- Como te chamas!? – Perguntaram-lhe imediatamente assim que adentrou entre as muralhas do orfanato.
- Ulika! – Tartamudeou.
- Ulika, wau! Que lindo nome! – Assobiou a madre que se responsabilizava pelo orfanato.
Pode ter sido um comentário honesto, nada embusteiro. Mas o rapaz não retribuiu o gesto; fechou os lábios e franziu o cenho, numa atitude de quem pede paz e solidão.
- O Ulika só tem um nome? – Volveu a madre, ainda sorridente.
- Sim – entreabriu outra vez os lábios para soltar o monossílabo e voltou a fechá-los imediatamente de seguida.
Mas a madre não se cansava de rodeá-lo de mimos e simpatias. Recomendou a uma moça que se encontrava por perto para lavá-lo bem e trocar-lhe a roupa.
Tudo foi cumprido a preceito. Duas horas depois o cabelo do miúdo reluzia, a sua pele resplandecia e as pupilas de seus olhos cintilavam como duas estrelas vivas. Isso atraiu ainda mais a atenção da madre. Esta que procurou apagar todos os vestígios do seu passado contidos no relatório que a polícia da outra cidade apresentara.
O orfanato era uma instituição pública do Estado. Apesar de ser gerido por madres da igreja católica, beneficiava do Orçamento do Estado e os professores de infância eram todos funcionários públicos. Por isso, tal como geralmente acontece por estas bandas, o tratamento real dedicado às crianças não era dos melhores; senão quando entravam, nos primeiros momentos, onde viam tudo lindo por geralmente virem de situações caricatas; até quando descobriam o que se escondia entre aquelas muralhas e entre os hábitos das madres.
Porém, mesmo depois de bastante tempo de permanência o tratamento para o Ulika parecia diferente. A madre acreditava que aquele lindo miúdo estava traumatizado por ter presenciado uma cena horrível e, tendo-se condoído pelo acontecido, ela desejava muito conferir-lhe todo o conforto que considerava necessário para reabilitá-lo e lhe dar um ar mais gracioso e desejável.
Não se tinha passado muito tempo quando ela anunciou a cerimónia do sacramento baptismal. Quer dizer, ela desejava batizá-lo mais cedo para ver se isso ajudaria a torná-lo melhor, à medida dos seus ideais. Ao longo do ritual, um novo nome foi atribuído ao menino que renascia, um nome que a madre achou adequado para apaziguar a sua alma e afugentar todas as eventuais tentações demoníacas futuras; entretanto, atribuiu o nome sem o consentimento do menino. Era assim que ela procedia com quase todos os novos membros do orfanato.
- A partir de agora te chamarás Anjo Gabriel. – Disse a madre depois de terminado o ritual baptismal.
Tratava-o melhor do que os demais elementos do orfanato; se por ser apenas novo, mas já agora havia se passado bastante tempo, ou se era a beleza do semblante dele que influenciava, isso era inexplicável até mesmo por ela. Ela, a irmã Lucinda, também não sabia porque se sentia atraída. Mas tinha dado rigorosas instruções às educadoras para que cuidassem bem dele, que lhe fosse facultado tudo o que era necessário para o seu efetivo bem-estar. Enfim, tal como nunca tinha acontecido, este neófito beneficiar-se-ia de um tratamento sui generis.
Depois começaram as aulas. Foi inserido numa turma de iniciação.
Revelou-se rápido em aprender e, coisa rara entre os meninos das nossas bandas, já sabia ler comodamente antes da primeira aula na escola, também escrevia razoavelmente. Dois meses depois das aulas, por causa das suas boas habilidades, foi transferido para uma turma dois graus mais avançada, e ali ficou durante algum tempo.
Os novos colegas fizeram-se amigos dele, eram raros os que não se afeiçoavam pelo seu charme.
- Eu sou o Paizinho.
- Eu sou o André.
- Eu sou o Jelson.
E as apresentações aconteciam em quase todos os momentos. Conversava com alguns.
- Eu sou o Ulika – Dizia entredentes.
- Mas a madre Lucinda disse que agora o teu nome é Anjo Gabriel. – Contestavam.
- Não, o meu nome é Ulika, a madre mentiu. – Dizia o rapaz, com alguma impessoalidade.
- Eh, a madre não mente. Nunca mais fales isso…
Nem sempre era alheado e indiferente, com os da sua faixa etária ele até chegava a sorrir e a dizer algumas piadas.
