CAPÍTULO 03

      Seus pais atrasaram a cerimônia do enterro em um dia, para que ele pudesse comparecer.

      Durante o enterro — inconformado e em estado de choque —, desmaiou de novo. As perniciosas e ignóbeis trevas o envolveram.

      A mãe de sua esposa também. Ambos foram levados ao hospital, onde lá permaneceram por quatro longas horas. Não viram, em consequência, o corpo descer para a cova.

      O choro contínuo — dos familiares e amigos — e a maquiavélica tristeza predominaram, naquela cerimônia deprimente e lamentável.

      Pegou um mês de dispensa do trabalho. Eles anteciparam suas férias, na verdade. Férias deploráveis, sem dúvida.

      A primeira semana foi terrível, pois foi atormentado por contínuos, perniciosos e horripilantes pesadelos.

      Num deles, viu-se sentado na areia da praia, numa noite de lua cheia. Praia que lhe era completamente desconhecida.

      Usava camisa e bermuda brancas e não sabia como fora parar ali.

      O majestoso mar estava à sua frente — distante uns 40 metros — e um vento gelado soprava do leste.

      Às suas costas, dunas e dunas de areia, distante uns 50 metros do local onde se encontrava.

      Já lograva se erguer, para caminhar, quando — subitamente — um vulto surgiu. Uma pessoa, parada, ali, na sua frente. Mas… era sua esposa. Sim. Vera.

      Vera?!?

      Os cabelos longos eram dela, sim. Não teve dúvidas. Vera surgiu do mar e vinha na sua direção. Porém parecia flutuar — seus pés a um metro de distância da areia. Como era possível?

      Estaria realmente flutuando? Ou andava na areia? Não teve certeza.

      Ansioso, fixou os olhos nela.

      Usava um belo vestido branco, longo, colado, que delineava as sedutoras curvas de seu corpo. Vestido longo? Nunca o tinha visto antes.

      Não mesmo.

      Estando ela a cerca de sete metros, levantou-se — entre surpreso e feliz — para abraçá-la. Chegou a dar um passo, mas estacou, ao notar que alguma coisa estava errada. Os olhos dela!

      O que era aquilo?!?

      Seus olhos não tinham pupilas, iguais aos olhos dos zumbis patéticos dos filmes de terror classe “C” que costumava assistir. Tétricos!

      Expressavam… o quê mesmo?

      Era um olhar sem vida, melancólico, além de assustador e tenebroso. Ignóbil! Maquiavélico!

      Causou-lhe intensos arrepios!

      Para piorar, seu rosto estava branco e lívido, como o de um asqueroso cadáver.

       Sinistro ao extremo!

      Outro cruel detalhe: sangue fluía de seu nariz e boca, sujando de vermelho-escuro a parte de cima do vestido. Sangue em demasia, muito sangue, fluindo daqueles orifícios.

      Por quê? Estaria ela ferida? Seria o câncer? O câncer estaria causando todo aquele sangramento?

      Enquanto flutuava lentamente, Vera ergueu os braços — à frente do corpo —, como se pedisse algo. Sua boca se abria, mas nenhum som era ouvido. Ela demonstrava estar apavorada com alguma coisa.

      Medo extremo!

      Era uma cena verdadeiramente cruel e chocante!

      Horrível!

      Recuou dois passos — dominado por um profundo e tétrico horror — e se preparava para fugir, para ficar longe daquela que parecia, mas não era sua esposa, quando…

      Subitamente, um vulto surgiu, também flutuando (ou andando?) também usando roupas brancas — calças largas e camisa de mangas compridas —, atrás dela. Mesmo sob a luz do luar, conseguiu identificar aquele homem.

      Outra surpresa!

      Era o médico!

      O médico que fizera o teste com ele, no hospital. O cara das perguntas bizarras. O frio e sisudo médico!

      O que ele fazia ali? O que ele tinha a ver com isso? Seus olhos azuis-cerúleos brilhavam. Era um brilho satânico, animalesco, diabólico, como se ele fosse uma espécie de…

      De repente, o sujeito ergueu a mão direita, o que fez com que os contornos da lâmina de um punhal ficassem nítidos e evidentes.

      Um punhal? Por que um punhal?

      Será que…

      Sim! Suas intenções ficaram claras.

      O indivíduo iria atacá-la! Maldito!

