A noite passou em um breve estalo, e por um momento, quase esqueci o quão caótico havia sido o dia anterior. Meu pescoço dói, resultado de ter dormido numa posição desconfortável na cama. Abro os olhos lentamente e a primeira visão que tenho é de Alex, ainda adormecido ao meu lado. A televisão está ligada, o som baixo, e o filme parece estar no início, como se estivéssemos revivendo o mesmo ciclo de repetições. Não lembro ao certo quanto tempo ficamos acordados, mas certamente não foi muito.
Levanto-me devagar para não acordá-lo e pego um cobertor para cobri-lo. Antes que eu possa fazer mais alguma coisa, a porta do quarto se abre bruscamente, revelando Constance, a governanta da casa. — A senhora Montenegro exige a sua presença no café da manhã. — Ela faz uma breve pausa, como se ponderasse se deveria dizer mais. — Imediatamente. Com a mesma rapidez com que entrou, Constance desaparece. Solto um longo suspiro, passando a mão pelos cabelos, ainda confusa com o dia que se inicia. Caminho até a varanda, abro as cortinas e deixo o sol tocar minha pele. Fecho os olhos por alguns segundos, absorvendo o calor enquanto meus pensamentos se voltam para o jardim abaixo. Os preparativos para o leilão estavam a todo vapor; cada detalhe sendo cuidadosamente organizado. O peso da decisão de ontem retorna com força total. Minha mãe havia decidido que eu seria uma das atrações do leilão, junto com Ofélia. Sem sequer me consultar. Não que fosse uma surpresa. Para ela, minha aparência original era uma questão de honra, como se minha tentativa de me diferenciar da imagem de Ofélia fosse uma afronta à nossa essência. Ofélia, claro, deixou claro que não queria que eu aparecesse. E, por um breve momento, considerei ceder. Mas, depois do que aconteceu ontem, decidi que meu novo passatempo seria fazer com que ela se sentisse o mais desconfortável possível. Deixo a varanda, notando Alex já de pé, os cabelos despenteados e um olhar irritado. Ele era uma cópia perfeita de nosso pai, com seus olhos escuros e cabelos loiros, quase castanhos. Até a marca de nascença em forma de raio na sobrancelha era idêntica. — Vejo que já acordou — Comento casualmente. — Impossível dormir com todo esse barulho — Reesponde ele, revirando os olhos. — Mamãe exige nossa presença para o café da manhã — aviso, sabendo exatamente como ele reagiria. Sem dizer mais nada, Alex sai do quarto, deixando-me sozinha. Vou até o banheiro e encaro meu reflexo no espelho. Sem as lentes de contato, é quase desconfortável me ver assim, com meus olhos verdes naturais. Há tempos não os via, e a ideia de voltar a ser a Olívia original me causa repulsa. Mas, desta vez, não cederei por completo. Aceitarei uma imposição de minha mãe, não por ela, mas para irritar Ofélia. Após me preparar, visto uma calça jeans, salto scraping branco e uma camisa branca. Deixo o cabelo solto, sorrindo para o reflexo com uma satisfação controlada. A primeira coisa que noto ao olhar para mim é o meu rosto. Sinto uma onda de insegurança, mas essa insegurança é rapidamente abafada pela determinação de não deixar Ofélia triunfar sobre mim. Saio do quarto e desço as escadas, sendo informada por um dos empregados que o café seria servido na área da piscina. Alex já estava sentado, meu pai, como sempre, escondido atrás de um jornal, enquanto Ofélia me fuzilava com os olhos e minha mãe mantinha sua expressão de indiferença calculada. Sirvo meu prato em silêncio, até que, finalmente, minha mãe decide falar. — Não saia de casa hoje, Olívia. Em breve, uma equipe virá para cuidar dos preparativos da sua aparência para o leilão — Ela declara, como se fosse uma ordem incontestável. — Você fala como se eu fosse uma criatura bizarra — Respondo secamente, vendo Ofélia tentar conter o riso. — Só estou garantindo que tudo seja feito da maneira certa — Minha mãe retruca, sua voz fria. — Não precisa. Sei o que é melhor para mim. — Dá pra você, pelo menos uma vez na vida, obedecer? Ou vai me bater também, como fez com Ofélia? O sorriso frio se forma nos meus lábios. Estou prestes a levantar quando meu pai, sem tirar os olhos do jornal, fala: — Olívia, sente-se. — Sua voz é uma ordem. — O momento das refeições é sagrado. Aqui, unimos a família. Não tragam seus conflitos para a mesa. Agora, pelas confusões de ontem, irei bloquear todos os cartões de crédito de vocês até achar conveniente. — Pai? Isso não, pelos deuses! Como vou viver? — Ofélia dramatiza, como se fosse o fim do mundo. — Vivendo — Respondo com indiferença. Ofélia era a pessoa mais materialista que eu conhecia. — Talvez você devesse procurar um trabalho de verdade. Ela revirou os olhos, bufando. — Bom, adoraria continuar, mas tenho compromissos no restaurante. Vejo vocês mais tarde. Levanto-me, vou até meu quarto e pego minha bolsa antes de entrar no carro. Durante o trajeto, recebo uma mensagem da minha mãe, reforçando que eu não deveria me atrasar para o leilão. A noite chega rápido demais, e com ela o peso das expectativas que o leilão impõe. No meu quarto, olho para o espelho e, dessa vez, encaro a versão de mim que talvez tenha tentado esconder por tanto tempo. O cabelo está de volta ao preto original, com duas mechas loiras que me representam de forma mais autêntica. Olhando de perto, percebo como meus olhos verdes parecem mais intensos sem as lentes de contato. Essa era a verdade crua: eu sou Olívia, com todas as minhas falhas e inseguranças, e por mais que essa versão me assuste, é a única que tenho. A noite exige uma transformação, e decido que não serei apenas a expectativa da minha mãe. Sinto uma mistura de emoções ao observar meu reflexo. Uma onda de rebeldia cresce dentro de mim. Vou até a penteadeira e pego a tintura que havia comprado secretamente. Visto um vestido verde que escolhi, elegante e provocador, com luvas que cobrem meus braços. Cada parte da roupa parece me fortalecer. Ao colocar as luvas, sinto uma faísca de poder e confiança. O vestido desliza pelo meu corpo, e vejo como a cor realça a palidez da minha pele e o brilho dos meus olhos. Fico em silêncio, parada em frente ao espelho por longos minutos, refletindo sobre a imagem que vejo. A tensão da noite se reflete em cada detalhe da minha preparação, mas também na minha vontade de causar impacto. Enquanto me olho, os pensamentos se acumulam: eu não sou apenas uma boneca em exibição. Eu sou mais do que isso. Estou prestes a entrar em um jogo, e vou fazê-lo em meus próprios termos. Saio do quarto, caminhando em direção ao salão onde o leilão acontecerá. A casa está em polvorosa, com empregados correndo para garantir que tudo esteja perfeito. Ao chegar na porta, paro por um momento, ouvindo o som abafado das conversas e risadas. Respiro fundo, ajusto as luvas, e com um último olhar para a versão de mim mesma que decidi exibir esta noite, entro. A cena está montada, e eu sou a estrela involuntária. Mas desta vez, jogo sob minhas próprias regras.Assim que acordo, sinto uma dor de cabeça latente, como se tivesse estado horas sob uma sensação de tortura. Faço uma careta ao tentar levantar da cama; ainda estou com as roupas da noite anterior. Ergo o pulso e vejo que são 4:30 PM de sábado. Sinto-me aliviado, porque hoje não tenho nenhum trabalho. Detesto ter que faltar com as minhas obrigações. Pego o celular e vejo várias chamadas perdidas da minha mãe. Suspiro fundo, já sabendo que, provavelmente, ela queria saber como foi o jantar com a filha da amiga dela. Aperto a tecla e deixo que seu número chame. Quando ela atende, não ouço seus gritos histéricos sobre as atualizações, apenas um:“Não se esqueça do leilão dos Montenegro, será dentro de horas.”Por um momento, eu tinha esquecido que hoje seria o leilão dos Montenegro. Olhei para as minhas vestimentas e lembrei que não tinha vindo de carro. Recolho meus pertences e faço o check-out antes de pegar o primeiro táxi para casa.Ao entrar, sou recebido pelos olhares julgadores da
