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Um caso de Segurança

Essa poderia ser a quarta ou a quinta cidade que ele visitava e morava. Lembrava-se dos primeiros bairros onde passou a sua infância. Tinha despertado os olhos da consciência aos três anos de idade e até agora ele já tinha percepcionado muita coisa.

Com o dinheiro que havia amealhado no orfanato, oferecido por seus admiradores, onde se destacava a madre Lucinda, ele tinha conseguido viajar por uns duzentos e tal quilómetros. Sem itinerário traçado, sem destino à vista. Pôs-se num táxi, pagou a passagem sem se importar pelo destino que o bilheteiro mencionava e fechou os olhos. Adormeceu na hora, talvez fosse porque sentia algum alívio em se ver fora das muralhas do orfanato, talvez não, é um mistério. Agora sonhava, enquanto toscanejava, que se permanecesse por mais um dia no orfanato acabaria mal e os outros seriam afetados; por isso, agindo assim, estava a proceder da melhor maneira. Despertou, suspirou e abriu os olhos num instante para observar os companheiros da viagem, quando voltou a fechá-los foi para uma longa temporada de sono.

Na verdade, na verdade, não lhe importava saber aonde ia. Não era um poeta e a beleza da paisagem por que passavam não lhe atrairia. Foi por isso que dormiu a sono solto ao longo de toda a viagem.

Agora ali estava, sentado num banco de jardim. Um jardim com estatuetas esquisitas. Voltou a imaginar o mundo do orfanato: a escola, as professoras, as madres; os padres que as vezes visitam o orfanato, os enfarpelados do governo que faziam o mesmo e as preces que eram obrigados a entoar todos os dias antes das refeições e ao dormir e ao acordar. Quis limpar tudo da memória e pensar em outra coisa.

Mas ele não podia deter o pensamento em algum ponto fixo. A sua mente estava sempre a se embrenhar em pontos profusos e ambíguos.

Depois desse tempo em que ficou lá entre as muralhas do orfanato, ele também tinha crescido um pouco mais. Talvez tivesse completado onze anos de idade. Segundo os colegas e as professoras, ultimamente ele estava a ficar cada vez mais elegante. Se isso lhe fosse útil para alguma coisa agora! Talvez não passasse fome por alguns dias.

Mas não, pouco se importava com a sua aparência. Ele não olhava para as mesmas coisas que pessoas comuns. Muito além de um poeta ou um filósofo sonhador, seu olhar dirigia-se ao inefável. E assim saiu do jardim e dirigiu-se à periferia da cidade. Lá onde tudo era hostil e inóspito, nesse mundo marginal dos imprevisíveis. Ali ele estabeleceu-se como um morador itinerante.

Primeiro passou a vida vagando pelos guetos e mais tarde começou a visitar os cemitérios.

Nos primeiros momentos do seu efetivo estabelecimento nessas zonas, a sua figura despertava muitas atenções. Era um mestiço e aqui não existiam mestiços nos arrabaldes porque normalmente ser mestiço é sinónimo de estar um pouco acima dos pobres e viver nas delimitações do casco urbano. Socialmente os mestiços pertenciam a uma casta um pouco acima dos burgueses negros e geralmente eram filhos de governantes políticos e ou de negociantes endinheirados. O mais curioso nesse caso é que esse jovem não era um mestiço qualquer, tinha os cabelos encaracolados, a pele muito clara e os olhos dele eram verdes, verdes como um ariano. Alguns moradores desconfiaram de que ele não fosse um moço nacional, talvez fosse um espião estrangeiro com intenções terroristas.

Assim os homens da Segurança do Estado foram alertados e alguns dias depois ele foi raptado para uma esquadra de polícia. Ficaram espantados quando descobriram que afinal ainda era apenas um mancebo, que não podia ter muito mais de treze anos de idade. As poucas palavras que proferiu, apesar do seu refinado sotaque, revelaram-se serem de um jovem nacional.

- Sou o Ulika.

- De onde vens?

- Eu, não sei…

- Tens pais!?

- Não sei.

- Mas como? Tens de falar. Nós vamos te ajudar a localizar os teus parentes.

- Eu não tenho parentes – Disse desdenhosamente.

- Tem calma, rapaz – pediu o Oficial-Dias, com modos precavidos, enquanto o homem da Segurança do Estado fazia apontamentos. – O que fazemos com ele, chefe? – O Oficial-Dias solicitou ao Homem da Segurança do Estado.

- Vamos lançar um apelo à rádio e ver se alguém reage.

- Está bem, chefe! – Anuiu subserviente o Oficial-Dias.

Chamou o homem das operações e transmitiu-lhe a ordem de passar um edital anunciando o achado de um rapaz de nome Ulika, com as seguintes características físicas: claro, olhos verdes, cabelos encaracolados, alto, magro…

- Quantos anos tens mesmo, Ulika?

- Não sei! – Respondeu sibilante.

- Tu não sabes escrever?

- Sei…

- Olha – disse o homem da Segurança olhando-o ameaçadoramente – se não falas, nós vamos resolver o problema à nossa maneira. Não sabes como nós agimos, né?

- Eu disse que não sei da minha idade, não sei de nada sobre meus pais e do meu passado. Eu só quero viver a minha vida. – Falou com algum desdém, sem emoção, mas numa velocidade que atropelava as palavras.

O homem da Segurança do Estado suspirou. Aquele era mesmo um miúdo inocente. Só isso podia explicar que se comportasse assim diante dele. Que ele sabia por experiências, nenhum cidadão desse país, informado sobre as operações da Segurança do Estado, refilava assim. E abandonou a sala. Deixou as restantes responsabilidades nas mãos da polícia. Essa devia lançar um anúncio público com a imagem do rapaz e esperar o que aconteceria. Por enquanto nada se podia fazer por uma criança como aquela.

- É inocente e vê-se que não tem intenções contra o Estado. – Foi o que sussurrou aos agentes da polícia, enquanto se encaminhava para a saída da sela em que tinham enclausurado o Ulika.

O repto foi lançado mas ninguém na zona se pronunciou. A emissora era local e esses editais não podiam ser anunciados em cadeia nacional, se assim fosse a rádio nacional passaria todo o dia de todos os dias só a anunciar aparecimentos e desaparecimentos de pessoas.

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