Traída
Traída
Por: Priscilla Tôrres
Traição

- Sempre fui uma menina normal. Quer dizer, quando eu era mais nova, eu gostava de brincar de barbie. Nessas histórias de barbie, eu sempre tinha um namorado, noivo ou marido, o Ken. Ele sempre foi um gentleman. Carinhoso, amoroso, fiel. Fiel... é. Fiel... fiel de verdade – disse Melissa, deitada no divã, com os longos cabelos cor de ouro espalhados por todo ele. – A vida era fácil. Era uma eterna lua de mel. Mas tem uma hora que a história muda. A eterna lua de mel acaba. Eu tinha mil barbies. E, hora ou outra, uma delas também se casava com o Ken para ter outra eterna lua de mel, até que perdia a graça...

- E você acha que isso pode ser aplicado a você? Digo, hoje em dia... – disse a psicóloga.

- Não. Quer dizer, acho que talvez. Ou não? – pensou em voz alta. – Quem sabe...

- Só você saberá... E você tinha quantos Ken?

- Um só.

- E era o mesmo Ken que se casava com todas as barbies.

- Era.

- Isso não foi uma pergunta de minha parte. É algo para você pensar... – a doutora respirou fundo, sorrindo. – Bom, acabamos por hoje. Nos vemos na semana que vem?

- Claro. Muito obrigada.

Elas se despediram. Fora do prédio, caminhando pelas ruas movimentadas, ninguém sabia o que se passava pela mente de Melissa. Ela se misturou entre as pessoas normais e agora estava muito parecida com elas: andando de um lado para o outro, apressadamente, nas ruas de Manhattan.

Melissa entrou em um táxi amarelo e seguiu para o trabalho. Não se demorou muito na cafeteria e subiu no arranha-céu onde trabalhava como secretária de uma grande agência de publicidade. Ela não era só uma secretária como as outras da empresa, era a secretária do diretor-chefe da companhia.

Melissa ia caminhando por entre os funcionários da empresa, usava uma saia longuete discreta preta e uma blusa branca social com corte reto, carregando o café duplo recém-comprado junto com donuts. Não, aquela refeição não combinava com o corpo esbelto da mulher, mesmo porque a comida não era para ela: entrou na sala do chefe e depositou, sobre a escrivaninha limpa e despojada, o café da manhã do homem que mandava ali.

Cada um via o senhor Kernel de uma forma diferente. Os homens que trabalhavam na empresa viam-no como um grande profissional muito respeitado. As moças da empresa o consideravam muito bonito e elegante, o que, de fato, era verdade. Boatos corriam e elas se matavam para poder tê-lo em suas camas, mesmo sabendo que ele era casado. Porém, por trás daqueles olhos castanhos intensos, havia um traidor. O senhor Kernel não era somente casado...

Apenas Melissa sabia: o senhor Kernel tinha duas namoradas, uma esposa e uma noiva. A noiva era a moça que foi mais enrolada por ele, pois os dois namoravam antes mesmo de Kernel se casar com Eveline, a esposa, que vivia na Alemanha. Os dois só se encontravam em ocasiões raras, como por exemplo nas datas comemorativas do casal ou quando havia algum problema do casamento para ser resolvido. Uma das namoradas do senhor Kernel era uma garota que havia acabado de completar dezoito anos e a outra namorada era a ex-melhor amiga de infância de Melissa.

Sigilo profissional, era o que ele sempre pedia para a sua secretária, mas, naquele caso, Melissa não pôde evitar: era sua amiga de infância que estava na reta do garanhão Kernel. Mas tudo começou de outro jeito, em outro dia, há mais ou menos três anos atrás. A confusão foi muito grande, talvez nem valha a pena contar todos os detalhes. Resumindo: Katherine, ou Kate para os íntimos, um dia foi numa festa de Melissa e caiu na lábia do chefão. Resumindo bastante.

Naquela manhã, o senhor Kernel ainda não chegara da tradicional reunião matinal de sexta-feira com o pessoal do orfanato que ele ajudava. Na perspectiva de Melissa, ajudar esse orfanato era a única coisa boa que aquele cara fazia. Ou pelo menos era o que Melissa julgava como sendo o melhor dele. Era só isso que ela sabia que ele fazia de bom e de verdade, com o coração. Não era como nas outras empresas, em que a caridade era só uma fachada para pagar menos impostos. Mesmo assim, ele reclamava daquilo frequentemente, num tom de voz que Melissa não conseguia distinguir se era uma reclamação real ou se era brincadeira: condenava os pobres órfãos dizendo que eles ainda iam acabar com o dinheiro dele!

