá e vendo o cachorro me olhar de uma forma estranha.

Parece que esse bicho está querendo enxergar minha alma.

 — Eu estou dormindo, Owen, não vou até seu apartamento — reconheço sua voz debochada.

— Eu estou com problemas, pode vir, por favor? — peço.

— Claro que está com problemas, você me acordou, seu filho da mãe — diz irônica.

Respiro fundo, apertando a têmpora.

— Eu te compro aquela pulseira que tanto quer, e mexo uns pauzinhos para você ir ao camarim da Lady Gaga no próximo show dela, só venha logo, Evelyn — digo firme.

Ela desliga o telefone e não me preocupo, pois sei que atingi seu ponto fraco.

Três minuto depois, escuto minha campainha, abro a porta e ela surge em minha frente, usando um pijama com estampa do Pikachu, e algo que parece uma touca na cabeça, mas visivelmente irritada.

— Que cheiro é esse? Tem algum bicho morto aqui? — Passa por mim como um raio. Escuto o cachorro latir e, em seguida, um grito vindo de Evelyn. — Que merda você fez, Owen? — ouço-a dizer assim que entro na sala, a vejo se abaixar para se aproximar do cachorro.

O cachorro não rosna ou mostra qualquer resistência, na verdade, ele se aproxima de Evelyn e lambe sua mão.

Mas é um safado!

— Você é um bom garoto! — Afaga a cabeça do animalzinho e ergue o corpo, se voltando para mim. Ela respira fundo, buscando manter a compostura e não me esganar. — Por que tem uma garota apagada no seu sofá? Não, não responda, eu não sei se tenho saúde mental o suficiente para saber o tamanho da merda onde se enfiou. — Apoia a testa sobre a mão.

— Seja lá o que estiver passando na sua cabeça, não é nada disso.

O barulho do cachorro brincando com umas das almofadas chama nossa atenção, fazendo-nos olhar em sua direção.

— De onde veio o cachorro? — pergunta. — Que cheiro horrível!

Coço a cabeça, me questionando se ligar para Evelyn foi a melhor escolha. Ela se aproxima do sofá, olhando a garota de perto.

— Meu Deus, ela está drogada! — Tira a própria touca, a que prendia seus cabelos pretos, e se vira para mim.

— Não... Que merda Evelyn! — Arregalo os olhos — Acha que eu drogaria alguém? — pergunto, me sentindo ofendido.

Que tipo de pessoa ela pensa que eu sou?

— Desculpa, Owen, não foi isso o que quis dizer, mas porra... Tem uma garota apagada no seu sofá. — Volta a se aproximar da garota visualmente nervosa.

— Olha, Evelyn, se acalme, ela só está desmaiada.

Ela ergue o corpo, fungando.

— Esse cheiro está vindo dela? — Faz uma careta — Ela está fedendo — sua afirmação, apesar de verdadeira, me incomoda.

— Ela vive nas ruas, pelo menos é o que parece. Acho que não tem acesso fácil a um chuveiro — digo com ironia. Evelyn arregala os olhos, cobrindo a boca com as mãos. — Você pode me deixar explicar? — peço.

— Claro... — Ela assente, balançando a cabeça e olhando para a garota com um certo pesar.

— Eu estava saindo da Fallout e ela esbarrou propositalmente em mim, roubou minha carteira, então Hugo e eu corremos atrás dela para pegar de volta, minha chave estava lá, mas assim que Hugo a alcançou, ela desmaiou. Eu não encostei nela. — Respiro fundo e aperto minhas têmporas. — Devido à sua situação, imagino que viva nas ruas e pratique alguns roubos. A propósito, o vira... — Evelyn me olha feio — o cachorro que está prestes a destruir a almofada, é dela.

Ela me encara com a boca aberta, aparentemente tentando absorver o que acabo de dizer.

— Meu Deus! Por isso ela está tão suja e parece tão magra. Pobrezinha...— Seus olhos ficam marejados. Evelyn tem um coração gigante e eu sabia que agiria assim.

— Antes que me pergunte, eu quis trazê-la para cá porque, se eu aparecesse com ela em um hospital, alguém falaria algo e, sabe se Deus o que a mídia iria dizer, até porque estou quase sendo o homem mais odiado da América por causa de Lindsey — bufo.

Evelyn toca o rosto da garota e em seguida confere seu pulso.

— Os batimentos dela parecem fracos. Droga, eu não entendo dessas coisas! — diz preocupada. Me aproximo das duas, ignorando a almofada sendo destruída pelo projeto de Taz-Mania[i] — Ela não acordou nenhuma vez? Não se mexeu? — pergunta, olhando para mim.

— Não.

— Pega um pedaço de pano e um pouco de álcool — pede e eu a encaro sem entender. — Para de me olhar com essa cara de paspalho e traz logo o que pedi — ordena, com o semblante duro.

Me apresso, indo até a cozinha e pegando um guardanapo e um vidro com álcool, entregando para ela assim que volto para a sala. Evelyn abre o vidro e encharca o guardanapo com álcool.

— O que vai fazer?

— Vi isso em uma série, tomara que funcione — diz, colocando o guardanapo encharcado próximo ao nariz da garota.

Tenho um insight vendo a cena e me sentindo um idiota por não ter pensado nisso. Me aproximo, mantendo os olhos fixos no rosto do meu novo problema.

Suas pálpebras tremem, me fazendo acreditar que a ideia de Evelyn está dando certo, então seus olhos se abrem, me dando o vislumbre de duas esferas azuis perfeitas.

Talvez sejam os olhos mais lindos que já vi na vida, talvez não, eles são os olhos mais lindos que já vi.

Meu coração dá um salto quando ela ergue o corpo rapidamente, quase atingindo meu rosto com a cabeça. Dou alguns passos atrapalhados para trás e ela abraça as pernas, olhando ao redor, visivelmente assustada.

— Onde estou? — sua voz é fraca e o cachorro pula no sofá, sentando-se de frente para ela enquanto a cheira. — ONDE ESTOU?! — seu grito inesperado assusta Evelyn, que se afasta.

O cachorro começa a latir, se virando para nós. Ela olha fixamente para mim, com o semblante assustado.

— Você...você... — Se esforça para se levantar, olhando ao redor.

Ela fica de pé, mas cai sentada em seguida, e o cachorro late mais alto. A garota passa as mãos pelos braços e pernas, como se procurasse algo, ou conferindo suas peças de roupa. Consigo notar suas mãos tremendo.

— Ei, calma...— Tento me aproximar e ela salta até estar do outro lado do sofá.

— Fique longe de mim. — Ergue a mão e o cachorro me mostra os dentes.

Ela volta a tocar suas roupas e passo a mão pelos cabelos, então olho para Evelyn, que parece estar exatamente igual, sem saber como agir.

— A gente vai embora daqui, Ares — diz, se levantando com dificuldade, mas agora conseguindo ficar de pé.

Ares, esse é o nome do cachorro.

Não posso deixar de notar o quanto sua voz é doce, mesmo com ela falando tão seriamente.

A garota olha ao redor e vê sua mochila, estica o braço, pegando-a e colocando nas costas com uma certa dificuldade, em seguida ergue o rosto, olhando fixamente para mim.

— Escuta, cara, eu não sei como vim parar aqui e não quero explicações, só quero ir embora... — suspira, olhando para o cachorro, que lambe sua mão. — Eu peguei sua carteira porque vi que você era cheio da grana e pensei que não ia fazer falta, eu não como nada há dias e só ia comprar comida. — Ouço um murmúrio vindo de Evelyn. — E você já a pegou de volta, não tem por que me prender aqui, me deixa ir embora, por favor, e você nunca mais vai me ver — sua voz é embargada.

A última frase dita por ela faz uma sensação estranha crescer dentro de mim.

Que porra está acontecendo?

— Por favor, cara, eu não quero problemas... Me deixe ir embora, por favor? Eu imploro, não me faça mal — pede e vejo uma lágrima descer em seu rosto sujo.

Ares dá um chorinho e late em seguida. É como se ele pedisse por ela.

Ouço os barulhos da chuva forte batendo nos vidros da janela. O que deixa claro que está fora de cogitação eu deixá-la sair daqui.

Jamais faria mal algum a ela, sinto uma necessidade estranha de vê-la bem, e para que isso aconteça, preciso dela aqui.

— Oi, eu sou Evelyn — Minha amiga se aproxima dela e a vejo dar um passo para trás. — Você desmaiou e Owen trouxe você para a casa dele, mas só porque ficou preocupado. Ninguém aqui vai te fazer mal.

— Sim...— Respiro aliviado por Evelyn estar tomando as rédeas da situação, se eu estivesse aqui sozinho, tenho certeza de que seria ainda pior.

— Nós só queremos ajudar você, não precisa se preocupar — a voz de Evelyn é calma e compassada.

A garota parece baixar um pouco a guarda, mas isso muda no instante que olha para mim.

Não é um simples olhar, ela tem medo nos olhos.

— Eu não preciso de ajuda — diz, se voltando para Evelyn.

[i] Personagem de desenho animado dos anos 90

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo