Capítulo 2

      Corri para fora de casa com a calça mais confortável que encontrei, sabia que se demorasse um pouco mais os rapazes deixariam-me para trás. 

        Fomos acordados muito cedo pela minha mãe, que mantinha na mente dela que atrasos não são toleráveis ainda mais quando o caso é saúde. É mesmo isso, mamã, é por causa disso que chego no lugar combinado uma hora antes do combinado e a pessoa chega lá uma hora depois do combinado. 

       — Si... — o Kaine abriu os braços assim que viu-me a chegar, aproximei-me dele e  abracei-o com toda a força que eu poderia usar. Ele esteve longe daqui por uns tempos, decidiu ir acampar com os amigos e ficou lá por duas semanas, incontactável.  — Duas semanas sem a tua confusão e a minha mente está limpa —  apoiou-se no carro e sorriu, o sorriso desafiador de sempre, puro joguinho dele. 

       Kaine era o irmão mais velho de Edward, sendo o meu irmão mais velho também desde o dia em que eu adotei o Edward, quando tinhamos oito anos, a tia Monique dizia que ele era o meu animal de estimação porque desde que eu o adotei nunca mais nos largamos.

         Eles dois tinham uma diferença não tão grande, apenas o cabelo deles e a idade, o cabelo do Edward era mais claro, em um tom de castanho muito claro enquanto que o do Kaine é preto, dois anos era uma diferença de idade meio indiferente para os dois. 

       — A minha confusão é o que mais tens de precioso — estava convencida porque sabia daquilo, ninguém podia dizer o contrário. Juntei as minhas mãos e fiz uma vênia desajeitada, com gargalhadas no meio dela. 

        — Eu tive saudades tuas, mas voltaria na primeira oportunidade — fechou os olhos e sorriu ainda  mais, como se estivesse a apreciar alguma memória. — E pelos vistos estas duas semanas fora não te fizeram mudar de visual, essas calças são de vestir ou de decorar o quarto?

 

       Era sempre assim, gozavam com as minhas roupas coloridas e repletas de desenhos como a calça que estava no meu corpo, que tinha montes de borboletas de cores e estilos diferentes, com as barras laterais da calça em lilás, a parte da frente em rosa e a traseira em laranja. Se eu estivesse com uma calça colorida era motivo de troça e quando estava com calças simples, apenas jeans sem desenhos nem detalhes, perguntavam se eu estava louca ou não tinha nada mais para comprar. Bando de desmiolados e indecisos. 

          — Eu tive saudades tuas, não da tua cabeça sem miolos,  disso não — estiquei-me e dei um beijo no lado esquerdo da cabeça dele.

        — Kayline, ainda bem que vêm connosco,  não vejo a hora de livrar-me desses médicos — a tia Monique, a mãe de Edward,  era a única que tratava-me pelo segundo nome com muita frequência, as outras pessoas tinham muita dificuldade ao falar o nome e ele foi ignorado, desilusão.

       O cabelo castanho claro, como o do Edward, estava preso com um gancho enorme em forma folha, com brilho e pedras brilhantes, falsas ainda assim, pedras brilhantes. Só faltava os lábios rasgarem até as  orelhas de tanto que ela sorria, apenas atentos saberiam que ela estava preocupada. 

        Eu ouvi a voz do Kaine,  baixinho quase  um sussurro, a dizer para a mãe que tudo iria ficar bem e ela não precisaria ficar preocupada.                                                                                                                                                                     

        Entramos todos para o carro, o Kaine no lugar do motorista, o carro era dele afinal de contas, o que sobrou do pai para ele, tia Monique estava sentada no banco ao lado, e nós os quatro, apertados e a tentar estar o mais confortáveis possível na parte de trás. 

        — Desse jeito vamos chegar ao hospital com uma dor de matar — o carro não era grande, tinha um espaço para três pessoas na parte de trás, éramos quatro. 

        — Nem é para tanto — o Kaine ajustou o retrovisor central e ligou o rádio sem mesmo colocar o carro para andar. — Até vou escolher uma música aqui para não ser obrigado a ouvir a vossa voz. 

