O funeral do Ulika foi um acontecimento marcante no seio do partido. Todos os membros do governo estavam lá, engalanados e ufanos… poucos estavam realmente condoídos e entristecidos. Alguns foram apenas para cumprir formalidades e exibir as vestimentas.
Entretanto, coube ao Primeiro-ministro dizer palavras de adeus ao malogrado. Porém, o discurso que ele proferiu pareceu místico para todos os presentes. Pela primeira vez os membros do governo viam o Primeiro-ministro a usar uma linguagem que não lhe era familiar; livre dos costumeiros jargões políticos e de propaganda. Disse coisas que a muitos pareceram absurdas e a outros lacónicas; e se não fosse o costume de se considerar óbitos como algo solene, todo mundo teria ou rido ou protestado. Disse coisas tais como: a morte… é uma invenção dos deuses, e do Ulika, para se divertirem.
Duas semanas mais tarde, num determinado dia de tempo chuvoso, quando a chuva caíra pela madrugada e a manhã parecia som
ULIKA - um herói sem géneseUm bom livro é aquele que provoca no leitor reflexões, que o faz pensar em diversas situações; enfim, que o induza a certas provocações. Quando leio um livro não me preocupo apenas com seu enredo, mas, principalmente, com o que ele pode dialogar comigo, mexer com minhas ideias, com a minha cultura. Espero que ele me apresente novidades ou que me faça andar por outros caminhos. Rubem Alves, que é um grande cronista brasileiro, ensina que um bom texto é aquele que nos deixa transformados, que nos faz pensar. Após a leitura de um bom texto, não seremos mais os mesmos. A leitura, nesse sentido, é uma viagem. Gosto de viajar nas leituras que faço. Quem escreve é um viajante do tempo e das realidades do mundo. Como sou mais poeta do que ficcionista (pelo menos, eu imagino que seja), procuro ver, como diz Manoel de Barros, o
Um menino de tez clara, olhos verdes, cabelos encaracolados crescidos até na testa. Pés calçados de sapatilhas, usando calças jeans pretas e uma t-shirt branca; em suma, como que trajado à moda estrangeira; isso se se identificasse a moda nacional. Era um rapaz estranho aos olhos de uma pessoa ordinária dessas nossas bandas.E para impressionar ainda mais, ele era dono de um nome também esquisito, principalmente para alguém com a sua aparência. Era um nome que quando crescesse mais e quisesse entrar no processo da socialização secundária lhe causaria muitos desgostos. É óbvio que em muitas circunstâncias seria caçoado: na escola, pelos colegas meninos da mesma idade e pelos professores, estes últimos já crescido mas mal-educados pela máquina que governa o país; na conservatória do registo civil, quando fosse para adquirir documentos de identificação social.- Por favor, repita o nome, meu senhor!? – Pediria um dos funcionários do notário. Um desses amesquinhados selvagen
Mas o menino é indiferente. O menino olha descontraidamente para espaço, para o além; como que nascido de um quadro de guerra e paz, como se nessa vida nada mais lhe impressionasse.Pode ter tido sete ou oito anos quando foi encontrado numa situação funesta: o suposto pai e a suposta mãe mortos, na cama. E ele, alheio, montando peças de um brinquedo. Talvez os supostos pais já estivessem mortos há dias e ele estivesse ignorando o sucedido. Ou ignorando ou desapercebido ou sabe-se lá mais o quê. Mas lá estava ele, com o seu olhar glauco vítreo refletindo a pacificidade de uma tragédia. Não se incomodando com a constante e massiva presença de agentes da polícia na sua casa.A polícia tinha concluído, no seu relatório sobre o caso, que o menino, mesmo teimando em não querer revelar nada, mesmo mostrando-se indiferente ao máximo, tinha assistido a olhos nus o assassinato dos pais, pois as conclusões revelavam que os mortos eram mesmo os pais dele. Bem deduzido por eles, e co
- Como te chamas!? – Perguntaram-lhe imediatamente assim que adentrou entre as muralhas do orfanato.- Ulika! – Tartamudeou.- Ulika, wau! Que lindo nome! – Assobiou a madre que se responsabilizava pelo orfanato.Pode ter sido um comentário honesto, nada embusteiro. Mas o rapaz não retribuiu o gesto; fechou os lábios e franziu o cenho, numa atitude de quem pede paz e solidão.- O Ulika só tem um nome? – Volveu a madre, ainda sorridente.- Sim – entreabriu outra vez os lábios para soltar o monossílabo e voltou a fechá-los imediatamente de seguida.Mas a madre não se cansava de rodeá-lo de mimos e simpatias. Recomendou a uma moça que se encontrava por perto para lavá-lo bem e trocar-lhe a roupa.Tudo foi cumprido a preceito. Duas horas depois o cabelo do miúdo reluzia, a sua pele resplandecia e as pupilas de seus olhos cintilavam como duas estrelas vivas. Isso atraiu ainda mais a atenção da madre. Esta que procurou apagar todos os vestígios do