Embora eu estivesse confiante de que me sairia bem durante o evento, o medo começou a tomar conta de mim assim que entrei no salão e vi a quantidade de pessoas no leilão. Meu coração disparou, as mãos tremiam levemente, e os meus pés pareciam querer vacilar a cada passo. Os olhares curiosos, os sussurros discretos, o som suave de música clássica ao fundo... tudo aquilo começou a se misturar numa cacofonia desconfortável, como se o mundo ao meu redor estivesse comprimido e me observando de perto. Era como se, de algum modo, eu estivesse fazendo algo de errado. Respirei fundo, tentando afastar o nó que começava a se formar no meu estômago, e continuei andando.Ao longe, meus olhos encontraram o olhar firme e crítico da minha mãe. Mesmo à distância, pude perceber que ela não estava nada satisfeita com o meu visual. Seu pedido havia sido simples: que eu deixasse o cabelo todo natural, sem as mechas loiras que eu insistia em manter. Provavelmente, aquilo a deixara furiosa. Para evitar que
— Mãe, você realmente vai deixar a Olívia participar do leilão? — pergunto, a indignação transparecendo na minha voz assim que ela fica sozinha após uma conversa com uma das convidadas. O sorriso dela é o mesmo de sempre, aquele que tenta me acalmar, mas que só serve para aumentar minha frustração.— Não tenho muito o que fazer, Ofélia. As nossas atrações tiveram um imprevisto e precisamos de uma substituição — responde, seu tom firme, mas não sem um toque de exaustão. Esse tipo de situação parece estar se tornando comum, e isso só me irrita ainda mais.Eu não posso acreditar que ela realmente acha que isso é aceitável. Olívia não merece esse tipo de chance. — Ela vai estragar tudo. — A minha voz se eleva.— Imagine se ela não for escolhida e atacar-me por inveja? Mãe, a Olívia me odeia porque você gosta de mim.A expressão de minha mãe muda ligeiramente, como se um feixe de preocupação cruzasse seu rosto. Mas logo, essa preocupação é substituída por uma frieza que não consigo entende
Minha curiosidade sobre o homem que conheci no jardim crescia a cada vez mais. Ele parecia conhecer pedaços de mim que eu mesma desconhecia, como se enxergasse através de uma cortina que bloqueava minhas memórias. Seus olhares, suas palavras, carregavam uma familiaridade que eu não conseguia ignorar, mas também não conseguia decifrar. A psicóloga dizia que a perda de memória era um mecanismo de defesa da mente após eventos traumáticos. Um jeito de lidar com algo que a consciência se recusava a aceitar. Mas isso nunca pareceu uma explicação completa. Era como se houvesse buracos na minha história, peças faltando em um quebra-cabeça que, mesmo incompleto, ainda me atormentava. Quando eu tentava lembrar, sentia como se minha mente estivesse presa em um labirinto, incapaz de encontrar a saída.No entanto, havia algo que eu sabia com certeza: aquele leilão era o último lugar onde eu queria estar. Detestava ser o centro das atenções, ser exibida como um prêmio, mas minha mãe insistiu para q
