Mas o menino é indiferente. O menino olha descontraidamente para espaço, para o além; como que nascido de um quadro de guerra e paz, como se nessa vida nada mais lhe impressionasse.
Pode ter tido sete ou oito anos quando foi encontrado numa situação funesta: o suposto pai e a suposta mãe mortos, na cama. E ele, alheio, montando peças de um brinquedo. Talvez os supostos pais já estivessem mortos há dias e ele estivesse ignorando o sucedido. Ou ignorando ou desapercebido ou sabe-se lá mais o quê. Mas lá estava ele, com o seu olhar glauco vítreo refletindo a pacificidade de uma tragédia. Não se incomodando com a constante e massiva presença de agentes da polícia na sua casa.
A polícia tinha concluído, no seu relatório sobre o caso, que o menino, mesmo teimando em não querer revelar nada, mesmo mostrando-se indiferente ao máximo, tinha assistido a olhos nus o assassinato dos pais, pois as conclusões revelavam que os mortos eram mesmo os pais dele. Bem deduzido por eles, e como cá a técnica criminalística ainda não está avançada, só isso explicaria aquela tão estranha atitude numa criança de tenra idade. Algo que continuava a intrigar os agentes era o porquê de terem morrido os pais mas ficado incólume o menino. Será que, por ser criança e não constituir perigo de denúncia, os criminosos o tinham poupado? Mas, pela sua idade e estatura, só se fosse realmente cúmplice dos criminosos, porque ele era muito bem capaz de memorizar fatos e denunciar. O facto de não querer falar agora constituía um grande mistério, e um motivo de descontentamento por parte dos agentes.
Sobre a gente com quem vivia, o casal que foi encontrado morto em sua casa, praticamente nada se sabia. Viviam envolvidos por um manto de mistério e apartados do resto da comunidade em que estavam inseridos. Era como se não tivessem história e tivessem por mero acaso surgido do nada e plantado a sua casa naquele bairro. A sua era uma casa com quintal altamente murado e hermeticamente fechado. Não tinham cultivado quaisquer laços com a vizinhança. Ninguém no bairro em que moravam podia calcular os horários de entrada e de saída dos que lá residiam. Sabia-se apenas que estava lá um casal, que costumava sair de vez em quando, mas sem horário calculado e nunca saindo juntos.
Normalmente via-se o senhor saindo do quintal conduzindo um velho Toyota de cor branca. Era difícil vê-lo conduzindo numa velocidade reduzida, tal que permitisse analisar o seu perfil. A mulher era alta e preta, preta como o breu, pois costumava sair a pé e isso permitia que lhe analisassem o semblante. Habitualmente só saía ao pôr do sol, e costumava caminhar furtivamente pelas ruas da cidade, mas sem um itinerário que pudesse ser calculado.
Entretanto, dava para perceber que nem o homem nem a mulher tinham cabelos lisos e pele clara. Nem sequer dava para imaginar que havia entre aquelas paredes uma criança de tez clara, cabelos encaracolados e olhos verdes.
Foi um curioso polícia que fazia giro naquela noite que descortinou a situação atroz que ali estava acontecendo. No dia em que ficou de piquete, no Posto onde desde quinze anos exercia as suas atividades de policiamento, descobriu que naquela casa não se acendiam as luzes de noite. Lembrou-se de que nos últimos dias não andava a ver as luzes daquela casa acesas.
Quando devia largar o seu turno, foi de manhã cedinho bater as portas do quintal e durante muito tempo não obteve resposta, o que lhe atiçou a curiosidade. Então insistiu vigorosa mas persistentemente até que ouviu um barulho metálico tinindo lá dentro, como único sinal de esperança. Com as esperanças reacendidas, aguardou que abrissem as portas, mas não obteve êxitos.
Como estava cada vez mais chegando a sua hora de largar o turno, abandonou a empreitada mas mencionou o facto no seu relatório. Fez ênfase para que quem o sucedesse averiguasse o que se estava a passar entre as altas paredes daquele quintal.
Quem o sucedeu recebeu o relatório e decidiu que aquela operação seria prioritária, pois sabia que o seu colega antecedente era o mais reputado da Unidade e dificilmente se enganava nas suas suspeitas. Assim foi, logo após a formatura foram indicados dois agentes para saber o que se passava lá, com ordens expressas para arrombar os portões, se fosse necessário; e mal tinham entrado no quintal sentiram um forte odor à decomposição orgânica. Quando já estavam dentro da casa, todos suados pela expectativa de algum perigo e pelo esforço de arrombar os portões, lá se depararam com dois cadáveres em estado avançado de decomposição, cujos exames entomológicos parciais revelavam que deviam ter morrido havia mais de quatro dias; e um garoto, com idade compreendida entre sete e oito anos, estava divertindo-se indiferente, montando peças de um brinquedo.