Essa poderia ser a quarta ou a quinta cidade que ele visitava e morava. Lembrava-se dos primeiros bairros onde passou a sua infância. Tinha despertado os olhos da consciência aos três anos de idade e até agora ele já tinha percepcionado muita coisa.Com o dinheiro que havia amealhado no orfanato, oferecido por seus admiradores, onde se destacava a madre Lucinda, ele tinha conseguido viajar por uns duzentos e tal quilómetros. Sem itinerário traçado, sem destino à vista. Pôs-se num táxi, pagou a passagem sem se importar pelo destino que o bilheteiro mencionava e fechou os olhos. Adormeceu na hora, talvez fosse porque sentia algum alívio em se ver fora das muralhas do orfanato, talvez não, é um mistério. Agora sonhava, enquanto toscanejava, que se permanecesse por mais um dia no orfanato acabaria mal e os outros seriam afetados; por isso, agindo assim, estava a proceder da melhor maneira. Despertou, suspirou e abriu os olhos num instante para observar os companheiros da viage
Porém, o Ulika ficou na cadeia por uma semana até que decidiram soltá-lo, por falta de evidências recriminatórias.Voltou ao mesmo ambiente dos subúrbios, e continuou visitando cemitérios. Os cemitérios estavam a despertar nele uma simpatia astral. Ficava lá sentado, meditativo, como se estivesse a confabular com os eflúvios dos mortos. Não se cansava de ler os nomes e descrições adicionais nas lápides ou nas cruzes de madeira.«António Lundungu, falecido aos 19 de Dezembro de 199…», «Afonso da Conceição Mandume, falecido aos 04 de Fevereiro de 2003…; que sua alma descanse em paz», José Ferreira de Sá e Arcanjo, falecido aos 27 de Maio de 196…, e quejandos. Enfim, alguns meses depois conhecia todos os centros fúnebres daquela negra cidade, e sabia a média de funerais por dia.De dia vagueava pelos cemitérios rurais, aqueles que se situavam em zonas periféricas da cidade. De noite recorria ao cemitério urbano, este situado no centro e destinado ao uso das elites, pa
A vida pelas ruas da urbe não diferia muito da dos subúrbios e dos cemitérios. Apenas nas casas, nas estradas e um pouco mais de exuberância... Quanto ao resto empatavam-se. Ademais, era o barulho ensurdecedor que se produzia durante todo o dia e toda a noite. O Ulika era muito susceptível a isso. Porém, agora palmilhava as artérias em estado de degradação de uma vetusta cidade, procurando se manter vivo. Desde que tinha lido a escritura supostamente rabiscada por um psicopata numa cruz de madeira velha, sobre uma velha campa não cimentada que nasceu nele o desejo de viver mais copiosamente. Se não há ressurreição, porque apressar a minha morte? Já se questionava; e o seu espírito era visitado por uma onda suave de necessidade de mudança. Uma ação revolucionária que nasceria de si e se estenderia para todo o sempre, de geração em geração; ele sabia que isso podia significar tudo e nada ao mesmo tempo para a humanidade.Sentia que tinha enfraquecido muito nos tempos em que pass
Ficou internado no hospital daquelas bandas por duas ininterruptas semanas.O diagnóstico tinha revelado Febre Tifoide e os médicos e enfermeiros engajaram-se com afinco a tratar do doente, pois o senhor que o trouxera para o hospital garantira tudo para que o tratassem condignamente. Pediu relutante que lhe fosse garantido tudo o que fosse necessário para reabilitá-lo, que ele estava predisposto a arcar com todas as despesas. Este senhor não parecia ser nem político nem funcionário público. Pelo seu semblante até dava para lhe atribuir exercício comercial. As suspeitas recaíam mais para a exploração diamantífera ilícita, pois aquelas terras eram abundantes desse minério e há muito que intrusos garimpavam por lá. Pela forma como ele andava a entregar dinheiro para o tratamento do menino…- Como se chama o moço? – Perguntaram-lhe quando chegou com o doente.- Ulika! – Respondeu, num monossílabo seco.- Que nome estranho para um garoto como ele! – Ciciou uma en