      Antes que pudesse tomar algum tipo de atitude, para seu horror, o médico acercou-se das costas da criatura que poderia ser sua esposa e desferiu exatas seis estocadas. Um tétrico e angustiante grito de dor foi ouvido.

      Enquanto o assassino desaparecia, aquela que parecia Vera avançou alguns passos e caiu sobre seus braços, derrubando-o na areia. Permaneceu em cima dele, trêmula e gemendo de dor. Fedia a... a o quê, mesmo?

      Sangue???

      Viu-se banhado de sangue — sangue que brotava do nariz, da boca e das costas dela. Era muito sangue, que cobriu seu rosto, impedindo-o de respirar. Sem contar os gritos dela, os espasmos dela, o terror…

      Acordou aos prantos, pálido e suado.

      Trêmulo, apavorado, sem entender nada. Depois, percebeu tratar-se de um pesadelo. Um horrível pesadelo!

      E o troço se repetiu, todas as noites.

      Após o oitavo pesadelo — sempre com o médico matando sua esposa-zumbi —, em desespero, viu-se forçado a pedir ajuda.

      Relatou, pálido e aos prantos, aos pais, os detalhes dos pesadelos.

      → Querido, meu amor, acalme-se, pois iremos ajudá-lo → sua mãe prometeu, visivelmente emocionada, após abraçá-lo afetuosamente.

      Seus pais, então, marcaram consulta com o psicólogo, fins tirá-lo desse drama. A princípio não queria ir, mas — face os argumentos dos pais e da irmã — acabou por capitular. Apresentou-se, enfim, ao doutor Fernando.

      Foram seis meses de consultas a princípio chatas, — duas vezes por semana —, em que o doutor, calmamente, mais o ouvia do que falava. E ele falou, abriu seu coração, relatando os momentos de felicidades ao lado de Vera e da dor que sentiu, após sua morte. Na medida em que falava, sentiu que ia ficando mais calmo.

      Com o passar dos dias, percebeu aquilo foi dando certo.

      Além das conversas, passou a ingerir uma cápsula metade amarela, metade azul, todas as noites. Benditas cápsulas, que lhes causavam um sono profundo!

      Bendita ciência!

      Já no primeiro mês — sob efeito das cápsulas — notou que os pesadelos desapareceram. Uma excelente notícia. Pôde até voltar a trabalhar, no que foi bem recebido pelos colegas. Percebeu que podia exercer suas funções, embora atuando apenas na parte burocrática, sem atendimento aos clientes.

      Mesmo assim, não quis arriscar e decidiu prosseguir com o tratamento.

      Seis meses depois, enfim, despediu-se definitivamente do doutor Fernando. Não precisava mais das cápsulas nem das conversas. Viu-se realmente pronto para encarar a vida, para enfrentar, com tranquilidade, sua velha e garbosa rotina.

      Decidiu mudar alguns hábitos.

      Passou a frequentar a igreja católica de São Judas Tadeu todos os domingos de manhã, juntamente com os pais, mais Débora e o namorado dela.

      Assistia à santa missa dominical.

      Parou de ingerir bebidas alcoólicas e não saiu mais, à noite. Tornou-se um homem do dia e não da noite. Sua alimentação tornou-se mais saudável, apesar de ainda gostar de churrasco.

      Nos finais-de-semana, adquiriu o hábito de correr por uma ou duas horas, na praia, fins manter a forma. Corrida leve, claro, num passo moderado.

      Também passou a almoçar com os pais — na casa deles —, todos os domingos, algo que levantou seu astral, dando-lhe um humor mais salutar, mais benevolente.

      Como passatempo, passou a frequentar o cinema e as praias, a fazer muita leitura, a ver futebol (era um discreto torcedor do Flamengo) e filmes na TV e, vez ou outra, a praticar intensas caminhadas nas trilhas dos parques.

      Como consequência, perdeu alguns quilos. Viu-se esguio e relativamente musculoso.

      Tudo isso sozinho… sempre sozinho.

      Refugiou-se na sua cálida e benevolente solidão, que se tornou sua grande parceira.

      Manteve, portanto, corpo e mente ocupados o suficiente para não lembrar.

      No entanto, oito meses depois que se libertou do psicólogo, no exato dia em que Vera iria completar 23 anos, se estivesse viva, não resistiu. Não conseguiu resistir!

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo