Seus pais atrasaram a cerimônia do enterro em um dia, para que ele pudesse comparecer.
Durante o enterro — inconformado e em estado de choque —, desmaiou de novo. As perniciosas e ignóbeis trevas o envolveram.
A mãe de sua esposa também. Ambos foram levados ao hospital, onde lá permaneceram por quatro longas horas. Não viram, em consequência, o corpo descer para a cova.
O choro contínuo — dos familiares e amigos — e a maquiavélica tristeza predominaram, naquela cerimônia deprimente e lamentável.
Pegou um mês de dispensa do trabalho. Eles anteciparam suas férias, na verdade. Férias deploráveis, sem dúvida.
A primeira semana foi terrível, pois foi atormentado por contínuos, perniciosos e horripilantes pesadelos.
Num deles, viu-se sentado na areia da praia, numa noite de lua cheia. Praia que lhe era completamente desconhecida.
Usava camisa e bermuda brancas e não sabia como fora parar ali.
O majestoso mar estava à sua frente — distante uns 40 metros — e um vento gelado soprava do leste.
Às suas costas, dunas e dunas de areia, distante uns 50 metros do local onde se encontrava.
Já lograva se erguer, para caminhar, quando — subitamente — um vulto surgiu. Uma pessoa, parada, ali, na sua frente. Mas… era sua esposa. Sim. Vera.
Vera?!?
Os cabelos longos eram dela, sim. Não teve dúvidas. Vera surgiu do mar e vinha na sua direção. Porém parecia flutuar — seus pés a um metro de distância da areia. Como era possível?
Estaria realmente flutuando? Ou andava na areia? Não teve certeza.
Ansioso, fixou os olhos nela.
Usava um belo vestido branco, longo, colado, que delineava as sedutoras curvas de seu corpo. Vestido longo? Nunca o tinha visto antes.
Não mesmo.
Estando ela a cerca de sete metros, levantou-se — entre surpreso e feliz — para abraçá-la. Chegou a dar um passo, mas estacou, ao notar que alguma coisa estava errada. Os olhos dela!
O que era aquilo?!?
Seus olhos não tinham pupilas, iguais aos olhos dos zumbis patéticos dos filmes de terror classe “C” que costumava assistir. Tétricos!
Expressavam… o quê mesmo?
Era um olhar sem vida, melancólico, além de assustador e tenebroso. Ignóbil! Maquiavélico!
Causou-lhe intensos arrepios!
Para piorar, seu rosto estava branco e lívido, como o de um asqueroso cadáver.
Sinistro ao extremo!
Outro cruel detalhe: sangue fluía de seu nariz e boca, sujando de vermelho-escuro a parte de cima do vestido. Sangue em demasia, muito sangue, fluindo daqueles orifícios.
Por quê? Estaria ela ferida? Seria o câncer? O câncer estaria causando todo aquele sangramento?
Enquanto flutuava lentamente, Vera ergueu os braços — à frente do corpo —, como se pedisse algo. Sua boca se abria, mas nenhum som era ouvido. Ela demonstrava estar apavorada com alguma coisa.
Medo extremo!
Era uma cena verdadeiramente cruel e chocante!
Horrível!
Recuou dois passos — dominado por um profundo e tétrico horror — e se preparava para fugir, para ficar longe daquela que parecia, mas não era sua esposa, quando…
Subitamente, um vulto surgiu, também flutuando (ou andando?) também usando roupas brancas — calças largas e camisa de mangas compridas —, atrás dela. Mesmo sob a luz do luar, conseguiu identificar aquele homem.
Outra surpresa!
Era o médico!
O médico que fizera o teste com ele, no hospital. O cara das perguntas bizarras. O frio e sisudo médico!
O que ele fazia ali? O que ele tinha a ver com isso? Seus olhos azuis-cerúleos brilhavam. Era um brilho satânico, animalesco, diabólico, como se ele fosse uma espécie de…
De repente, o sujeito ergueu a mão direita, o que fez com que os contornos da lâmina de um punhal ficassem nítidos e evidentes.
Um punhal? Por que um punhal?
Será que…
Sim! Suas intenções ficaram claras.
O indivíduo iria atacá-la! Maldito!
Antes que pudesse tomar algum tipo de atitude, para seu horror, o médico acercou-se das costas da criatura que poderia ser sua esposa e desferiu exatas seis estocadas. Um tétrico e angustiante grito de dor foi ouvido.
Enquanto o assassino desaparecia, aquela que parecia Vera avançou alguns passos e caiu sobre seus braços, derrubando-o na areia. Permaneceu em cima dele, trêmula e gemendo de dor. Fedia a... a o quê, mesmo?
Sangue???
Viu-se banhado de sangue — sangue que brotava do nariz, da boca e das costas dela. Era muito sangue, que cobriu seu rosto, impedindo-o de respirar. Sem contar os gritos dela, os espasmos dela, o terror…
Acordou aos prantos, pálido e suado.
Trêmulo, apavorado, sem entender nada. Depois, percebeu tratar-se de um pesadelo. Um horrível pesadelo!
E o troço se repetiu, todas as noites.
Após o oitavo pesadelo — sempre com o médico matando sua esposa-zumbi —, em desespero, viu-se forçado a pedir ajuda.
Relatou, pálido e aos prantos, aos pais, os detalhes dos pesadelos.
→ Querido, meu amor, acalme-se, pois iremos ajudá-lo → sua mãe prometeu, visivelmente emocionada, após abraçá-lo afetuosamente.
Seus pais, então, marcaram consulta com o psicólogo, fins tirá-lo desse drama. A princípio não queria ir, mas — face os argumentos dos pais e da irmã — acabou por capitular. Apresentou-se, enfim, ao doutor Fernando.
Foram seis meses de consultas a princípio chatas, — duas vezes por semana —, em que o doutor, calmamente, mais o ouvia do que falava. E ele falou, abriu seu coração, relatando os momentos de felicidades ao lado de Vera e da dor que sentiu, após sua morte. Na medida em que falava, sentiu que ia ficando mais calmo.
Com o passar dos dias, percebeu aquilo foi dando certo.
Além das conversas, passou a ingerir uma cápsula metade amarela, metade azul, todas as noites. Benditas cápsulas, que lhes causavam um sono profundo!
Bendita ciência!
Já no primeiro mês — sob efeito das cápsulas — notou que os pesadelos desapareceram. Uma excelente notícia. Pôde até voltar a trabalhar, no que foi bem recebido pelos colegas. Percebeu que podia exercer suas funções, embora atuando apenas na parte burocrática, sem atendimento aos clientes.
Mesmo assim, não quis arriscar e decidiu prosseguir com o tratamento.
Seis meses depois, enfim, despediu-se definitivamente do doutor Fernando. Não precisava mais das cápsulas nem das conversas. Viu-se realmente pronto para encarar a vida, para enfrentar, com tranquilidade, sua velha e garbosa rotina.
Decidiu mudar alguns hábitos.
Passou a frequentar a igreja católica de São Judas Tadeu todos os domingos de manhã, juntamente com os pais, mais Débora e o namorado dela.
Assistia à santa missa dominical.
Parou de ingerir bebidas alcoólicas e não saiu mais, à noite. Tornou-se um homem do dia e não da noite. Sua alimentação tornou-se mais saudável, apesar de ainda gostar de churrasco.
Nos finais-de-semana, adquiriu o hábito de correr por uma ou duas horas, na praia, fins manter a forma. Corrida leve, claro, num passo moderado.
Também passou a almoçar com os pais — na casa deles —, todos os domingos, algo que levantou seu astral, dando-lhe um humor mais salutar, mais benevolente.
Como passatempo, passou a frequentar o cinema e as praias, a fazer muita leitura, a ver futebol (era um discreto torcedor do Flamengo) e filmes na TV e, vez ou outra, a praticar intensas caminhadas nas trilhas dos parques.
Como consequência, perdeu alguns quilos. Viu-se esguio e relativamente musculoso.
Tudo isso sozinho… sempre sozinho.
Refugiou-se na sua cálida e benevolente solidão, que se tornou sua grande parceira.
Manteve, portanto, corpo e mente ocupados o suficiente para não lembrar.
No entanto, oito meses depois que se libertou do psicólogo, no exato dia em que Vera iria completar 23 anos, se estivesse viva, não resistiu. Não conseguiu resistir!