A empresa onde Melissa trabalhava chamava-se Kernel Publicidade. Não era muito grande, tinha cerca de sessenta e nove empregados e não possuía filiais. Ficava no topo de um arranha-céu em Manhattan. Melissa conseguiu aquele emprego por indicação de seu ex-namorado. Bom, na época, eles ainda eram namorados. Porém, ela descobriu as traições. Não as traições de Kernel, mas sim as de seu ex, Patrick, que saía à noite para festas de "negócios" deixando-a em outros jantares de negócios com o senhor Kernel, que por sua vez tinha a missão de não permitir que Melissa saísse da linha.

Quando Melissa descobriu que, na verdade, quem saía da linha era Patrick, ela terminou aquele relacionamento imediatamente. Tinha sido um relacionamento longo de doze anos, mas quando ela descobriu a traição, caiu em profundo desespero.

Para Melissa, assim como para a maioria das mulheres no mundo, traição não tinha perdão. Não importava o quanto ela gostasse da pessoa, ela simplesmente não aceitava aquilo de jeito nenhum. Desta forma, Melissa terminou com o homem que ela julgava ser seu par perfeito, seu amor para toda a vida. Obviamente, o sofrimento do término veio e se instalou de tal forma que já havia passado seis meses desde que terminaram e nada de Melissa melhorar seu humor e sua tristeza. Ela até começou um tratamento psicológico, mas não estava adiantando muito. A melhor terapia para Melissa, atualmente, era encher a cara até tarde da noite, fato este que o fígado dela não estava agradecendo.

- Senhorita Sanders, por favor, venha para a minha sala, preciso discutir o projeto das empresas clientes do sul do estado – o senhor Kernel disse, passando apressado pela recepção e entrando na sala da direção da Kernel Publicidade.

- Certo – ela disse, levantando o olhar para aquele sujeito que ela considerava o maior traidor de todos os tempos.

Enquanto discutiam sobre assuntos do trabalho, como horários de agenda e recados a passar, Melissa ficava pensando porque motivo o senhor Kernel havia mantido o emprego dela, mesmo depois do seu rompimento com Patrick, que era amigo dele e havia lhe indicado para a vaga. Porém, ela não tinha coragem de perguntar. Nunca teve e nunca perguntou, nem ia perguntar.

Tinha medo da resposta. Tinha medo de ser demitida. Ou medo do senhor Kernel arrancar a própria camisa e dizer que sempre quis ter um romance com sua secretária, pulando em cima dela, ou algo bizarro do tipo. Na verdade, era mais fácil acontecer de Kernel simplesmente falar que, se ela não estivesse gostando do trabalho, poderia ir embora. Enfim, ela tinha medo porque precisava da grana para pagar suas contas e dívidas aos montes que fizera desde que mudara para Nova York, há anos.

Aquele dia passou rápido e, no final do expediente, Melissa foi passar as últimas notícias do dia para seu chefe. Ele a olhou de cima à baixo e disse, batendo entre os dedos a Montblanc novinha que ganhara da esposa, a alemã:

- Senhorita Melissa, você está mais magra?

Melissa corou. Realmente, depois que terminou com Patrick, perdera bastante peso. Gaguejou:

- Q-que tipo de pergunta é essa?

- É que seu aniversário está chegando. Eu pensei em comprar um vestido para você. Essas... essas "coisas" que você usa nos eventos formais da empresa estão me fazendo passar vexame – ele riu, largamente.

Melissa sentiu que aquele comentário era um absurdo, mesmo que parecesse brincadeira. Ela sempre ia muito bem vestida às reuniões, bem alinhada. Talvez se ele aumentasse o salário dela, ela poderia usar Dior todos os dias. Ficou com muita vontade de responder isso, mas engoliu em seco e disse:

- Ah, tudo bem. Bom... eu posso te passar minhas medidas qualquer dia desses – respondeu, fingindo não perceber o insulto do chefe.

- Passe neste endereço. Lá eles irão medir em você o vestido que comprei. Aliás, feliz aniversário – ele entregou a ela um cartão envolvido num laço e lhe apertou a mão.

- Ok, obrigada. Não precisava se incomodar – disse a loira, em forma de agradecimento. Abriu o envelope e ficou surpresa com o que havia dentro.

- Olha, não fique distante de mim porque as coisas entre você e Patrick não acabaram bem. Não precisa se preocupar, você não vai perder seu emprego por causa disso. Não é fácil encontrar secretárias tão competentes quanto você. Você fez por merecer essa vaga, senão não estaria nela há três anos!

- Ah, obrigada. Sabe, eu nem estava lembrando disso! Digo, eu nem estava lembrando do Patrick! – mentiu. Fingiu rir e, casualmente, bateu a mão na lateral da coxa direita, dando de ombros. – Enfim, boa noite. Bom final de semana. Nos vemos na segunda-feira...

- Tchau! Obrigada por hoje, tenha um bom final de semana! – disse Kernel, voltando-se para os projetos publicitários que analisava com atenção em seu notebook.

Melissa saiu da sala do senhor Kernel e foi até o banheiro. Ela entrou numa das cabines, sentou-se no vaso sanitário e começou a chorar descontroladamente. Havia uma mistura de sentimentos indecisos ali. Uma outra garota do escritório, estagiária, entrou no banheiro e pegou Melissa chorando.

- Ei... o que foi? – perguntou, a voz baixa e calma, fones de ouvido dependurados nos ombros com um barulho amedrontador e alto.

- Nada!

- Melissa! O que o chefe fez com você? O que é isso... oh meu Deus! – exclamou a garota, pegando das mãos de Melissa o cartão de uma das lojas mais badaladas de Manhattan e vendo que era um vale-vestido.

- E-eu sei! E isso não é demais!? – disse Melissa, horrível, com o rosto completamente vermelho e coberto por lágrimas.

- Eu também choraria! – riu a garota.

- Não é por isso que estou chorando, Megan! –irritou-se. – Ele disse que eu vou continuar com meu emprego, mesmo eu tendo terminado com Patrick, que me indicou para a vaga!

- Uau! Isso é ótimo! Quer dizer, depois de tudo o que aconteceu, Patrick e o senhor Kernel são grandes amigos... então, isso não é bom, Melissa? – disse Megan. Era fato que todos na empresa sabiam da situação embaraçosa de Melissa, que foi traída e tudo o mais.

- Não! Não é disso que eu estou falando! Ele mencionou Patrick! E isso... isso me dá raiva! Eu ainda estou tocada! – ela apontava o próprio peito e gesticulava indicando como seu sofrimento lhe pesava o coração.

- Eu sei! Mas uma hora você tem que sair dessa! – disse Megan, sorrindo e estendendo a mão para Melissa, retirando-a da cabine do vaso sanitário.

Megan posicionou Melissa em frente ao grande espelho do banheiro e segurou os cabelos louros da secretária, lavando-lhe o rosto.

- Acalme-se. Fique bem bonita, pois hoje é sexta-feira! Você vai até aquele bar e vai encontrar o cara da sua vida. Ou pelo menos da sua noite! Quer dizer, você não precisa se amarrar a homem nenhum agora e...

- Megan! – disse Melissa, com o rosto enfiado debaixo da torneira durante todo o tempo em que Megan tagarelava. – Posso levantar?

- Oh, me desculpe – Megan riu e levantou a cabeça da amiga, ainda lhe segurando os cabelos. Ela pegou papel toalha e secou o rosto de Melissa. – Agora, maquie-se e vá curtir sua noite.

- Eu não estou no clima... – suspirou Melissa.

- Não tem problema. Vá assim mesmo. O clima pega você – Megan sorriu e foi dando passos para trás, colocando os fones no ouvido e começando a gritar à medida que ficava surda pelo som dos fones entrando em sua mente. – A noite te pega, gata! Até segunda!

Megan virou-se e saiu cantando uma melodia esquisita, meio fúnebre.

- Estagiários... – suspirou Melissa, mas um leve sorriso brincou em seus lábios.

A loira encarou-se no espelho. Seus olhos claros ainda estavam vermelhos por causa das lágrimas, mas nada que uma maquiagem não resolvesse. Ela abriu a bolsa e pegou um lápis de olho preto. E assim, começava a transformação. Não que a maquiagem não fizesse nada mais que enaltecer a beleza natural de Melissa, mas ela ficava espetacular e, definitivamente, ela amava se olhar no espelho e estar espetacular.

