Quando o Ulika deu por si estavam diante de um quintal de muros altos, com um sistema de segurança elétrica sobre os muros; era a residência do seu benfeitor. Ao longo do trajeto não conversaram, ninguém soltou alguma palavra. Operavam como se fossem companheiros de longa data que sempre estiveram juntos; ou como se estivessem a obedecer a um tácito princípio que consistisse no silêncio mútuo!
O Ulika desceu do carro e foi abrir o portão cuja chave o benfeitor lhe passou através de um simples gesto. Depois que transpuseram o limiar do portão foi a vez do benfeitor descer também. Juntos entraram para a imponente residência que se encontrava escondida entre as altas muralhas do quintal.
Era uma casa enorme e moderna, muito grande. Era um bom lugar para um convalescente. Não se entusiasmou, claro, porque continuava sendo o que sempre fora. Como não trazia bagagem, mal se viu na sala de estar estendeu-se ao comprido no sofá-cama ali instalado como que para si; enquant
- Já te sentes bem? – Perguntava o benfeitor.- Sim, obrigado por me teres acolhido. Se não me tivesses socorrido naquele dia, seria fatal.- E tens medo da fatalidade?- Eu não sou Cristo, nem Sócrates… logo, tenho medo da morte. – Essas ideias ele as tinha apreendido recentemente, pelos livros do benfeitor.- O medo da morte não te salvará da morte. Tens de aprender a morrer estando vivo. Morrer é um caminho, um curso que se aprende, não depois da morte, mas ao longo da vida. A morte é o termo de um longo percurso. E é nisso que consiste o verdadeiro sentido da vida, a verdadeira salvação.O Ulika ficou um tanto embaraçado. Essas ideias eram sofisticadas demais, tinha de se concentrar, afinal...- Mas…patrão, eu …- Não sou teu patrão, Ulika. Tenho um nome.- Um nome!? Nunca pensei e
Os dias se repetiam imparavelmente. Os dias não passam; tal como a terra, o tempo gira em torno de um grande eixo invisível. São os homens que criaram a ilusão do passar do tempo por causa das metamorfoses para a morte que neles se operam. Isso serve como um grito de desespero ante à implacabilidade do tempo. Se o tempo passasse então não seria um recurso inesgotável. Tão inesgotável que ao fim e ao cabo todos nós acabaremos desistindo de consumi-lo.- Sabes porque é que me chamo Wafile Ale? – Era outra ocasião, e estavam outra vez sentados entre os livros da rica biblioteca do Wafile Ale.- Não!- Mas sabes o que essa expressão significa?- Sim, senhor, entendo Umbundu.- Outra vez, Ulika. Não me trates por senhor, trate-me por tu, porque tudo o que diz respeito a rótulos sociais me aborrece. Eu não gostaria sequer de continuar a ser tratado pelo nome que os meus pais me atribuíram no berço, sabes? Isso é mau, rotular pessoas como se fosse
Queres dizer que vieste assim do cemitério, foste ressuscitado? – Inquiriu o Ulika.- Sim.- Mas tu não és diferente dos homens comuns.- Porque não eu não existo há mais de dois séculos.- Dois séculos!? Quer dizer que já tens mais de 50 anos?- Sim, mais de cem anos de vida.- E achas que existem pessoas que existem há mais de duzentos anos?- Não só acho, mas conheço muitas, espalhadas por esse mundo fora. Normalmente é gente indiferente, que não fala e não convive com estranhos. Temos tido encontros para falar dos problemas da nossa natureza.O Ulika calou-se, como que meditando, antes de voltar a questionar.- E como se explica que tenhas decidido me recolher da rua, já que não é da vossa natureza conviverem e falarem com estranhos?- Tu não és estranho, Ulika; eu te reconheci logo no primeiro dia em que te vi. Tu és produto de um bilhão de gerações e todas essas gerações estão visivelmente contidas em ti. Eu não te vi
O Wafile Ale arranjou tudo para que ele terminasse o ensino médio.Com uma habilidade de rapina conseguiu todos os documentos necessários para identificar o Ulika e matriculá-lo numa escola do Ensino Médio, algures no centro da cidade.No primeiro ano de escolaridade foi distinto. No segundo idem. Tornou-se um aluno em destaque. Os colegas o invejavam e as moças apaixonavam-se aos montes pela sua fisionomia e pelos seus dotes. Mas, como sempre, ele não era de muitas amizades. Estava sempre ensimesmado, olhando para além das pessoas.- Oko, esse moço mba é bonito – Sibilavam viperinamente as moças estudantes da instituição, quando por elas ele passava.- Eu também gosto dele, só o olhar dele!?- E é bem inteligente!Todas achavam o seu inexpressivo olhar encantador e não era sem pudor que uma professora de biologia retratava à sua turma a anoto-fisiologia do sistema reprodutor. Ela também sentia-se atraída por ele, mas sempre que falasse sobre sexo
