Nos seus dias de folga ele patinava ou metia-se entre os bairros inóspitos da capital, a pé. Estes bairros eram o protótipo da degenerescência. Manavam à morte, era por isso que as pessoas ali eram mais vivas, mais cheias de agressividade e que se cometiam muitas violências físicas e verbais. Pois a vida, sendo a outra face da mesma moeda, tornava-se mais intensa quanto mais próxima estivesse da morte; e os subúrbios dessa capital eram o Reino da Luta Constante visando a sobrevivência. O único alimento das almas dos que ali habitavam era música, música disparatada e desarmónica.
Algumas raras vezes saía no seu carro para visitar zonas mais distantes ou para contemplar o mar.
Às vezes a chuva caía e a terra tornava-se lamacenta, de tal sorte que era impossível sair de casa. Ficava ali, sentado ou amparando um livro qualquer. Aprendeu agostar de ler na casa do Wafile Ale, mas nunca se tinha emocionado por uma história, fosse real fosse fictícia; na verdade nada emocionava
Tudo andava ao seu ritmo normal, mesmo o tempo; o tempo repetia-se, os dias, as estações e todas os seus componentes funcionavam como os ponteiros de um relógio, do maior relógio do mundo colocado no invisível.O Ulika ficou mais rico, mais influente também; tinha muitas simpatias e todo mundo do partido queria fazer-se seu amigo.Ganhou mais carros, mais regalias e melhores condições de vida. O seu capital só aumentava. O envelope que tinha recebido do Wafile Ale continuava inesgotável. A tal ponto que a Mbela tinha contratado uma dúzia de pessoas para trabalharem em sua casa, enquanto ela passava a vida a se embelezar.Às vezes ele era convidado para encontros festivos promovidos pelo governo, encontros esses em que predominavam bebidas alcoólicas, música disparatada alta e mulheres prostitutas; as prostitutas eram as mesmas mulheres parlamentares e as dos parlamentares que ali compareciam. Nem sempre ele aceitava esses convites; mesmo quando fosse, ele não se de
Num belo dia saiu de carro; agora ele tinha muitos carros, mas dificilmente conduzia. Hoje foi conduzindo pela cidade, pelas ruas movimentadas, onde se conduzia desobedecendo os regulamentos do trânsito rodoviário. Numa velocidade serena, como que excogitando, o nosso Ulika circulava de um lado para o outro, com o olhar sempre além. Foi assim que apareceu um desses símios, desses seres humanos que não têm mínima noção de vida em comunidade, conduzindo numa velocidade de pistas, que embateu violentamente contra a viatura do Ulika.De repente o seu carro capotou e o Ulika ficou entalado por dentro, penosamente machucado.A Polícia chegou mais tarde. Descobriram-no sangrando de diversos orifícios do corpo. Tinha concussões, graves lacerações e ossos quebrados em todas as partes do corpo. O pior, entretanto, estava na cabeça.Como foi reconhecido a tempo pelos agentes da polícia, foi socorrido com alguma prontidão.Foi levado de emergência ao hospital. Pelos sina
O funeral do Ulika foi um acontecimento marcante no seio do partido. Todos os membros do governo estavam lá, engalanados e ufanos… poucos estavam realmente condoídos e entristecidos. Alguns foram apenas para cumprir formalidades e exibir as vestimentas. Entretanto, coube ao Primeiro-ministro dizer palavras de adeus ao malogrado. Porém, o discurso que ele proferiu pareceu místico para todos os presentes. Pela primeira vez os membros do governo viam o Primeiro-ministro a usar uma linguagem que não lhe era familiar; livre dos costumeiros jargões políticos e de propaganda. Disse coisas que a muitos pareceram absurdas e a outros lacónicas; e se não fosse o costume de se considerar óbitos como algo solene, todo mundo teria ou rido ou protestado. Disse coisas tais como: a morte… é uma invenção dos deuses, e do Ulika, para se divertirem.Duas semanas mais tarde, num determinado dia de tempo chuvoso, quando a chuva caíra pela madrugada e a manhã parecia som
ULIKA - um herói sem géneseUm bom livro é aquele que provoca no leitor reflexões, que o faz pensar em diversas situações; enfim, que o induza a certas provocações. Quando leio um livro não me preocupo apenas com seu enredo, mas, principalmente, com o que ele pode dialogar comigo, mexer com minhas ideias, com a minha cultura. Espero que ele me apresente novidades ou que me faça andar por outros caminhos. Rubem Alves, que é um grande cronista brasileiro, ensina que um bom texto é aquele que nos deixa transformados, que nos faz pensar. Após a leitura de um bom texto, não seremos mais os mesmos. A leitura, nesse sentido, é uma viagem. Gosto de viajar nas leituras que faço. Quem escreve é um viajante do tempo e das realidades do mundo. Como sou mais poeta do que ficcionista (pelo menos, eu imagino que seja), procuro ver, como diz Manoel de Barros, o