Essa atitude intrigou bastante os polícias. Pois, mesmo apinhando-se em frenesim a sua volta, ele nem sequer se dignava a lhes dirigir um olhar, seu semblante não denunciava alguma reação, ou seja, quando levantava os olhos era como se estivesse a olhar para muito além das pessoas que o rodeavam. O seu rosto não mostrava sinais de ter chorado recentemente, nem antes… Seu rosto era tão inexpressivo que não permitia imaginá-lo banhado em lágrimas. E como, depois de todas as diligências, a perícia constatou que o caso era demais misterioso para ser cabalmente esclarecido, mandaram o rapaz para um orfanato, a uma cidade longe dali; agindo assim eles pretendiam mitigar os eventuais traumas do ocorrido.
E lá no orfanato daquela cidade o rapaz começou uma nova vida.
- Como te chamas!? – Perguntaram-lhe imediatamente assim que adentrou entre as muralhas do orfanato.- Ulika! – Tartamudeou.- Ulika, wau! Que lindo nome! – Assobiou a madre que se responsabilizava pelo orfanato.Pode ter sido um comentário honesto, nada embusteiro. Mas o rapaz não retribuiu o gesto; fechou os lábios e franziu o cenho, numa atitude de quem pede paz e solidão.- O Ulika só tem um nome? – Volveu a madre, ainda sorridente.- Sim – entreabriu outra vez os lábios para soltar o monossílabo e voltou a fechá-los imediatamente de seguida.Mas a madre não se cansava de rodeá-lo de mimos e simpatias. Recomendou a uma moça que se encontrava por perto para lavá-lo bem e trocar-lhe a roupa.Tudo foi cumprido a preceito. Duas horas depois o cabelo do miúdo reluzia, a sua pele resplandecia e as pupilas de seus olhos cintilavam como duas estrelas vivas. Isso atraiu ainda mais a atenção da madre. Esta que procurou apagar todos os vestígios do
Essa poderia ser a quarta ou a quinta cidade que ele visitava e morava. Lembrava-se dos primeiros bairros onde passou a sua infância. Tinha despertado os olhos da consciência aos três anos de idade e até agora ele já tinha percepcionado muita coisa.Com o dinheiro que havia amealhado no orfanato, oferecido por seus admiradores, onde se destacava a madre Lucinda, ele tinha conseguido viajar por uns duzentos e tal quilómetros. Sem itinerário traçado, sem destino à vista. Pôs-se num táxi, pagou a passagem sem se importar pelo destino que o bilheteiro mencionava e fechou os olhos. Adormeceu na hora, talvez fosse porque sentia algum alívio em se ver fora das muralhas do orfanato, talvez não, é um mistério. Agora sonhava, enquanto toscanejava, que se permanecesse por mais um dia no orfanato acabaria mal e os outros seriam afetados; por isso, agindo assim, estava a proceder da melhor maneira. Despertou, suspirou e abriu os olhos num instante para observar os companheiros da viage
Porém, o Ulika ficou na cadeia por uma semana até que decidiram soltá-lo, por falta de evidências recriminatórias.Voltou ao mesmo ambiente dos subúrbios, e continuou visitando cemitérios. Os cemitérios estavam a despertar nele uma simpatia astral. Ficava lá sentado, meditativo, como se estivesse a confabular com os eflúvios dos mortos. Não se cansava de ler os nomes e descrições adicionais nas lápides ou nas cruzes de madeira.«António Lundungu, falecido aos 19 de Dezembro de 199…», «Afonso da Conceição Mandume, falecido aos 04 de Fevereiro de 2003…; que sua alma descanse em paz», José Ferreira de Sá e Arcanjo, falecido aos 27 de Maio de 196…, e quejandos. Enfim, alguns meses depois conhecia todos os centros fúnebres daquela negra cidade, e sabia a média de funerais por dia.De dia vagueava pelos cemitérios rurais, aqueles que se situavam em zonas periféricas da cidade. De noite recorria ao cemitério urbano, este situado no centro e destinado ao uso das elites, pa
A vida pelas ruas da urbe não diferia muito da dos subúrbios e dos cemitérios. Apenas nas casas, nas estradas e um pouco mais de exuberância... Quanto ao resto empatavam-se. Ademais, era o barulho ensurdecedor que se produzia durante todo o dia e toda a noite. O Ulika era muito susceptível a isso. Porém, agora palmilhava as artérias em estado de degradação de uma vetusta cidade, procurando se manter vivo. Desde que tinha lido a escritura supostamente rabiscada por um psicopata numa cruz de madeira velha, sobre uma velha campa não cimentada que nasceu nele o desejo de viver mais copiosamente. Se não há ressurreição, porque apressar a minha morte? Já se questionava; e o seu espírito era visitado por uma onda suave de necessidade de mudança. Uma ação revolucionária que nasceria de si e se estenderia para todo o sempre, de geração em geração; ele sabia que isso podia significar tudo e nada ao mesmo tempo para a humanidade.Sentia que tinha enfraquecido muito nos tempos em que pass