- Tenho de ir. – Anunciou numa certa manhã, em prontidão, com uma mochila às costas.Realmente estava crescido. Muito alto e esbelto.- Aonde vais?- Ainda não sei; mas acho que vou continuar com os estudos. Preciso de estudar mais a fim de estar licenciado para exercer alguma profissão e ser independente.- Está bem. Podes ir. – O Wafile Ale levantou-se da poltrona onde era costume sentar-se e foi ao quarto, de lá voltou com um envelope contendo dinheiro. – Eu reservei esse dinheiro para ti, para os primeiros dias em que te instalares numa determinada cidade. Na verdade, esse dinheiro te será necessário e útil por muito tempo e para muitas circunstâncias. Mas por favor, esqueça-se de mim. E nunca voltes para essa cidade. Eu não existo e tudo o que vivemos foi uma ilusão.- Está bem, Wafile Ale. Assim que partir farei questão de te tirar da minha cabeça e evitar essa casa e essa cidade. Se já estavas morto é porque não te será doloroso seres esquecido.<
Primeiro dia de aulas, segundo, uma semana, outra, um mês e o tempo se repetia em círculos, tal como o Relógio Biológico Universal da Fertilidade Feminina. Os seus professores nessa Universidade eram meros pedantes. Meras caixas de ressonâncias das ideias dos idolatrados da humanidade. Não tinham nada de especial, nada que os distinguisse do senso comum.Era curioso, pois esses professores não sabiam o mínimo do que sabia o Wafile Ale. Não há ordem factual no mundo. Nada está no seu lugar devido. Senão não teríamos tantos fistores passando por sábios; imitando cegamente a sabedoria dos ímpios e dos mais insensatos cientistas. A mais cruel desgraça que pode atingir a humanidade, é que os poderosos da terra não sejam os primeiros em valor. Então tudo fica falseado, torcido e desfigurado; escreveu Nietzsche há mais de um século. Mas o mundo continua nessa; teima em continuar assim...Isso desgostou o Ulika. Mas ainda continuou passivamente a frequentar a escola, indiferente
Veio parar à uma cidade litorânea.Já tinha avistado muitos oceanos de areia, os desertos. Agora ficaria horas a fio a contemplar um deserto de águas salgadas, o mar.Arrendou uma modesta casa num bairro suburbano. Mesmo nesses bairros, cá no litoral os preços do aluguel eram demasiado puxados, apesar de que o seu dinheiro era inesgotável. Quanto mais ele retirava do envelope que lhe tinha sido oferecido pelo Wafile Ale, mas o dinheiro se multiplicava. Era uma fonte inesgotável; há anos que se sustentava pelo dinheiro saído daquele envelope.Ficou ali passeando-se. Patinando e olhando demoradamente para o mar. As praias eram lugares abundantemente frequentados por pessoas de todos os estratos sociais. Ali ele voltou a ver pessoas do tipo que só tinha visto nos cemitérios e quando lavava carros naquele riacho da outra cidade.Outras vezes, sentado à beira do mar, ele ouvia conversas alheias.- Olha, amiga! Hoje a minha noite foi longa e prazerosa.
Assim que arrancou o ano lectivo ele matriculou-se numa Universidade Pública dessa cidade. Dessa vez para um curso de Biologia.Nesse curso, mais uma vez lhe foram ensinadas coisas muito elementares, como a anatomia e fisiologia humanas, que as plantas crescem, tornam-se verdes, perdem a cor e as folhas e envelhecem, e que assim acaba o seu ciclo de vida. Ainda estudou fenómenos naturais que os primitivos conheciam por intuição. O princípio do mundo e todas as suas sucessivas eras são questões muito evidentes. Seria mesmo necessário ir à Universidade para saber daquilo? Algumas escrituras são imprescindíveis, muitas leituras são prescindíveis, e alguns livros só são famosos na nossa era por a humanidade estar-se tornando cada vez mais irracional; ao humano vai faltando mais e mais a capacidade de analisar com calma e sem paixões os fenómenos da natureza. E mesmo agora, se os seres humanos tivessem a habilidade de lerem com clareza tudo o que passa por seus olhos, evitar-se-iam