Um menino de tez clara, olhos verdes, cabelos encaracolados crescidos até na testa. Pés calçados de sapatilhas, usando calças jeans pretas e uma t-shirt branca; em suma, como que trajado à moda estrangeira; isso se se identificasse a moda nacional. Era um rapaz estranho aos olhos de uma pessoa ordinária dessas nossas bandas.E para impressionar ainda mais, ele era dono de um nome também esquisito, principalmente para alguém com a sua aparência. Era um nome que quando crescesse mais e quisesse entrar no processo da socialização secundária lhe causaria muitos desgostos. É óbvio que em muitas circunstâncias seria caçoado: na escola, pelos colegas meninos da mesma idade e pelos professores, estes últimos já crescido mas mal-educados pela máquina que governa o país; na conservatória do registo civil, quando fosse para adquirir documentos de identificação social.- Por favor, repita o nome, meu senhor!? – Pediria um dos funcionários do notário. Um desses amesquinhados selvagen
Mas o menino é indiferente. O menino olha descontraidamente para espaço, para o além; como que nascido de um quadro de guerra e paz, como se nessa vida nada mais lhe impressionasse.Pode ter tido sete ou oito anos quando foi encontrado numa situação funesta: o suposto pai e a suposta mãe mortos, na cama. E ele, alheio, montando peças de um brinquedo. Talvez os supostos pais já estivessem mortos há dias e ele estivesse ignorando o sucedido. Ou ignorando ou desapercebido ou sabe-se lá mais o quê. Mas lá estava ele, com o seu olhar glauco vítreo refletindo a pacificidade de uma tragédia. Não se incomodando com a constante e massiva presença de agentes da polícia na sua casa.A polícia tinha concluído, no seu relatório sobre o caso, que o menino, mesmo teimando em não querer revelar nada, mesmo mostrando-se indiferente ao máximo, tinha assistido a olhos nus o assassinato dos pais, pois as conclusões revelavam que os mortos eram mesmo os pais dele. Bem deduzido por eles, e co
- Como te chamas!? – Perguntaram-lhe imediatamente assim que adentrou entre as muralhas do orfanato.- Ulika! – Tartamudeou.- Ulika, wau! Que lindo nome! – Assobiou a madre que se responsabilizava pelo orfanato.Pode ter sido um comentário honesto, nada embusteiro. Mas o rapaz não retribuiu o gesto; fechou os lábios e franziu o cenho, numa atitude de quem pede paz e solidão.- O Ulika só tem um nome? – Volveu a madre, ainda sorridente.- Sim – entreabriu outra vez os lábios para soltar o monossílabo e voltou a fechá-los imediatamente de seguida.Mas a madre não se cansava de rodeá-lo de mimos e simpatias. Recomendou a uma moça que se encontrava por perto para lavá-lo bem e trocar-lhe a roupa.Tudo foi cumprido a preceito. Duas horas depois o cabelo do miúdo reluzia, a sua pele resplandecia e as pupilas de seus olhos cintilavam como duas estrelas vivas. Isso atraiu ainda mais a atenção da madre. Esta que procurou apagar todos os vestígios do
Essa poderia ser a quarta ou a quinta cidade que ele visitava e morava. Lembrava-se dos primeiros bairros onde passou a sua infância. Tinha despertado os olhos da consciência aos três anos de idade e até agora ele já tinha percepcionado muita coisa.Com o dinheiro que havia amealhado no orfanato, oferecido por seus admiradores, onde se destacava a madre Lucinda, ele tinha conseguido viajar por uns duzentos e tal quilómetros. Sem itinerário traçado, sem destino à vista. Pôs-se num táxi, pagou a passagem sem se importar pelo destino que o bilheteiro mencionava e fechou os olhos. Adormeceu na hora, talvez fosse porque sentia algum alívio em se ver fora das muralhas do orfanato, talvez não, é um mistério. Agora sonhava, enquanto toscanejava, que se permanecesse por mais um dia no orfanato acabaria mal e os outros seriam afetados; por isso, agindo assim, estava a proceder da melhor maneira. Despertou, suspirou e abriu os olhos num instante para observar os companheiros da viage