Era 16h45min.
Macto, que estava sentado no estreito banco de madeira — pintado de branco neve —, levantou-se, visivelmente aflito, quando viu o que parecia ser o médico se aproximando.
Ele conduzia um caderno médio, de espiral de arame, capa vermelha-escura, e uma caneta esferográfica de tinta azul, prontos para o uso.
→ Macto Krisser? → ele disse.
→ Eu mesmo. E aí, doutor? → perguntou, visivelmente nervoso → Como ela está?
→ Sente-se, por favor.
Ambos sentaram.
O largo corredor do imenso hospital estava vazio, naquele horário.
Algo lúdico e perfeitamente normal, pois se encontravam no 5º andar, justamente na branca, limpa e bem iluminada ala dos internados.
A ala dos que sofriam, dos que almejavam desesperadamente uma cura.
O médico — sempre sério —, abriu o caderno e preparou a caneta, mudando a tampa de lugar, para certamente realizar as anotações.
→ É o seguinte → o médico começou. → Irei fazer algumas perguntas de cunho pessoal, e peço que as responda, pois se trata de um teste do hospital, ok? Um teste novo, eficaz, que, garanto, será importante para seu caso.
→ Tudo bem, doutor → respondeu, mesmo estranhando o início da conversa.
→ Vamos lá. Você gosta de Miojo? → foi a surpreendente e esdrúxula primeira indagação do médico, que o encarava.
Macto olhou para ele, atônito.
Miojo???
O médico era branco, alto e magro. Possuía fartos cabelos loiros — alinhados pelo gel — e um rosto bonito, cujos olhos azuis-cerúleos e límpidos se destacavam.
O olhar dele!
O sujeito emitia um olhar… digamos assim… gélido, não condizente com sua profissão. Era como se quisesse — com o olhar — perscrutar a alma de seu interlocutor, quem quer que seja.
Perguntou-se se o médico estaria prestes a lançar algum tipo de notícia incômoda, surpreendente ou... esperava que não... ruim, danosa, funesta.
Usava calça jeans e camisa branca, com a suntuosa bata — das que os médicos costumavam usar — também branca, por cima. Nos pés, sofisticados e caros tênis brancos, com listras azuis finas. O branco predominava, por ali. Branco... muito branco.
Era a primeira vez que via aquele médico, nos longos e angustiantes 42 dias em que sua amada Vera estava internada.
→ Miojo? → Macto repetiu, ainda pasmo.
→ Sim. Você gosta?
→ Não muito. Prefiro um...
→ Isso é mau → ele anotou a informação no caderno →. Mas tudo bem. Você sabe cozinhar?
→ Cozinhar? → Macto indagou, ainda pasmo, sem entender patavinas. A voz do médico era baixa, inflexível, quase um sussurro.
“Por que ele quer saber se sei cozinhar? Arre! Acalme-se, Macto. Colabore com o doutor”, refletiu. “É apenas um simples e inédito teste. Só isso."
→ Isso mesmo. Sabe cozinhar?
→ Não, doutor. Mas minha esposa sabe. Ela cozinha muito bem, por sinal.
→ Ok. Mas bom é que você aprenda. Já dizia o filósofo que cozinhar é a suprema arte da sobrevivência. Você tem boa memória?
→ Tenho, sim. Sou advogado. Sabe como é. Advogados, pra variar, necessitam ter boa memória → riu, baixinho, tentando amenizar o clima.
→ Que bom. É organizado?
→ Acredito que sim.
→ Tem boa percepção da vida?
→ Não entendi.
→ Esqueça. É supersticioso?
→ Não.
→ Tem algum tipo de fobia?
→ Acredito que não.
→ Ótimo. Gosta de gatos?
→ De gatos? → nova indagação, também repleta de surpresa e curiosidade.
→ Sim. Gatos.
→ Não gosto.
→ De cães?
→ Também não. Na verdade, não gosto de nenhum animal de estimação. Eu e Vera não…
→ Tudo bem. É uma pena… Já frequentou bares de beira de praia?
→ Não. Escute, doutor. Eu...
→ Fuma ou bebe?
→ Não fumo, mas gosto de cerveja. Bebo moderadamente, claro.
→ Gosta de dançar?
→ Sim. Bastante → respondeu. → De vez em quando eu e Vera saímos para...
→ Tem filhos?
Não sabia aonde aquele estranho diálogo ia dar. Mas tentou colaborar com o médico, que, por sua vez, não parava de anotar.
→ Não. Estamos casados há apenas quatro anos. Mas pretendemos ter dois, em breve. Eu sei que...
→ Ama sua esposa?