Sobre os altos saltos, Melissa atravessou correndo a rua movimentada e deu a volta no quarteirão. Logo ela estava em um pub, no qual, fielmente, bebia todo dia depois do trabalho. A entrada do bar estava movimentada, havia mesinhas do lado de fora para fumantes, com vasos de pobres florezinhas que tentavam absorver um pouco de oxigênio em meio a tanta fumaça.

Melissa entrou e, como era uma beldade, vários homens olharam para ela como de costume. Ela podia escolher qualquer um deles naquela noite, ela sabia disso, como em todas as noites que ela esteve ali. Sentou-se ao balcão e pediu o de sempre. Um mojito. E começou a beber. Logo um homem sentou-se ao lado dela, dando em cima de Melissa que, já embriagada, sorriu e disse:

- Coloque sua aliança de volta, mané – segurou a mão do sujeito, que claramente havia retirado a aliança por causa da marca de falta de sol sob o anel. Levantou-se e levantou o homem junto com ela, ergueu a mão dele lá no alto, gritando – Mulheres, este homem tentou trair!

Algumas pessoas olharam para aquela cena bizarra, mas ninguém entendeu muito bem o que estava acontecendo. Melissa olhou amargamente para o sujeito, que abaixou seu braço, irritado, e saiu de perto dela.

- Termine com sua namorada imediatamente, se ela não te faz feliz. Procure outra trouxa, pois comigo você não vai conseguir nada, mané!

E assim seguiu a vida de Melissa. A diversão dela era dar o fora em todos os homens que a cortejavam e humilhar os homens compromissados que chegavam nela. Mesmo se ela não tivesse muita certeza se o sujeito era compromissado, ela o humilhava assim mesmo. O cara fechava a conta no bar e ia embora, na mesma hora! Até que um dia, uma garçonete chamada Phoebe, que sempre atendeu Melissa com muita educação, disse:

- Senhorita Melissa, infelizmente o dono do bar não a quer mais aqui. A senhorita está espantando os clientes com seu comportamento... peculiar...

Aquele foi o pior dia de Melissa no pub. Ela foi expulsa de um bar por ter exposto uma verdade: a traição que acontecia nas noites de Manhattan, bem debaixo do nariz de cidadãos honestos. Ia trocar de bar, porém, quando saiu do pub, enchera tanto a cara que acabou numa esquina vomitando ao lado de um morador de rua.

- Vê se não espirra em mim, menina. Faz muito tempo que eu não tomo um banho decente, não quero piorar meu cheiro - ele riu.

- Olha, aqui... – disse Melissa, totalmente bêbada, limpando a boca com as costas das mãos, olhando para o sujeito e compadecendo-se de sua situação. – Eu tenho uma grana pra você ficar em algum albergue essa noite. Mas não é pra gastar com droga, entendeu?

- Eu não uso drogas. As coisas que eu vejo com esses olhos já me fazem viajar.

- Tome aqui – disse a loira, e entregou duzentos dólares ao sujeito, como um pedido de desculpas por tê-lo incomodado.

- Opa, não estou te assaltando!

- Eu sei. Boa noite.

- Boa noite. Obrigado!

Melissa pegou qualquer táxi que passou e não soube como chegou em casa, só sabia que havia chorado quase o mesmo tanto que no dia em que descobrira a traição de Patrick. Não queria ter o desprazer de vê-lo novamente nunca mais!

Na segunda-feira, no trabalho, a ex-melhor amiga de Melissa entrou na sala da direção da Kernel Publicidade. Ela sabia exatamente o que eles estavam fazendo lá dentro, então a secretária, subitamente, começou a chorar desesperada. Ela chorou sem pudor, pois estava sozinha na recepção da sala do diretor-chefe após o expediente ter terminado. Só de pensar no que os dois estavam fazendo ali dentro...!

Ela nem mesmo conseguia explicar o que estava sentindo. E o pior de tudo é que o horário de serviço dela havia acabado fazia horas e o senhor Kernel não a havia liberado ainda. Parecia que ele tinha feito isso de propósito para que Melissa sofresse mais um pouco. O telefone tocou e ela atendeu, com a voz chorosa.

- Mel? - disse uma voz preocupada, era a voz de Kernel.

- Senhor Kernel!? Me desculpe, eu... eu...!

- Não tem problema, reparei que você estava esquisita hoje. Por favor, traga-nos uma jarra de água bem gelada.