- O que é que vais ser quando fores mais velho, Anjo? – Perguntou-lhe o André.
- Eu não sei.
- Não sabes, como? A professora disse que temos de ter sonhos para o futuro, precisamos de ser alguém quando crescermos.
- Então eu não quero ser nada. Não tenho sonhos.
- Mas… porquê?
- Porque… não sei.
- Olha, Anjo, eu sei que você vai ser alguém, você vai ser alguma coisa. – Procurou reconfortar o André, quando naquele dia conversavam sob a sombra de uma nespereira.
- Talvez, mas eu não quero.
- Poderás ser padre ou médico; ou ainda podes ser piloto.
O Ulika olhou para ele e abanou pesarosamente a cabeça. Disse:
- Você não entende. Eu não quero ser nada, ouviste!?
E o André se calou, indignado. Vinha o Jelson a juntar-se a eles. Sugeria jogarem Wela. Jogavam, primeiro em silêncio, depois voltavam a levantar outro assunto, e ali conversava-se até muito tarde. Quando a conversa se tornava acesa, o Ulika embrenhava-se num cantinho, ficava indiferente. Quanto ao jogo, ele nunca tinha pressa de ser o primeiro, como era hábito com os demais; tanto no jogo quanto noutras brincadeiras ele não manifestava apreensão. Deixava sempre que os outros se antecipassem, que para ele tanto fazia que jogasse em primeiro, depois ou jamais.
Mas como a presente brincadeira se faz aos pares, assim quando alguém perdia deixava o seu lugar para um outro. Dificilmente o Ulika se demorava. Era como se estivesse a perder de propósito. Aliás, essa sua atitude de total despreendimento costumava lhe causar muitos constrangimentos nas aulas. Os professores queixavam-se de que ele era muito ensimesmado; mesmo sendo dotado, não participava com o fervor desejado nas aulas.
Mas a madre Lucinda, sendo ela a reitora do orfanato, não o punia por essas queixas, tal como fazia em situações idênticas; para esse caso em especial ela arranjava formas de ignorar as queixas e repreender o miúdo em privado e com carinho.
Visitava-o frequentemente e informa-se do seu estado de humor e de saúde. Entretanto, o rapaz parecia sempre o mesmo. O seu glauco olhar parecia fitar sempre com espírito de indiferença um vazio inescrutável. Passava horas a fio a olhar para o desconhecido sobre o cimo das árvores. Muitas vezes abandonava o pátio de recreio e refugiava-se entre uma moita que compunha a alameda do quintal, onde ficava entre as árvores por tempo indeterminado, não ligando às aulas e à alimentação.
Até nesse ponto a madre ficou já preocupada. O que seria que aquele rapaz andava tramando. Seria doença de espírito? Para isso ela sabia que devia recorrer ao padre Jorge, este era perito em terapias espirituais.
Ficou fazendo planos para salvar o seu filho amado.
Mas o filho amado não precisou de salvador. Salvou-se a si mesmo, como um filho pródigo, tendo adotado algum tempo depois e voluntariamente atitudes que agradaram a madre Lucinda. Como prémio pela inesperada conversão, e como o seu desempenho escolar era digno disso, foi promovido para mais um grau na escolaridade.
Tornou-se então um dos alunos mais brilhantes que o orfanato alguma vez acolhera. Na pauta dele não constava nota abaixo da média e já tinha a caligrafia mais legível e distinta da escola.
Os colegas dessa classe começaram, mais tarde, a invejá-lo. Pela estima que merecia da madre superiora e das professoras que imitavam aquela, e pelo seu incomparável aproveitamento escolar. Mas em muitos aspetos ele não tinha mudado e continuava o mesmo doutrora. Não dava muita atenção aos manifestos de ciúmes dos seus colegas e pouco se importava que a madre e as professoras lhe dedicassem afeição. E as suas visitas clandestinas a lugares sombrios não tinham realmente cessado, fugia às escondidas. Gostava de se isolar e recolher-se em lugares ínvios. Quando voltou a descobrir que afinal ele ainda continuava se comportando como misantropo, a madre pensou que talvez tivesse na veia a vocação sacerdotal e aquilo era sinal de que daria num cenobita devoto no futuro, e tranquilizou-se.