→ Que pergunta → riu, nervosamente. → Muito, muito. Amo demais. Sem querer ofender, mas o senhor poderia me dizer o motivo desse teste, doutor? É que…
→ Tenha paciência e confie em mim → ele disse, contrito. → Já estou terminando. Prosseguindo, você acredita em Deus?
→ Claro que sim → sorriu. → Quem não acredita? Não só acredito como rezo pra ele todos os dias. Peço todos os dias que ajude minha esposa a sair dessa difícil e deplorável situação.
→ Ótimo. Continue assim. É verdade que você e sua esposa chegaram a frequentar a matriz da Igreja Geral da Ressurreição?
→ Aquela da rua Hunt Mállaguer?
→ Sim.
Lembrou-se de Kleber, seu colega de trabalho, que, sendo evangélico, conseguiu convencê-lo, após várias tentativas, a dar uma discreta olhada na referida igreja.
Até hoje não soube explicar — católico fervoroso que era — como pudera aceitar o inusitado e estranho convite.
→ Fomos lá uma vez → respondeu → a pedido de um colega de trabalho, mas…
→ E por que não continuaram?
→ Porque chegamos à conclusão de que não era aquilo que queríamos. Sei lá. Sem querer ofender, decidimos, eu e a Vera, que a religião católica era ainda a nossa preferida. Afinal, nascemos católicos. Nossos pais e demais parentes são católicos. O sacro ritual da missa católica está enraizado em nossas mentes, entende? Somos inclusive devotos de Nossa Senhora Aparecida. Temos até uma grande imagem dela, em gesso, na nossa sala. Quer dizer, está claro que fomos lá apenas por uma questão de cortesia, sem compromisso, conforme eu claramente havia dito a ele.
Não tinha imagem nenhuma de Nossa Senhora Aparecida no apartamento, mas o sujeito não precisava saber disso.
→ Uma pena… → o médico prosseguiu. → Deveria voltar a frequentar. Sua vida mudará para melhor, tenho certeza. Por falar nisso, sua fé é realmente inabalável?
→ Minha fé? Inabalável? Como assim?
→ Esqueça. Muito bem. → o médico suspirou, parou de anotar, fechou o caderno, guardou a caneta no bolso da jaqueta, levantou-se e ergueu a mão direita, num cordial e singelo gesto de despedida.
Levantou-se também e apertou a mão do médico, esperando por uma explicação.
→ Obrigado por colaborar comigo, amigo → ele disse, sem sorrir. → Esse teste lhe trará benefícios em breve. Peço-lhe apenas um favor: que retorne ao templo da Igreja Geral da Ressurreição, da qual sou membro, confesso. Entre lá, escute nossas palestras, recupere sua fé e garanto que sua vida mudará.
→ Pode ser. Quem sabe? Mas não prometo nada. E com relação à minha esposa, doutor? Como ela está? Melhorou?
Ele desconversou:
→ Infelizmente, rapaz, não disponho dessa informação, pois meu setor é outro. Porém, daqui a pouco meu colega virá até aqui, para lhe fornecer o último boletim. Apenas espere, ok? Peço-lhe apenas que tenha paciência.
→ Tudo bem.
→ Obrigado. Até breve, amigo. Que Deus abra seu coração para os obstáculos da vida. Seja forte. Tenha fé. Amém. Tchau!
O médico, então, que não sorriu uma vez sequer, afastou-se — parecia, de repente, estar com muita pressa —, desaparecendo no corredor do hospital.
Novamente sozinho, naquele largo corredor, passou as mãos no rosto, sem entender nada. O que ele queria dizer com: "abra seu coração para os obstáculos da vida"? ou "seja forte"?
“Sujeito esquisito…”, pensou.
Mas a visita do médico o deixou otimista. Significava que tudo daria certo. Pelo menos assim pensou.
Duas horas depois, às 18h45min, Macto recebeu a trágica e surpreendente notícia, por meio de outro médico, no hospital mesmo. Tétrica notícia! Sua esposa acabara de falecer. Câncer de mama, aos 25 anos. Teve uma parada cardíaca fulminante, 20 minutos após a segunda cirurgia. Vera! Morta! Morta! Mas… como??? Não poderia acreditar e aceitar isso! Entrou em desespero, ao cair na real! Perdera precocemente sua amada companheira. Quatro anos apenas. Cinco, se contar o ano de namoro. Um amor intenso, que seria para a vid
Seus pais atrasaram a cerimônia do enterro em um dia, para que ele pudesse comparecer. Durante o enterro — inconformado e em estado de choque —, desmaiou de novo. As perniciosas e ignóbeis trevas o envolveram. A mãe de sua esposa também. Ambos foram levados ao hospital, onde lá permaneceram por quatro longas horas. Não viram, em consequência, o corpo descer para a cova. O choro contínuo — dos familiares e amigos — e a maquiavélica tristeza predominaram, naquela cerimônia deprimente e lamentável. Pegou um mês de dispensa do trabalho. Eles anteciparam suas férias, na verdade. Férias deploráveis, sem dúvida.