- Sim senhor.

Melissa calçou os sapatos de salto baixo, que tirara para descansar os pés, e foi em direção à copa pessoal do chefe buscar a tal da água. Claro, horas e horas ininterruptas de sexo necessitavam de muita água. Ela levou a jarra para eles, mas não sem antes se morder de vontade de colocar veneno naquela merda de água!

Quando a secretária entrou na sala do chefe, viu que Katherine estava sentada numa poltrona, vestida e agindo normalmente, como se nada tivesse acontecendo ali dentro nas últimas horas, exceto pelo rosto dos dois, que estavam corados além da conta. Kate estava com as pernas cruzadas tão casualmente que Melissa teve vontade de jogar aquela jarra bem na cabeça de Kate.

- Oi Melissa – disse Kate, pegando e estendendo um copo vazio para que Melissa servisse água.

- Oi Katherine, como vão os negócios? – disse, ironicamente, servindo-a.

Kernel franziu o cenho, com raiva do comportamento de sua secretária.

- Ah, estão ótimos. Acabamos de fechar um novo contrato. Agora minhas visitas serão mais frequentes aqui – ela sorriu e bebeu a água.

Kernel não disse nenhuma palavra para Melissa sobre seu comportamento. Sabia que aquela troca de agulhadas fora iniciada por sua secretária. Apenas aguardou que Melissa o servisse e bebeu seu copo de água.

- Melissa, assim que a senhorita Katherine sair, venha até minha sala.

- Sim, senhor Kernel. Com licença.

Melissa saiu e sentou-se em sua cadeira como de costume. Conectou-se ao F******k. Havia vários amigos online, inclusive Patrick. Ela simplesmente não conseguira desfazer a amizade com o perfil dele e ficava sofrendo vendo as fotos do cara em festas, com outras mulheres, cada hora com uma diferente. Era sufocante, mas mesmo assim ela não conseguia parar de olhar. Não havia explicação para aquilo, talvez falta de coragem, talvez automutilação, ela não sabia, mas abordaria isso na terapia.

Depois de checar as fotos novas de Patrick, Melissa ficou olhando sua timeline cheia de mensagens de bom dia, mensagens gospel e de casais recitando o eterno amor que sentiam um pelo outro. Ela achava somente graça naquilo, pois é claro que um deles traía o outro. A loira estava tão fissurada nessa história de traição que fazia apostas internas de quanto tempo tal casal ia durar. Geralmente ela acertava em metade das vezes.

De repente, aconteceu o que ela menos esperava. Apareceu uma mensagem de "oi", enviada por Patrick. Um "oi" seco, sem letra maiúscula no início da palavra, sem pontuação para expressar algo. Melissa levou meia hora sofrida pensando no que responderia, quando teve a melhor ideia e digitou de volta "oi". Era o mesmo "oi" espelhado, sem significado, apenas "oi" e nada mais, sem expressão.

Abaixo de sua mensagem, ela viu que ele visualizou o texto imediatamente. Ficou ansiosa aguardando resposta, querendo saber como ele reagiria ao tratá-lo da mesma maneira que ele a tratara na mensagem. Foi quando Kate saiu da sala do senhor Kernel e direcionou-se até a mesa de Melissa.

- Olha, Mel... sei que éramos melhores amigas desde os tempos que morávamos com nossos pais em Carmel, mas você precisa entender que eu e Adam não estamos fazendo nada de errado. Você só tem que ter uma mudança de paradigma e aceitar certas coisas.

- Certas coisas? Certas coisas como traição, Kate? – Melissa respondeu, irritada por ouvir a amiga de infância falar o primeiro nome do senhor Kernel, tão casualmente. – Lembra na escola quando Kevin te traiu com a líder de torcida que nem lembro o nome e você colocou uma bomba no escaninho dos dois?

Calmamente, Kate colocou as mãos sobre a mesa e aproximou-se de Melissa, falando baixinho:

- Quando é consentido, Kate, não é traição. Eu sinto falta de você. Até a próxima.

- Como assim? Consentido? – perguntou Melissa, mas Kate já tinha se virado e ido embora, rebolando, acenando um "tchau" de costas para a ex-amiga, com a mão para o alto.

Melissa ficou mais de um minuto pensando em várias maneiras de matar Kate quando o telefone tocou. Era o senhor Kernel.