         Connection dos OneRepublic começou a tocar na rádio e ecoou pelo carro todo sendo abafada pela nossa voz, um grupo de cantores desafinados que sabiam a letra, mas só dava vontade de tapar os ouvidos. 

          — Vocês são tão barulhentos — a tia Monique reclamava e mexia o corpo ao ritmo da música, as gargalhadas soaram muito alto e continuamos a cantar. 

       Não levou muito tempo para chegarmos ao hospital. O letreiro com “ Hospital Marigold” escrito em ponto grande, estava logo a frente e tão visível. O carro parou e descemos em direção a entrada do hospital. 

           Estávamos  todos na sala de espera a aguardar  que o Edward fosse chamado. A sobrancelha esquerda dele  começou a tremer e batia o pé direito, freneticamente, no chão, sinais claros que ele estava ansioso. 

        — Vai ficar tudo bem — apoiei os meus cotovelos nas pernas dele e olhei nos olhos castanhos dele, que refletiam preocupação e talvez medo. 

        — Não sabemos isso, nenhum médico pede para fazer exames agressivos se não desconfia de algo — não entendi o que ele quis dizer com aquilo, não fazia ideia de como funcionava os exames que ele fez. — Eu investiguei, a biópsia, que foi o exame que eu fiz é para ter certeza de uma suspeita de cancro, algo que o raio-x pode não detetar com tanta precisão, ele só precisa da confirmação.

       — Ei, ei, ei, nada de pessimismo, somos os reis das soluções mal formuladas e que funcionam sempre — um título que nunca iria existir, mas que para nós fazia a maior diferença. — Vamos dar um jeito, seja qual for o resultado — tentava não pensar na possibilidade “ cancro” e manter-me aberta a outros resultados, não que ter outra doença fosse uma hipótese. 

           Ele pousou a mão na minha cabeça e balançou ligeiramente abanando a minha cabeça para frente e para trás. 

         — O que eu faria sem ti, resmungona?

        — Dormirias tranquilamente sem eu pular em ti, comerias em paz porque os meus dedos pequeninos e colheres não estariam a mexer toda hora no teu prato, serias um cozinheiro maravilhoso — o Arthur olhou para mim com os olhos arregalados e o nariz inclinado para o lado, eu não sabia como ele conseguia fazer aquilo, quando eu tentava não funcionava.

          — Não precisarias saber nada sobre menstruação, namorados, rapazes assediadores, batons de diferentes cores e texturas, sutiãs, melhores cuecas para cada ocasião, primeira vez, braids malucas... queres mesmo que eu continue a enumerar as coisas inúteis que aprendemos até agora por termos uma Siana? — Não era tão mal conviver comigo, apenas gostava de contar as coisas para os meus amigos, não tive a oportunidade de ter uma amiga, quando tentava criar uma amizade com raparigas, um deles namorava com ela e depois que terminavam, a amizade também desaparecia, como se nunca tivesse existido.

        — Nem precisas, já sei dessas coisas — olharam um para o outro e caíram na gargalhada. 

        — Assim vocês já sabem como as vossas esposas irão funcionar e vão saber como agir, o que fazer e o que não fazer, meus bebês —  joguei o meu corpo para trás até sentir a cadeira contra as minhas costas, cruzei as pernas o máximo que consegui e dei o meu melhor sorriso, o perfeito para uma cena de novela. — Não agradeçam muito. 

       — Edward Cross.

        — Nós... — o Pierce levantou mais depressa que qualquer um e gritou, como se estivesse em algum espaço aberto e seguro para gritos, depois que o nome do Edward foi dito. 

          — Michel — a bolsa verde que estava na mão da tia Monique foi parar ao ombro esquerdo do Pierce e tudo o que ouvimos depois foi o grito de dor dele. — Sim, doutor.

       Michel era o seu último nome, perto da tia Monique nos controlamos para tratar o Pierce pelo sobrenome porque o nome do pai do Edward era o mesmo e quando falamos o nome dele perto dela as lágrimas dão a graça da sua existência, as pernas ficam trêmulas e quase desmaia. 

         Ele pediu desculpas baixinho e todos seguimos o médico para a sala, que ficou espantado pela quantidade de pessoas e quando pediu para alguns ficarem de fora recebeu uma palestra sobre família dada por nada mais nada menos que o Pierce.

       — Edward, senta-te aqui, os outros podem aconchegar-se do jeito que preferirem — o médico indicou a cama hospitalar para ele, estava coberta com um papel branco que cobria todos os espaços. Sentei na mesma cama, mas perto dos pés dele, a tia Monique na única cadeira para além da do médico e os outros ficaram em pé. — Primeiro, eu gostaria de saber como estás? Tiveste algum efeito colateral depois que fizemos o exame? 

         — Se tivesse algum efeito colateral teria vindo para cá antes — depois de olhares intimidadores vindos de ninguém mais que a mãe, suspirou e respondeu as perguntas que foram feitas. — Eu estou bem e não, não tive nenhum efeito colateral. 

        — Bom, acho que agora posso seguir — aproximou-se de Edward com a prancheta castanha nas mãos, ajeitou os óculos invisíveis e olhou para as outras pessoas na sala. — Preciso que escutem com atenção e cuidado.

          — Fala logo que aqui todos somos um bando de ansiosos, vamos ter um ataque — a incoveniência e o Pierce, melhores amigos para toda a vida e inimigos dos olhares de repreensão. 

        — Eu nã...

       — Calados — a única voz que alguém ali obedecia tomou as rédeas da situação. A tia Monique tinha o maior dos problemas naquele momento, impaciência.  — Pode continuar, doutor. 

        — Os exames que eu fiz foram para confirmar uma das suspeitas que eu tinha sobre os problemas que o Edward vem a ter e  esses resultados, infelizmente, deram positivo para a minha suspeita.

       — E qual é essa suspeita que foi confir... 

       — Michel — o Pierce interrompeu o médico para ser repreendido pela tia Monique como era sempre, a única que não o repreendia era a mãe dele, mas isso é porque ela faz a mesma coisa. 

          — Edward, lamento dizer que...  — abraçou a prancheta com o braço esquerdo, olhou para o Edward, que estava com a cabeça no apoio da cama e com o olhar distante, suspirou, os ombros despencaram, a boca ficou entreaberta e finalmente falou. — ...tens cancro nos pulmões. 

          E aconteceu o que ele achava que iria acontecer, a confirmação do cancro, como aquilo poderia ser possível? Eu tentei ser otimista e fazer ele apagar aquela opção da cabeça, e em nada resultou. 

        Peguei a mão dele e apertei, ele precisava saber que eu estaria aqui para tudo e que ele ficaria melhor, não curado porque eu não tinha como fazer aquilo, mas ainda assim, bem. 

        — O cancro está em um estágio não muito avançado e por isso precisamos começar o tratamento o quanto antes, para impedir que avance, claro que vai depender de vocês — largou a bomba e ainda espera que algum de nós reaja. 

       O Pierce estava com as costas apoiadas na parede e olhava fixamente para a janela que estava a frente, o Kaine tinha as sobrancelhas enrugadas e o lábio contraído, estava mais tenso que nunca, o Arthur olhava para as costas do médico a fazer caretas esquisitas e a tia Monique, ela estava... apagada. A cabeça baixa, a bolsa que foi parar ao chão continuava lá, parte do cabelo cobriu o seu rosto e uma das mãos estava na cintura, a pressionar como se quisesse esconder alguma coisa. 

        — Que tipo de tratamentos seriam esses? — O Kaine tomou o controle de tudo e questionou o médico sobre o que ele disse. 

        — Em uma primeira fase, uma cirurgia, para a remoção de tecidos cancerígenos — senti a minha mão a ser apertada e olhei para Edward, virou a cabeça para a parede cinza e com a mão livre, que era a direita, tapou o ouvido esquerdo.

        — Em uma primeira fase? Quantas fases há? — A pergunta que não queria calar, quantas fases seriam. 