De manhã cedo — após o delicioso café expresso, que tomou na padaria da esquina, com três pães de queijo —, num sábado ensolarado, sozinho no apartamento (este localizado no quarto andar de um condomínio, na zona norte), tomou uma inusitada decisão. Ainda triste, mas já recuperado, decidiu dar uma olhada na única foto que tinha de Vera, a foto especial, que havia guardado numa das gavetas do guarda-roupa. Por orientação do doutor Fernando, todas as fotos de Vera — ou dos dois juntos — estavam na casa de seus pais. Deveriam permanecer lá por pelo menos três ou quatro anos, até que as ignóbeis feridas sarassem. Entregou todas as fotos… menos aquela. Era seu mirífico segredo.&nb
Mantendo a rotina, domingo, após a missa, Macto almoçou com os pais, a irmã e Marcelo, o namorado dela. Conseguiu, obviamente, disfarçar seu maquiavélico estado de espírito. Optou por não contar a eles sobre a conversa que tivera com o médico e sua pretensão de encontrá-lo, pois corria o risco de ser mal interpretado. Débora anunciou que iria se casar com Marcelo dentro de seis meses. Excelente notícia, uma vez que Marcelo se mostrou uma pessoa de bem, um sujeito realmente honesto, simpático, além de possuidor de ótimo caráter. O almoço foi tranquilo. Na segunda-feira, de manhã — entre curioso e ansioso —, pediu dispensa do trabalho e seguiu para o efici
Na terça-feira, de manhã, de volta ao trabalho — era advogado, especializado em causas trabalhistas e trabalhava numa grande empresa do ramo — procurou seu colega Kleber, na sala adjacente à sua. Kleber — sujeito de seus trinta e poucos anos, moreno-claro, gordo e baixo, que usava feiosos óculos de grau —, encontrava-se sentado à mesa, concentrado, digitando, no notebook, alguns textos. Não eram realmente amigos, até porque tinham filosofias diferentes, no que dizia respeito a quase tudo. Kleber, casado, era religioso demais para seu gosto. Contudo, respeitava o colega, apesar deste ter sido contratado, pela empresa, há somente um ano e meio. Apesar do pouco tempo dele ali, já haviam colaborado um com o outro, em vários trabalhos. Ele era do tipo sério, tranquilo, educa
No sábado, deixou o Uno verde-escuro no imenso estacionamento da igreja às 7h45min. A rua Hunt Mállaguer, da zona norte — mesma zona onde residia —, localizada num bairro nobre, estava bastante movimentada, com aquela montanha de gente indo na direção do templo. Pessoas desesperadas? Saiu e deu uma olhada no templo. Era imenso — pelo menos uns 80 metros de largura — e possuía dois andares. Na frente, uma enorme escadaria, de 12 degraus, em aclive, que dava acesso à enorme porta da entrada — esta teria uns bons 30 metros de largura. Templo suntuoso e luxuoso! "Coisa de louco, meu. UAU!" Parou de admirar a estrutura, juntou-se à multidão, voltou à frieza e entr
À tarde, retornou ao templo e repetiu as ações que fizera pela manhã. Viu tudo, menos o falso médico. Saiu de lá frustrado. À noite, mais uma tentativa. Em vão. Mas viu Kleber, que estava acompanhado de uma mulher gorda e de dois meninos. Por sorte, não foi visto por ele. Ao lado deles, de modo surpreendente, viu Patrick — o esquelético e tímido Patrick —, outro colega de trabalho. “Nossa! Não sabia que o Patrick tinha embarcado nessa. Esse Kleber tem muita lábia, convenhamos.” Decidiu não se aproximar deles, para conversar. Não valeria à pena. Saiu de mansinho, ciente de que teria que prosseguir com a caçada.&nbs
Pesquisou na internet os demais endereços da igreja Geral da Ressurreição. Anotou seis, numa caderneta de capa preta. Os templos situados mais próximos de seu bairro. Kleber veio falar com ele: → E aí, Macto? Encontrou o falso médico? → Ainda não → respondeu, incisivamente →. Mas continuarei procurando. Não contou a ele que o viu, conversando com o Patrick, no templo, fins evitar ter que dar explicações. Kleber, então, se afastou, discretamente, com a calma de sempre. No sábado de manhã, foi até à rua Lins Grugger, na zona sul — longe do bairro onde residia — e deixo