Porém, o Ulika ficou na cadeia por uma semana até que decidiram soltá-lo, por falta de evidências recriminatórias.
Voltou ao mesmo ambiente dos subúrbios, e continuou visitando cemitérios. Os cemitérios estavam a despertar nele uma simpatia astral. Ficava lá sentado, meditativo, como se estivesse a confabular com os eflúvios dos mortos. Não se cansava de ler os nomes e descrições adicionais nas lápides ou nas cruzes de madeira.
«António Lundungu, falecido aos 19 de Dezembro de 199…», «Afonso da Conceição Mandume, falecido aos 04 de Fevereiro de 2003…; que sua alma descanse em paz», José Ferreira de Sá e Arcanjo, falecido aos 27 de Maio de 196…, e quejandos. Enfim, alguns meses depois conhecia todos os centros fúnebres daquela negra cidade, e sabia a média de funerais por dia.
De dia vagueava pelos cemitérios rurais, aqueles que se situavam em zonas periféricas da cidade. De noite recorria ao cemitério urbano, este situado no centro e destinado ao uso das elites, pa
A vida pelas ruas da urbe não diferia muito da dos subúrbios e dos cemitérios. Apenas nas casas, nas estradas e um pouco mais de exuberância... Quanto ao resto empatavam-se. Ademais, era o barulho ensurdecedor que se produzia durante todo o dia e toda a noite. O Ulika era muito susceptível a isso. Porém, agora palmilhava as artérias em estado de degradação de uma vetusta cidade, procurando se manter vivo. Desde que tinha lido a escritura supostamente rabiscada por um psicopata numa cruz de madeira velha, sobre uma velha campa não cimentada que nasceu nele o desejo de viver mais copiosamente. Se não há ressurreição, porque apressar a minha morte? Já se questionava; e o seu espírito era visitado por uma onda suave de necessidade de mudança. Uma ação revolucionária que nasceria de si e se estenderia para todo o sempre, de geração em geração; ele sabia que isso podia significar tudo e nada ao mesmo tempo para a humanidade.Sentia que tinha enfraquecido muito nos tempos em que pass
Ficou internado no hospital daquelas bandas por duas ininterruptas semanas.O diagnóstico tinha revelado Febre Tifoide e os médicos e enfermeiros engajaram-se com afinco a tratar do doente, pois o senhor que o trouxera para o hospital garantira tudo para que o tratassem condignamente. Pediu relutante que lhe fosse garantido tudo o que fosse necessário para reabilitá-lo, que ele estava predisposto a arcar com todas as despesas. Este senhor não parecia ser nem político nem funcionário público. Pelo seu semblante até dava para lhe atribuir exercício comercial. As suspeitas recaíam mais para a exploração diamantífera ilícita, pois aquelas terras eram abundantes desse minério e há muito que intrusos garimpavam por lá. Pela forma como ele andava a entregar dinheiro para o tratamento do menino…- Como se chama o moço? – Perguntaram-lhe quando chegou com o doente.- Ulika! – Respondeu, num monossílabo seco.- Que nome estranho para um garoto como ele! – Ciciou uma en
Quando o Ulika deu por si estavam diante de um quintal de muros altos, com um sistema de segurança elétrica sobre os muros; era a residência do seu benfeitor. Ao longo do trajeto não conversaram, ninguém soltou alguma palavra. Operavam como se fossem companheiros de longa data que sempre estiveram juntos; ou como se estivessem a obedecer a um tácito princípio que consistisse no silêncio mútuo!O Ulika desceu do carro e foi abrir o portão cuja chave o benfeitor lhe passou através de um simples gesto. Depois que transpuseram o limiar do portão foi a vez do benfeitor descer também. Juntos entraram para a imponente residência que se encontrava escondida entre as altas muralhas do quintal. Era uma casa enorme e moderna, muito grande. Era um bom lugar para um convalescente. Não se entusiasmou, claro, porque continuava sendo o que sempre fora. Como não trazia bagagem, mal se viu na sala de estar estendeu-se ao comprido no sofá-cama ali instalado como que para si; enquant