Ficou internado no hospital daquelas bandas por duas ininterruptas semanas.O diagnóstico tinha revelado Febre Tifoide e os médicos e enfermeiros engajaram-se com afinco a tratar do doente, pois o senhor que o trouxera para o hospital garantira tudo para que o tratassem condignamente. Pediu relutante que lhe fosse garantido tudo o que fosse necessário para reabilitá-lo, que ele estava predisposto a arcar com todas as despesas. Este senhor não parecia ser nem político nem funcionário público. Pelo seu semblante até dava para lhe atribuir exercício comercial. As suspeitas recaíam mais para a exploração diamantífera ilícita, pois aquelas terras eram abundantes desse minério e há muito que intrusos garimpavam por lá. Pela forma como ele andava a entregar dinheiro para o tratamento do menino…- Como se chama o moço? – Perguntaram-lhe quando chegou com o doente.- Ulika! – Respondeu, num monossílabo seco.- Que nome estranho para um garoto como ele! – Ciciou uma en
Quando o Ulika deu por si estavam diante de um quintal de muros altos, com um sistema de segurança elétrica sobre os muros; era a residência do seu benfeitor. Ao longo do trajeto não conversaram, ninguém soltou alguma palavra. Operavam como se fossem companheiros de longa data que sempre estiveram juntos; ou como se estivessem a obedecer a um tácito princípio que consistisse no silêncio mútuo!O Ulika desceu do carro e foi abrir o portão cuja chave o benfeitor lhe passou através de um simples gesto. Depois que transpuseram o limiar do portão foi a vez do benfeitor descer também. Juntos entraram para a imponente residência que se encontrava escondida entre as altas muralhas do quintal. Era uma casa enorme e moderna, muito grande. Era um bom lugar para um convalescente. Não se entusiasmou, claro, porque continuava sendo o que sempre fora. Como não trazia bagagem, mal se viu na sala de estar estendeu-se ao comprido no sofá-cama ali instalado como que para si; enquant
- Já te sentes bem? – Perguntava o benfeitor.- Sim, obrigado por me teres acolhido. Se não me tivesses socorrido naquele dia, seria fatal.- E tens medo da fatalidade?- Eu não sou Cristo, nem Sócrates… logo, tenho medo da morte. – Essas ideias ele as tinha apreendido recentemente, pelos livros do benfeitor.- O medo da morte não te salvará da morte. Tens de aprender a morrer estando vivo. Morrer é um caminho, um curso que se aprende, não depois da morte, mas ao longo da vida. A morte é o termo de um longo percurso. E é nisso que consiste o verdadeiro sentido da vida, a verdadeira salvação.O Ulika ficou um tanto embaraçado. Essas ideias eram sofisticadas demais, tinha de se concentrar, afinal...- Mas…patrão, eu …- Não sou teu patrão, Ulika. Tenho um nome.- Um nome!? Nunca pensei e
Os dias se repetiam imparavelmente. Os dias não passam; tal como a terra, o tempo gira em torno de um grande eixo invisível. São os homens que criaram a ilusão do passar do tempo por causa das metamorfoses para a morte que neles se operam. Isso serve como um grito de desespero ante à implacabilidade do tempo. Se o tempo passasse então não seria um recurso inesgotável. Tão inesgotável que ao fim e ao cabo todos nós acabaremos desistindo de consumi-lo.- Sabes porque é que me chamo Wafile Ale? – Era outra ocasião, e estavam outra vez sentados entre os livros da rica biblioteca do Wafile Ale.- Não!- Mas sabes o que essa expressão significa?- Sim, senhor, entendo Umbundu.- Outra vez, Ulika. Não me trates por senhor, trate-me por tu, porque tudo o que diz respeito a rótulos sociais me aborrece. Eu não gostaria sequer de continuar a ser tratado pelo nome que os meus pais me atribuíram no berço, sabes? Isso é mau, rotular pessoas como se fosse