Ulika, irresistível
Ulika, irresistível
Por: Banny de Castro
Prefácio

ULIKA - um herói sem génese

Um bom livro é aquele que provoca no leitor reflexões, que o faz pensar em diversas situações; enfim, que o induza a certas provocações. Quando leio um livro não me preocupo apenas com seu enredo, mas, principalmente, com o que ele pode dialogar comigo, mexer com minhas ideias, com a minha cultura. Espero que ele me apresente novidades ou que me faça andar por outros caminhos. Rubem Alves, que é um grande cronista brasileiro, ensina que um bom texto é aquele que nos deixa transformados, que nos faz pensar. Após a leitura de um bom texto, não seremos mais os mesmos. A leitura, nesse sentido, é uma viagem. Gosto de viajar nas leituras que faço. Quem escreve é um viajante do tempo e das realidades do mundo. Como sou mais poeta do que ficcionista (pelo menos, eu imagino que seja), procuro ver, como diz Manoel de Barros, o delírio do verbo, que é a chave da poesia. Literatura é a arte do delírio do verbo – e também do pensamento -, é onde podemos fazer as nossas transgressões, inclusive do pensamento.

No outro dia recebi uma solicitação do jovem escritor angolano Banny de Castro para prefaciar o seu Ulika. Sou nordestino, do Piauí, uma região muito parecida com a realidade africana, e me encheu de prazer o convite do jovem angolano, para anteceder a leitura de seu livro.

Em um primeiro momento, pensei em nossos países (Brasil e Angola), tão distantes e, ao mesmo tempo, tão pertos. Há, entre os dois, fortes ligações, sejam étnico-culturais, sejam linguísticas. Fomos colonizados pelos portugueses, que nos impuseram a língua, os costumes, as tradições e a religião (o Cristianismo). Entretanto, há pontos que devem ser observados. Por exemplo, os brasileiros falam e escrevem um português abrasileirado, sem o sotaque de Portugal, já os angolanos primam pelo português bem aportuguesado, com muito sotaque. Acho que é devido ao rigor e ao tempo de colonização. O Brasil tornou-se independente no século XIX, enquanto que Angola só no final do século XX. Existe, porém, uma marca nos angolanos, que nós brasileiros não temos, que é a referência das línguas primitivas, dentre as quais a língua umbundu em que o jovem escritor angolano tão bem se expressa. Por outro lado, tanto nós brasileiros quanto os angolanos, sentimos muito a falta de uma identidade própria, uma vez que esta nos foi roubada pelo colonizador. E isto, pelo menos eu penso, em nós é muito mais incisivo e característico, devido às inúmeras influências étnico-culturais que recebemos.

Em um segundo momento, o da leitura do livro de Banny de Castro, confesso que me causou muito estranhamento, razão pela qual fiz a leitura em dois fôlegos. Durante a primeira leitura, que necessitou de boa parte da noite, já me impressionei com a ideia: só existe morte, não haverá ressurreição (Kuliñgo okufa, kakuli epinduko). E a falta de uma personalidade definida ou também de uma identidade do personagem Ulika, que dá nome ao livro, me fizeram algumas provocações. Pensei no Brasil e em Angola, nos escravizados vindos da África para o Brasil em navios negreiros, à mercê da sorte, num corte abrupto do cordão umbilical que os unia à Pátria-mãe.

Há muitas provocações no livro, e há também algumas ideias instigantes. O tempo, a vida, a morte e a liberdade são discutidos ao longo do livro, fugindo dos padrões conceituais. Vive-se naqueles que já morreram? Ou morre-se naqueles que vivem? A não-existência é uma forma de existir para sempre? Esse tipo de questionamento é provocado a partir da relação entre Ulika e o Wafile Ale, este último um personagem que já vivera em outras eras, emergido da profundeza dos cemitérios. A ideia de não conhecer a origem (de onde veio e para onde vai) faz de Ulika um personagem não-personagem, um ser inexistente. No segundo momento da leitura, pude me concentrar nas discussões que eram sistematicamente sugeridas pelas relações entre o personagem central e as mulheres que por ele se apaixonavam (Wanda e Mbela).

Achei o livro muito provocativo – o que lhe garante boa qualidade -, é uma espécie de metáfora ou mesmo uma hipérbole para entender que a nossa identidade não está apenas em nós mesmos, que atravessa mundos, faz viver/e reviver vidas diferentes, nem que sejam outras vidas.

Em alguns momentos do livro, pensei na ideia da morte, naquela inscrição na cruz sobre o túmulo: só a morte existe... Culturalmente é quase impossível renascer, ter vida nova, sem os machucados deixados pelo colonizador. A colonização nos tornou inférteis, desprovidos de nossas raízes. Em síntese, é preciso entender que necessitamos morrer para renascer. “A morte...é uma invenção dos deuses, e do Ulika, para se divertirem”.

Imagino que Ulika signifique único: sem sobrenome, sem origem, sem destino certo, diferente de tudo e de todos, indiferente a tudo. É uma hipérbole da vida e da morte, mas capaz de deixar que o leitor dialogue consigo mesmo e entenda que muitas certezas são coisas muito incertas.

O livro de Banny de Castro apresenta elementos importantes para uma boa discussão académica. Diferente de tudo que tenho lido, Ulika se me apresenta inovador na narrativa e problematizador no conteúdo das questões vitais e mundanas.

Vale a pena conferir a leitura de Ulika do jovem escritor angolano Banny de Castro.

Lourival da Silva Lopes

Sigue leyendo en Buenovela
Escanea el código para descargar la APP
capítulo anteriorcapítulo siguiente

Capítulos relacionados

Último capítulo

Escanea el código para leer en la APP