- Já te sentes bem? – Perguntava o benfeitor.- Sim, obrigado por me teres acolhido. Se não me tivesses socorrido naquele dia, seria fatal.- E tens medo da fatalidade?- Eu não sou Cristo, nem Sócrates… logo, tenho medo da morte. – Essas ideias ele as tinha apreendido recentemente, pelos livros do benfeitor.- O medo da morte não te salvará da morte. Tens de aprender a morrer estando vivo. Morrer é um caminho, um curso que se aprende, não depois da morte, mas ao longo da vida. A morte é o termo de um longo percurso. E é nisso que consiste o verdadeiro sentido da vida, a verdadeira salvação.O Ulika ficou um tanto embaraçado. Essas ideias eram sofisticadas demais, tinha de se concentrar, afinal...- Mas…patrão, eu …- Não sou teu patrão, Ulika. Tenho um nome.- Um nome!? Nunca pensei e
Os dias se repetiam imparavelmente. Os dias não passam; tal como a terra, o tempo gira em torno de um grande eixo invisível. São os homens que criaram a ilusão do passar do tempo por causa das metamorfoses para a morte que neles se operam. Isso serve como um grito de desespero ante à implacabilidade do tempo. Se o tempo passasse então não seria um recurso inesgotável. Tão inesgotável que ao fim e ao cabo todos nós acabaremos desistindo de consumi-lo.- Sabes porque é que me chamo Wafile Ale? – Era outra ocasião, e estavam outra vez sentados entre os livros da rica biblioteca do Wafile Ale.- Não!- Mas sabes o que essa expressão significa?- Sim, senhor, entendo Umbundu.- Outra vez, Ulika. Não me trates por senhor, trate-me por tu, porque tudo o que diz respeito a rótulos sociais me aborrece. Eu não gostaria sequer de continuar a ser tratado pelo nome que os meus pais me atribuíram no berço, sabes? Isso é mau, rotular pessoas como se fosse
Queres dizer que vieste assim do cemitério, foste ressuscitado? – Inquiriu o Ulika.- Sim.- Mas tu não és diferente dos homens comuns.- Porque não eu não existo há mais de dois séculos.- Dois séculos!? Quer dizer que já tens mais de 50 anos?- Sim, mais de cem anos de vida.- E achas que existem pessoas que existem há mais de duzentos anos?- Não só acho, mas conheço muitas, espalhadas por esse mundo fora. Normalmente é gente indiferente, que não fala e não convive com estranhos. Temos tido encontros para falar dos problemas da nossa natureza.O Ulika calou-se, como que meditando, antes de voltar a questionar.- E como se explica que tenhas decidido me recolher da rua, já que não é da vossa natureza conviverem e falarem com estranhos?- Tu não és estranho, Ulika; eu te reconheci logo no primeiro dia em que te vi. Tu és produto de um bilhão de gerações e todas essas gerações estão visivelmente contidas em ti. Eu não te vi
O Wafile Ale arranjou tudo para que ele terminasse o ensino médio.Com uma habilidade de rapina conseguiu todos os documentos necessários para identificar o Ulika e matriculá-lo numa escola do Ensino Médio, algures no centro da cidade.No primeiro ano de escolaridade foi distinto. No segundo idem. Tornou-se um aluno em destaque. Os colegas o invejavam e as moças apaixonavam-se aos montes pela sua fisionomia e pelos seus dotes. Mas, como sempre, ele não era de muitas amizades. Estava sempre ensimesmado, olhando para além das pessoas.- Oko, esse moço mba é bonito – Sibilavam viperinamente as moças estudantes da instituição, quando por elas ele passava.- Eu também gosto dele, só o olhar dele!?- E é bem inteligente!Todas achavam o seu inexpressivo olhar encantador e não era sem pudor que uma professora de biologia retratava à sua turma a anoto-fisiologia do sistema reprodutor. Ela também sentia-se atraída por ele, mas sempre que falasse sobre sexo
- Tenho de ir. – Anunciou numa certa manhã, em prontidão, com uma mochila às costas.Realmente estava crescido. Muito alto e esbelto.- Aonde vais?- Ainda não sei; mas acho que vou continuar com os estudos. Preciso de estudar mais a fim de estar licenciado para exercer alguma profissão e ser independente.- Está bem. Podes ir. – O Wafile Ale levantou-se da poltrona onde era costume sentar-se e foi ao quarto, de lá voltou com um envelope contendo dinheiro. – Eu reservei esse dinheiro para ti, para os primeiros dias em que te instalares numa determinada cidade. Na verdade, esse dinheiro te será necessário e útil por muito tempo e para muitas circunstâncias. Mas por favor, esqueça-se de mim. E nunca voltes para essa cidade. Eu não existo e tudo o que vivemos foi uma ilusão.- Está bem, Wafile Ale. Assim que partir farei questão de te tirar da minha cabeça e evitar essa casa e essa cidade. Se já estavas morto é porque não te será doloroso seres esquecido.<