Vejo Olívia saindo de mãos dadas com Easton, e algo dentro de mim se contrai. Eles passam por mim como se o ambiente ao redor fosse uma extensão de seu próprio mundo, e eu fico ali, com o copo de uísque na mão, tentando entender como aqueles dois se conhecem. Olívia não parece o tipo de mulher que Easton escolheria; seu jeito, seu estilo de vida, tudo nela soa como um contraste direto ao que ele costuma buscar. Levo o copo aos lábios, e o gosto forte do uísque desce rasgando minha garganta, mas não apaga o incômodo que vai crescendo a cada segundo.Por que estou irritado? Afinal, eu sequer a conheço bem. Paguei 25 milhões de dólares por ela no leilão. Qualquer outra mulher em Nova York enlouqueceria só por ter a minha atenção, mas Olívia? Ela parecia distante, intocável. Havia uma naturalidade desarmante no jeito como falava e se portava, como se eu fosse apenas mais um nome em sua lista de contatos, e não alguém que praticamente pagou por ela.Percorro os olhos pelo salão. Poderia es
São muitas emoções para uma só noite. Penso comigo mesma logo após voltar a atenção para Easton. A sensação de nervosismo, curiosidade e as borboletas no estômago que antes tomavam conta de mim na presença dele, foram substituídas pela recente chegada de Damien. Ele apareceu tão discreto quanto ousou ser, mas seu olhar direto e sua presença imponente não passaram despercebidos.— Eu preciso ir. Falamos depois, certo? — Pergunto, tentando manter a voz firme, mas a sensação de inquietação na minha mente é clara. Ele apenas sorri, um sorriso tranquilo, antes de depositar um leve selar no canto dos meus lábios. Isso deixa meu coração acelerado e uma sensação estranha invade o meu corpo.Como posso deixar um completo estranho chegar assim tão perto de mim? Por que, em vez de afastá-lo, sinto-me segura em dar-lhe tanto espaço? O que aconteceu com minha capacidade de julgar pessoas? O quanto da minha memória eu perdi nos últimos anos?Suspiro fundo, tentando afastar os pensamentos e encontra
Dormir nunca foi uma tarefa complicada para mim. Sempre foi natural, como desligar um interruptor ao fim de um dia exaustivo. No entanto, pela primeira vez em muito tempo, virei de um lado para o outro, incapaz de silenciar os pensamentos sobre o leilão. Não me arrependo do lance. Quando os primeiros raios de sol atravessam as persianas, finalmente desisto de tentar descansar. Levanto da cama com um suspiro pesado, observando o quarto em sua desordem incomum. Caminho até a varanda, buscando clareza na brisa matinal. O céu está limpo, e o som dos pássaros se mistura ao leve borrifar do sistema de irrigação no jardim. É um momento de calma que, infelizmente, não dura.Depois de realizar minha rotina matinal, escolho roupas leves, mas elegantes, e desço para o café da manhã. Na sala de refeições, meus pais estão conversando em um tom baixo, mas a conversa cessa assim que me aproximo. Minha mãe me entrega um iPad com um sorriso enigmático.— Bom dia, Damien. — Há algo entre diversão e cur
Ofélia é quem deveria estar na matéria, e não eu. Essa frase martela na minha mente enquanto fecho a aba da página de fofocas. O brilho da tela parece zombar de mim, enquanto as mensagens continuam a chegar sem cessar. Ana, sempre curiosa, já tinha me confrontado mais cedo:— Como você se sente caindo na graça de Damien Carter? — perguntou, com um tom que oscilava entre provocação e genuíno interesse.Eu apenas dei de ombros na hora, mas a verdade era que eu não sabia como me sentia. Parte de mim, talvez uma parte que eu relutava em admitir, gostava da ideia de finalmente roubar o brilho que sempre pertenceu à Ofélia. Pela primeira vez, ela não era o centro de algo.Mas essa pequena satisfação veio acompanhada de um gosto amargo. Ser observada, analisada, colocada sob holofotes que nunca pedi... era sufocante.Tentei me concentrar no trabalho. O restaurante estava calmo naquele horário, e a vista do jardim do lado de fora sempre me ajudava a encontrar equilíbrio. O lago artificial, ce