Sempre acreditei que Deus tinha um propósito para mim. Acreditei piamente que minha infância era apenas um teste. Afinal, Ele não dava carga maior do que se pode carregar.
Eu carreguei a carga de ter um pai agressivo e uma mãe submissa, carreguei até não poder mais. Não que meu pai agredisse fisicamente minha mãe, pelo menos nunca vi. Era os gritos constantes, era o carinho forçado diante das pessoas enquanto dentro de casa só se dirigia a sua mulher e sua filha para reclamar, para gritar. As mentiras com as quais convivia me tornava uma pessoa medrosa. Já sabia identificar cada olhar do meu pai. E já sabia como seria o meu dia por esses olhares.
Apesar de já entender desde muito cedo que dias calmos eram raros como um eclipse solar, eu ainda os desejava ardentemente. Nunca achei isso normal. Mas vai saber. As pessoas que olham nossa família jamais diria que somos infelizes. Talvez eu é que espero uma felicidade que não existe. Talvez todas as famílias sejam assim: belas ao olhar e feias no interior.
— VOCÊ NÃO FAZ NADA. SUA ÚNICA OBRIGAÇÃO ERA EDUCAR SUA FILHA. E NEM ISSO CONSEGUIU. INÚTIL!
Enquanto ele grita, nenhum som vem da minha mãe, mas sei que ela está ali. A discussão acontece na frente do meu quarto. Afinal, eu sou o motivo.
M*****a hora em que mencionei que queria permissão para ir ao show dos Newsboys. Não pedi para fazer uma tatuagem, não apresentei um namorado duvidoso, apenas perguntei se podia ir a um show.
Fico imaginando como ele não tem um “treco” com essa agitação toda logo após o jantar. Eu estou prestes a vomitar tudo que comi.
Fico deitada na cama ouvindo tudo. Quando eles finalmente se afastam, recebo uma ligação de vídeo da única pessoa que me liga.
— Oi, Ligia! Tudo bem?
— Péssimo querida. Aquele piralho não me escuta. — Rio da sua expressão emburrada.
Ligia é uma boa amiga. Uma senhora muito mais rica que meu pai, que mora no mesmo condomínio e sempre nos convidava para seus eventos. Nunca íamos. Apenas quando era algo íntimo, sem convidados externos. Eu acabei me tornando amiga dessa senhora. Para dizer a verdade era a minha única amiga. Meu pai dizia que pessoas da minha idade não tem nada na cabeça, que é conveniente conviver com uma senhora. Nem ligo. Gosto muito dela.
Na verdade, ela é a “melhor amiga” da minha mãe, que acabou se tornando minha amiga também. Mas não falamos sobre o relacionamento dos meus pais, esse é o limite para essa amizade dar certo.
— O que ele fez dessa vez? — pergunto.
Vou focar no seu drama familiar e esquecer o meu.
— Preparei um jantar todo especial para ele conhecer a filha da Janete e aquele ingrato trouxe uma garota de programa como convidada. Acredita nessa palhaçada?
Não consigo conter o riso ao imaginar a cena. Meu contato com o tal filho dela é zero praticamente, apenas o vi de vista e conheço sua reputação de CEO poderoso e mulherengo pelas conversas que ouço no condomínio e pelos desabafos da Ligia.
Ela passa algum tempo desabafando sobre as roupas e atitudes vulgares da convidada do filho, e lamentando que perdeu qualquer esperança de um romance entre ele e a filha de Janete.
A garota é outra que tenho contato nulo. Vejo mais em revistas e anúncios de produtos de beleza. Ela é modelo. Uma mulher loira tão linda que qualquer homem gostaria de se casar com ele. Pelo jeito, não Noah. Acho que se minha amiga quiser netos vai ter que fazer outro filho... ou esperar que uma das aventuras dele acabe em um filho não planejado.
— Eu desisto. Desisto — repete bufando. — Você é que devia ser minha filha. Uma pessoa doce e obediente.
— Tenho meu lado rebelde — rebato.
— Mas nada como aquele meu filho ingrato.
Pelos próximos minutos conversamos e ela me faz esquecer meu próprios problemas. E depois que encerramos fico pensando na rebeldia do Noah ao ponto de não conseguir dormir, imaginando se faria alguma diferença se eu fosse um pouco mais como ele... Talvez seja por isso que estou nesse momento me esgueirando para fora da minha casa, apenas com a camisola de algodão por baixo de um casado rosa bebê, que espanta o friozinho desse inverno.
Medo e felicidade mesclam enquanto ando pelas calçadas do condomínio. É madrugada, está vazio. Isso mesmo, fugi de casa escondido e fiquei andando pela rua do condomínio ouvindo as músicas da banda que queria ir ao show.
Cantarolava distraída quando um carro passou por mim em alta velocidade. O veiculo azul brilhante, conversível é do filho de Ligia. Ela já reclamou sobre o quanto o rapaz usa sem ter medo do perigo.