        — As fases dependem muito de como o paciente irá reagir, em uma parte dos casos a cirurgia costuma ser o suficiente para prolongar a vida dos pacientes. 

       — Ficaria melhor se tivesse dito na maior parte dos casos — o nervosismo do Pierce se notava pela voz trêmula e por ele não ter falado alto. 

       — Vou deixar-vos sozinhos, volto dentro de alguns minutos para saber qual foi a vossa decisão — ele saiu levando junto a sua tão amada parceira de trabalho, a prancheta. 

         O que eu temia de verdade era o Edward não aceitar o tratamento. Desde que o pai morreu em uma mesa de cirurgia que o Edward tem medo de passar por uma, tem medo que corra tudo mal e a vida dele acabe aí, sem ninguém que conhece do lado dele. 

        — Mãe, eu não quero a cirurgia — as lágrimas desciam do rosto dele desesperadamente, não sabia o que ele sentia, com certeza deveria ser difícil ser diagnosticado com cancro e ainda ter que passar por um tratamento que já te deixou traumatizado. 

        — Ai, meu amor, vai ter que ser  — ela aproximou-se muito rápido e sentou bem ao lado de Edward e segurou a mão que antes era eu a segurar. 

          Saímos da sala e deixamos a tia Monique com o Edward, apenas os dois, para conversarem sobre o que iria acontecer dali para frente. 

          — Cancro — as nossas cabeças estavam em posições tão diferentes e todos pareciamos partilhar da mesma incredulidade. 

       — É, parece muito real — foi tudo o que o Arthur conseguiu responder antes de vermos mãe e filho a passarem pela porta, seguidos de um médico que tornou o dia difícil de suportar. 

         — Levantem, vamos embora — os rostos vermelhos dos dois deixavam bem claro que seria melhor obedecer que fazer perguntas sobre a decisão deles. 

        O Edward agarrou a minha camisola para  manter-me perto dele e caminhamos juntos pelo hospital, ele com uma mão a agarrar a minha camisola por trás e a outra a agarrar a minha mão. 

          O silêncio dentro do carro era retirado somente quando algum carro passava pelo nosso. Ninguém queria falar sobre nada, nem música queríamos ouvir e o Pierce engoliu a incoveniência por momentos. Chegamos em casa tão rápido que nem reparei. 

        — Podes dormir comigo hoje? Não quero ficar sozinho — a cara chorona do Edward era o suficiente para convencer-me  a dormir na casa dele, ele não precisava pedir duas vezes para eu aceitar.

        — Vou só avisar a mamã — ele assentiu e eu segui para a minha casa. 

         Entrei para a minha casa a correr e procurei a minha mãe por todos os lados. A casa não era tão grande e morávamos as duas lá, o meu pai desapareceu muito antes de eu nascer segundo a minha mãe. 

          — Vou dormir na casa da tia Monique hoje... — o bom de ter uma amizade que até os pais conhecem-se é que podemos dormir na casa do outro sem muito problema. 

          — Tudo bem, mas Siana, como foi a consulta? O que o médico disse? — Dona Helen limpou as mãos no avental verde lima que estava no seu corpo e virou-se para mim. 

        — Ele tem cancro, cancro nos pulmões, é isso que ele tem —  a minha mãe arregalou os olhous, pressionou os lábios e pôs a mão direita na cabeça. Estava espantada, mas adivinha só... quem não ficou espantado?

         — Meu Deus! Como está a Monique com isso? — A mão que estava na cabeça foi parar ao peito e a respiração dela acelerou.

 

        — Desolada, deprimida, as opções não são tão bonitas — eu tentei sorrir, mas acabou que saiu uma careta ao invés de um sorriso

        — Vai, apoio é o que ele mais precisa agora — dei-lhe um beijo na bochecha e um abraço para agradecer por ela se importar. 

        O meu otimismo foi pela descarga abaixo a uma velocidade de 500km/s, tentava ter pensamentos positivos e acreditar que tudo ficaria bem,as coisas não poderiam piorar do dia para a noite. 

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