De manhã cedo — após o delicioso café expresso, que tomou na padaria da esquina, com três pães de queijo —, num sábado ensolarado, sozinho no apartamento (este localizado no quarto andar de um condomínio, na zona norte), tomou uma inusitada decisão. Ainda triste, mas já recuperado, decidiu dar uma olhada na única foto que tinha de Vera, a foto especial, que havia guardado numa das gavetas do guarda-roupa. Por orientação do doutor Fernando, todas as fotos de Vera — ou dos dois juntos — estavam na casa de seus pais. Deveriam permanecer lá por pelo menos três ou quatro anos, até que as ignóbeis feridas sarassem. Entregou todas as fotos… menos aquela. Era seu mirífico segredo.&nb
Mantendo a rotina, domingo, após a missa, Macto almoçou com os pais, a irmã e Marcelo, o namorado dela. Conseguiu, obviamente, disfarçar seu maquiavélico estado de espírito. Optou por não contar a eles sobre a conversa que tivera com o médico e sua pretensão de encontrá-lo, pois corria o risco de ser mal interpretado. Débora anunciou que iria se casar com Marcelo dentro de seis meses. Excelente notícia, uma vez que Marcelo se mostrou uma pessoa de bem, um sujeito realmente honesto, simpático, além de possuidor de ótimo caráter. O almoço foi tranquilo. Na segunda-feira, de manhã — entre curioso e ansioso —, pediu dispensa do trabalho e seguiu para o efici
Na terça-feira, de manhã, de volta ao trabalho — era advogado, especializado em causas trabalhistas e trabalhava numa grande empresa do ramo — procurou seu colega Kleber, na sala adjacente à sua. Kleber — sujeito de seus trinta e poucos anos, moreno-claro, gordo e baixo, que usava feiosos óculos de grau —, encontrava-se sentado à mesa, concentrado, digitando, no notebook, alguns textos. Não eram realmente amigos, até porque tinham filosofias diferentes, no que dizia respeito a quase tudo. Kleber, casado, era religioso demais para seu gosto. Contudo, respeitava o colega, apesar deste ter sido contratado, pela empresa, há somente um ano e meio. Apesar do pouco tempo dele ali, já haviam colaborado um com o outro, em vários trabalhos. Ele era do tipo sério, tranquilo, educa
No sábado, deixou o Uno verde-escuro no imenso estacionamento da igreja às 7h45min. A rua Hunt Mállaguer, da zona norte — mesma zona onde residia —, localizada num bairro nobre, estava bastante movimentada, com aquela montanha de gente indo na direção do templo. Pessoas desesperadas? Saiu e deu uma olhada no templo. Era imenso — pelo menos uns 80 metros de largura — e possuía dois andares. Na frente, uma enorme escadaria, de 12 degraus, em aclive, que dava acesso à enorme porta da entrada — esta teria uns bons 30 metros de largura. Templo suntuoso e luxuoso! "Coisa de louco, meu. UAU!" Parou de admirar a estrutura, juntou-se à multidão, voltou à frieza e entr
À tarde, retornou ao templo e repetiu as ações que fizera pela manhã. Viu tudo, menos o falso médico. Saiu de lá frustrado. À noite, mais uma tentativa. Em vão. Mas viu Kleber, que estava acompanhado de uma mulher gorda e de dois meninos. Por sorte, não foi visto por ele. Ao lado deles, de modo surpreendente, viu Patrick — o esquelético e tímido Patrick —, outro colega de trabalho. “Nossa! Não sabia que o Patrick tinha embarcado nessa. Esse Kleber tem muita lábia, convenhamos.” Decidiu não se aproximar deles, para conversar. Não valeria à pena. Saiu de mansinho, ciente de que teria que prosseguir com a caçada.&nbs
Pesquisou na internet os demais endereços da igreja Geral da Ressurreição. Anotou seis, numa caderneta de capa preta. Os templos situados mais próximos de seu bairro. Kleber veio falar com ele: → E aí, Macto? Encontrou o falso médico? → Ainda não → respondeu, incisivamente →. Mas continuarei procurando. Não contou a ele que o viu, conversando com o Patrick, no templo, fins evitar ter que dar explicações. Kleber, então, se afastou, discretamente, com a calma de sempre. No sábado de manhã, foi até à rua Lins Grugger, na zona sul — longe do bairro onde residia — e deixo
Por incrível que possa parecer, acabara de avistar o falso médico! O famigerado falso médico! O desgraçado estava ali — no palco —, quieto, sério, concentrado, sentado na enorme mesa que eles sempre instalavam. Ao lado dele, mais nove pessoas sentadas, provavelmente pastores à espera, prontos para proferirem suas patéticas pregações. Sentiu seu coração bater mais forte, no peito. Aquele olhos azuis-cerúleos! O gel nos cabelos. Não teve dúvidas. E logo na sua quarta tentativa. Fácil, fácil. Por que ele deveria se esconder? Por que passaria na cabeça dele a ideia de que alguém pudesse procurá-lo? Afinal, não c
Foi para casa. Passou o resto da tarde e início da noite vendo TV, pensando nas ações que iria realizar. Tomou banho. Vestiu bermuda azul e camiseta branca, ambas de algodão. Jantou frango frito, com arroz e salada, no restaurante “Alvix”, seu preferido, localizado ali perto. Ingeriu um copo de suco de laranja como acompanhamento. De volta ao apartamento, ligou seu notebook e navegou na internet. Leu os e-mails recebidos, assistiu alguns vídeos engraçados e jogou freecell. Às oito e meia tomou outro banho e vestiu bermuda jeans e camisa verde-escura, meia-manga, esta de algodão. Saiu de casa às 21 horas em ponto. Levou meia hora para chegar até a res