O carro dele passou por mim, e depois deu ré, parou a minha frente.
Tirei os fones. Pelo susto do carro passando tão rápido. E também porque talvez ele tivesse algum recado de Ligia. Mas não... Ele apoiou o braço coberto pela jaqueta de couro no carro e disse a frase mais maluca que poderia sair da sua boca.
― Acho que daria certo.
Eu o ignorei, coloquei os fones de volta. Esse homem deve estar bêbado. Conheço a fama do filho de Ligia. Trabalho, álcool e mulheres. Quase na mesma proporção.
Ele deixou o carro no meio da rua, desceu e puxou os meus fones. O cara puxou meus fones.
― Não me ouviu, anjo?
Revirei meus olhos. É hoje que saio na mão com um bêbado muito maior e mais forte que eu. Certamente meus pais me manterão em um porão para evitar a vergonha.
Novamente o ignorei. Andei alguns poucos passos e sentei na calçada. A esperança era ignorar o bêbado e ele sumir. Deu certo? De jeito nenhum.
Ele sentou ao meu lado.
― Já vi que você é bem difícil. Vai ser perfeita para o cargo.
“Perfeita para que cargo?” Esse homem não parece estar batendo bem das ideias.Irritada pela presença inesperada, me virei para ele. E quase enfartei ao encarar seus hipnotizantes olhos azuis. Não havia possibilidade de existir algo tão perfeito quanto os olhos desse homem. E a boca vermelha? Deus, olhar sua boca despertou uma parte minha que não devia, um ponto bem específico entre minhas pernas. Malditos hormônios de virgem! Passaram alguns segundos antes que eu pudesse reagir. Tive que limpar a garganta e desviar o olhar desse rosto que exala pecado.― Posso ajudá-lo? — questionei.Isso, garota, mantenha a voz firme. Não é a primeira vez que encontra esses olhos. Mas é sempre a mesma reação de quem está diante de algo surreal. Encarar o filho de Ligia me deixa meio zonza. Minha sorte é raridade de o ver... e tão perto assim nunca aconteceu.― É Esperanza, certo? — ele devolve minha pergunta com outra.― Sim — respondo e balanço a cabeça.― Melhor amiga da minha mãe, mesmo tendo i
Eu fui ao encontro de Noah. Conversamos durante horas. No começo eu achei absurdo a ideia de me passar por sua noiva, mas ele prometeu que assim eu teria liberdade. Como recusar isso?Acertamos que seria um namoro e noivado falso o mais sem toque possível. O religiosidade dos meus pais serviria como desculpa.Selamos o pacto com um aperto de mãos que despertou curiosas borboletas em meu estômago. Após isso passamos alguns dias combinando as histórias sobre o falso romance e finalmente contamos para nossas famílias. Foi um choque de ambos os lados, mas aceitaram. Meu pai é mais ganancioso que religioso. Me ter como noiva de Noah encheu seus olhos de brilho.Então, baseados nas nossas mentiras, nossos pais deram uma festa de noivado poucas semanas depois e passei a carregar uma aliança. Todos nos viam como um casal inusitado. Quando, na verdade, Noah e eu tínhamos um acordo de levarmos esse noivado até quando fosse necessário e depois terminar. Ele usava nossos encontros para sair com o
Finalmente eu consegui dar um jeito na insistência da minha mãe.― Cara, já faz quase um ano que está namorando essa garota. Por que não a dispensa de uma vez? ― A voz de Gael, meu melhor amigo, CEO da empresa de advocacia que representa minha empresa e meu braço direito no quesito farra, sobrepôs a música ambiente e me tirou de recordações sobre a noite em que encontrei Esperanza e a ideia maluca de fingir um noivado começou a fazer sentido. Estamos em um bar de um colega dele, curtindo o fim da tarde de sexta.― Não sei por que faria isso. Conhece a minha mãe. Ela só largou do meu pé depois que comecei a “namorar” ― fiz aspas com os dedos ― sua queridinha.— Ideia minha. Que ainda não agradeceu.— Se eu agradecer mais você vai ficar me devendo.Ele ri.― Não consigo é acreditar que nunca pegou aquela coisinha de jeito. ― A expressão de tarado de Gael foi impagável. Ele era um safado de carteirinha, nenhuma mulher escapava do seu charme.― Uma virgem sem sal. Não tenho motivos, com t
Naquele dia, ele me buscou no horário. Queria fazer uma festa em seu apartamento e a idiota aqui resolveu que queria ir. Seria à noite e eu não estava a fim de dormir em hotel para fingir que estava com ele. E era uma mentira dupla, porque para os meus pais eu estaria com Ligia. Minha falsa sogra de liberal não tinha nada, mas parece que estava desesperada por um neto e aceitava nos encobrir na esperança de conseguir seu prêmio. Ela nem mesmo desconfiou do rápido envolvimento do seu filho comigo... ou se desconfiou fingiu não ver.Passei a festa toda entre me trancar em um quarto que ele deixou a disposição exclusivamente de sua noiva e me irritar com o ambiente. Era minha primeira festa do tipo. E eu estava morrendo de raiva por ele não me dar atenção. Sem contar que achei que estava bem no meu vestido azul longo, mas isso foi até ver as mulheres em roupas praticamente indecentes. Sem contar os olhares delas em minha direção. Me sentia um animal em um zoológico. O Noah me apresentou
Quando senti que o sono ia me tomar nos braços dele, ainda no sofá, tentei chamar Noah. Ele não acordou. Apenas resmungou palavras desconexas e me apertou contra seu corpo musculoso.Então, com muito trabalho, me levantei e percebi a bagunça. Ele estava com o pênis fora da calça, e havia sangue nele e no sofá. O membro tão grande que o sangue só pode significar que me rasgou. Merda. Merda.Apressada, fechei a calça dele. Meu rosto queimava de vergonha. Ainda bem que o jeans dele era tingido em preto ou o caos seria maior se fosse claro e mostrasse toda bagunça.Mal acabei de limpar o Noah e conferir que meu vestido estava intacto, e vi um dos bêbados no chão se levantar e cutucar o outro chamando para cair na piscina. Rapidamente me sentei no lugar sujo de sangue, disfarçando. Um dos caras, Gael pelo que me lembrava, arrastou Noah dormindo em direção a piscina. Aproveitei a oportunidade e “limpei” o sangue com vinho. Só assim para disfarçar na droga do sofá branco. Se fosse aparece
Faz meses que Esperanza terminou comigo através dos seus pais. Aconteceu pouco após a festa. Aquela festa me deixou com duas questões abertas. Primeira: O que aconteceu com minha “noiva” para ela terminar comigo sem mais nem menos. Segunda: Quem era a dona da calcinha que ainda se encontra na minha gaveta?Às vezes me questiono se Esperanza me pegou no flagra com alguma garota e se sentiu ofendida. Porra! Não lembro de nada.E sinceramente... achei que seria o paraíso, que usaria o término como desculpa para viver na farra sem a minha mãe poder reclamar, mas não foi assim. Me incomodou muito como acabou. Acho que no mínimo ela teria que ter me dito que queria terminar. É a atitude que uma mulher adulta deveria ter.Desde a noite que passou em meu apartamento naquela festa que não mais a vi, nem a minha mãe ela visitou mais. Claro que a senhora Ligia me culpou. Segundo ela, eu devo ter feito algo muito grave para isso acontecer.Às vezes me pergunto se realmente o fiz. Ela estava muito
Um erro. Apenas um erro e toda minha vida foi destruída. Se eu achava que era ruim viver sob as regras absurdas dos meus pais, não sabia o que viria.Ingênua. Burra mesmo. Fugi de Noah. Disse aos meus pais que ainda não estava pronta para me casar, que queria passar alguns anos em uma escola só para mulheres, onde a minha mãe estudou. Claro que eles aceitaram. No fundo acho que não confiavam no meu relacionamento com Noah. Estavam mais que certos.Confirmei a gravidez quando já estava no terceiro mês. Eu não tinha muita informação sobre sexo e fui tola em acreditar que uma vez sem proteção não seria capaz de engravidar. Juntando com minha menstruação desregulada, fui iludida até a verdade bater na minha cara.As responsáveis por mim no colégio me mandaram de volta para casa quando descobriram minha situação.Minhas mãos tremem segurando a mala. Meu pai e minha mãe estão na sala em pé, me olhando com expressões de pura decepção.— Grávida, Esperanza? — a voz do meu pai, mesmo baixa, rev
Quatro meses depois do nascimento do pequeno Sam, era hora de voltar, encarar as consequências e o seu pai. Por dois motivos, Noah merecia conhecer o filho e o dinheiro estava acabando sem que eu conseguisse me estabilizar.Não tenho notícias dos meus pais há meses, confirmei que para eles a imagem era mais importante que a filha. A última notícia que tive foi que eles se mudaram para outro país, literalmente em outro continente. Estavam vivendo com se só tivessem meu irmão como filho. Isso mesmo, eu tenho um irmão mais velho, que segue a linha para ficar igualzinho ao meu pai. Quase não tínhamos contato, mesmo morando na mesma casa. Isso no passado, porque agora não tenho mais contato algum com nenhum deles.Doeu muito saber da partida. Esperava que eles mudassem de ideia e me aceitassem de volta. Esperava mais compreensão. Eram meus pais. Que droga!Ter Sam em meus braços me faz ter a certeza de que perdoaria qualquer erro dele e o ajudaria a se reerguer se preciso fosse. Eu seria u