Todos os receios se tinham extinguido quando, depois de escassos anos de permanência no orfanato, deram num belo dia do tempo com a sua ausência. Todos o tratavam por Anjo. O André e o Jelson, agora um pouco mais crescidos, e apesar de que frequentavam níveis abaixo dele, mas continuavam considerando-o grande companheiro; muitas sessões de Wela tinham sido partilhadas entre eles debaixo da nespereira.
Mas agora ele tinha-se escapulido e se desvanecido como um fantasma.
A princípio pensaram que voltaria, pois não tinha carregado as suas coisas. Nem do material escolar, nem da roupa que a madre lhe tinha comprado com o mais terno sentimento de paixão.
Mas o Ulika não voltou ao orfanato, e jamais voltou a aparecer diante dos seus amigos e conhecidos dali.
Essa poderia ser a quarta ou a quinta cidade que ele visitava e morava. Lembrava-se dos primeiros bairros onde passou a sua infância. Tinha despertado os olhos da consciência aos três anos de idade e até agora ele já tinha percepcionado muita coisa.Com o dinheiro que havia amealhado no orfanato, oferecido por seus admiradores, onde se destacava a madre Lucinda, ele tinha conseguido viajar por uns duzentos e tal quilómetros. Sem itinerário traçado, sem destino à vista. Pôs-se num táxi, pagou a passagem sem se importar pelo destino que o bilheteiro mencionava e fechou os olhos. Adormeceu na hora, talvez fosse porque sentia algum alívio em se ver fora das muralhas do orfanato, talvez não, é um mistério. Agora sonhava, enquanto toscanejava, que se permanecesse por mais um dia no orfanato acabaria mal e os outros seriam afetados; por isso, agindo assim, estava a proceder da melhor maneira. Despertou, suspirou e abriu os olhos num instante para observar os companheiros da viage
Porém, o Ulika ficou na cadeia por uma semana até que decidiram soltá-lo, por falta de evidências recriminatórias.Voltou ao mesmo ambiente dos subúrbios, e continuou visitando cemitérios. Os cemitérios estavam a despertar nele uma simpatia astral. Ficava lá sentado, meditativo, como se estivesse a confabular com os eflúvios dos mortos. Não se cansava de ler os nomes e descrições adicionais nas lápides ou nas cruzes de madeira.«António Lundungu, falecido aos 19 de Dezembro de 199…», «Afonso da Conceição Mandume, falecido aos 04 de Fevereiro de 2003…; que sua alma descanse em paz», José Ferreira de Sá e Arcanjo, falecido aos 27 de Maio de 196…, e quejandos. Enfim, alguns meses depois conhecia todos os centros fúnebres daquela negra cidade, e sabia a média de funerais por dia.De dia vagueava pelos cemitérios rurais, aqueles que se situavam em zonas periféricas da cidade. De noite recorria ao cemitério urbano, este situado no centro e destinado ao uso das elites, pa
A vida pelas ruas da urbe não diferia muito da dos subúrbios e dos cemitérios. Apenas nas casas, nas estradas e um pouco mais de exuberância... Quanto ao resto empatavam-se. Ademais, era o barulho ensurdecedor que se produzia durante todo o dia e toda a noite. O Ulika era muito susceptível a isso. Porém, agora palmilhava as artérias em estado de degradação de uma vetusta cidade, procurando se manter vivo. Desde que tinha lido a escritura supostamente rabiscada por um psicopata numa cruz de madeira velha, sobre uma velha campa não cimentada que nasceu nele o desejo de viver mais copiosamente. Se não há ressurreição, porque apressar a minha morte? Já se questionava; e o seu espírito era visitado por uma onda suave de necessidade de mudança. Uma ação revolucionária que nasceria de si e se estenderia para todo o sempre, de geração em geração; ele sabia que isso podia significar tudo e nada ao mesmo tempo para a humanidade.Sentia que tinha enfraquecido muito nos tempos em que pass
Ficou internado no hospital daquelas bandas por duas ininterruptas semanas.O diagnóstico tinha revelado Febre Tifoide e os médicos e enfermeiros engajaram-se com afinco a tratar do doente, pois o senhor que o trouxera para o hospital garantira tudo para que o tratassem condignamente. Pediu relutante que lhe fosse garantido tudo o que fosse necessário para reabilitá-lo, que ele estava predisposto a arcar com todas as despesas. Este senhor não parecia ser nem político nem funcionário público. Pelo seu semblante até dava para lhe atribuir exercício comercial. As suspeitas recaíam mais para a exploração diamantífera ilícita, pois aquelas terras eram abundantes desse minério e há muito que intrusos garimpavam por lá. Pela forma como ele andava a entregar dinheiro para o tratamento do menino…- Como se chama o moço? – Perguntaram-lhe quando chegou com o doente.- Ulika! – Respondeu, num monossílabo seco.- Que nome estranho para um garoto como ele! – Ciciou uma en
Quando o Ulika deu por si estavam diante de um quintal de muros altos, com um sistema de segurança elétrica sobre os muros; era a residência do seu benfeitor. Ao longo do trajeto não conversaram, ninguém soltou alguma palavra. Operavam como se fossem companheiros de longa data que sempre estiveram juntos; ou como se estivessem a obedecer a um tácito princípio que consistisse no silêncio mútuo!O Ulika desceu do carro e foi abrir o portão cuja chave o benfeitor lhe passou através de um simples gesto. Depois que transpuseram o limiar do portão foi a vez do benfeitor descer também. Juntos entraram para a imponente residência que se encontrava escondida entre as altas muralhas do quintal. Era uma casa enorme e moderna, muito grande. Era um bom lugar para um convalescente. Não se entusiasmou, claro, porque continuava sendo o que sempre fora. Como não trazia bagagem, mal se viu na sala de estar estendeu-se ao comprido no sofá-cama ali instalado como que para si; enquant
- Já te sentes bem? – Perguntava o benfeitor.- Sim, obrigado por me teres acolhido. Se não me tivesses socorrido naquele dia, seria fatal.- E tens medo da fatalidade?- Eu não sou Cristo, nem Sócrates… logo, tenho medo da morte. – Essas ideias ele as tinha apreendido recentemente, pelos livros do benfeitor.- O medo da morte não te salvará da morte. Tens de aprender a morrer estando vivo. Morrer é um caminho, um curso que se aprende, não depois da morte, mas ao longo da vida. A morte é o termo de um longo percurso. E é nisso que consiste o verdadeiro sentido da vida, a verdadeira salvação.O Ulika ficou um tanto embaraçado. Essas ideias eram sofisticadas demais, tinha de se concentrar, afinal...- Mas…patrão, eu …- Não sou teu patrão, Ulika. Tenho um nome.- Um nome!? Nunca pensei e
Os dias se repetiam imparavelmente. Os dias não passam; tal como a terra, o tempo gira em torno de um grande eixo invisível. São os homens que criaram a ilusão do passar do tempo por causa das metamorfoses para a morte que neles se operam. Isso serve como um grito de desespero ante à implacabilidade do tempo. Se o tempo passasse então não seria um recurso inesgotável. Tão inesgotável que ao fim e ao cabo todos nós acabaremos desistindo de consumi-lo.- Sabes porque é que me chamo Wafile Ale? – Era outra ocasião, e estavam outra vez sentados entre os livros da rica biblioteca do Wafile Ale.- Não!- Mas sabes o que essa expressão significa?- Sim, senhor, entendo Umbundu.- Outra vez, Ulika. Não me trates por senhor, trate-me por tu, porque tudo o que diz respeito a rótulos sociais me aborrece. Eu não gostaria sequer de continuar a ser tratado pelo nome que os meus pais me atribuíram no berço, sabes? Isso é mau, rotular pessoas como se fosse
Queres dizer que vieste assim do cemitério, foste ressuscitado? – Inquiriu o Ulika.- Sim.- Mas tu não és diferente dos homens comuns.- Porque não eu não existo há mais de dois séculos.- Dois séculos!? Quer dizer que já tens mais de 50 anos?- Sim, mais de cem anos de vida.- E achas que existem pessoas que existem há mais de duzentos anos?- Não só acho, mas conheço muitas, espalhadas por esse mundo fora. Normalmente é gente indiferente, que não fala e não convive com estranhos. Temos tido encontros para falar dos problemas da nossa natureza.O Ulika calou-se, como que meditando, antes de voltar a questionar.- E como se explica que tenhas decidido me recolher da rua, já que não é da vossa natureza conviverem e falarem com estranhos?- Tu não és estranho, Ulika; eu te reconheci logo no primeiro dia em que te vi. Tu és produto de um bilhão de gerações e todas essas gerações estão visivelmente contidas em ti. Eu não te vi