- Esqueceu que pedi para você vir quando a Kate saísse?

- Desculpe, senhor Kernel. Estou indo.

Melissa levantou rapidamente, irritada pelo fato do senhor Kernel chamar Kate de Kate. Teve um vislumbre de que Patrick não tinha respondido no F******k e seguiu para a sala do chefe.

- Senhor Kernel?

- Sente-se – ele disse, com a voz estranha.

Melissa obedeceu a ordem de seu chefe.

- Da próxima vez que você der agulhadas em Kate você não vai mais trabalhar aqui, entendeu? – ele disse, devagar e um pouco amargo.

- O quê!? – ela disse, surpresa, e seus olhos marejaram. Ele falou aquilo tão de repente que ela sentira como se tivesse levado um soco no estômago.

- E é melhor você parar de chorar o tempo todo, os clientes estão começando a perguntar se eu te trato mal.

Melissa, agora sim, começou a chorar. E o senhor Kernel, agora sim, estava a tratando mal.

- Mas, senhor Kernel...! - ela deu um soluço – Outro dia mesmo você elogiou meu trabalho!

- Eu elogio o que deve ser elogiado e critico o que deve ser criticado. Eu não estou fazendo nada de errado – frisou – ao fazer sexo com Kate aqui, essa empresa é minha.

- Mas o senhor é casado e tem uma noiva e outra namorada! – gritou Melissa, pasma, achando aquilo um absurdo e, quando percebeu que gritou, arregalou os olhos e parou de chorar imediatamente, assustada. Agora sim, ela seria demitida por ter gritado com ele coisas sobre sua vida pessoal. – Me desculpe.

- Não precisa se desculpar, a empresa está vazia faz horas, não tem ninguém pra ouvir o que você disse. Sim, eu tenho uma esposa, uma noiva e duas namoradas, qual é o problema? – perguntou Kernel, com a voz calma.

- Qual é o problema? Qual é o maldito problema? – Melissa fez um gesto como quem acha aquilo um absurdo. Agora que começara a falar os pensamentos que estava guardando só para si por bastante tempo, não iria parar aquela discussão. – Onde é que esse mundo vai parar, me explica? Porque para mim isso se chama traição! – disse a última palavra silabicamente. – Eu dediquei doze anos da minha vida ao seu amigo Patrick e ele me traiu!

- Ele te traía porque sabia que você não ia aguentar essa vida.

- Que vida!?

- Melissa, em que mundo você vive? Na idade média? – disse Kernel, que era no mínimo quinze anos mais velho que Melissa.

- O quê!?

- Nunca ouviu falar em relacionamento aberto?

O coração de Melissa parou por um segundo. Quando voltou a bater, estava descompassado. Ela precisou sentar-se na beirada do sofá da sala do senhor Kernel para não cair no chão. Os dois passaram alguns segundos em silêncio, até que Kernel disse:

- É. Todas elas sabem uma da outra, todas elas conhecem uma à outra, todas elas estão tranquilas com a situação e todas elas também têm outros caras.

Somente agora a ficha de Melissa tinha caído sobre o que Kate dissera. Consentido. Mas que diabos! Como se consente um absurdo desses?

- Como!? – foi só isso que ela conseguiu balbuciar devido ao choque terrível que tivera.

- Simplesmente assim. É isso que eu vivo. É a minha vida. E eu espero que você entenda e pare de chorar toda vez que sabe que estou marcado com a Kate.

- Mas ela é minha melhor amiga! Eu quero o bem dela!

- Se você quer o bem dela, de verdade, respeite as decisões que ela toma. Agora, se me der licença, vou terminar de mandar alguns e-mails. Eu te levo em casa, me espere em sua sala.

Melissa demorou-se para levantar porque sua mente estava processando um bocado de informação. Ela saiu devagar da sala de seu chefe e estava tendo uma taquicardia momentânea. Sentou-se no computador e moveu o mouse para que a tela ligasse. Patrick ainda não tinha respondido. Desligou o computador. Várias coisas passaram por sua mente.

Quer dizer que, em doze anos, ela sempre foi traída. Estava num relacionamento aberto sem saber. Ele a traía não somente com uma, mas com várias outras mulheres. Ela não fazia ideia! A loira não tinha consentido que Patrick ficasse com outras mulheres, mesmo porque não houve nenhuma conversa sobre ela poder ficar com outros homens também.

Quer dizer, ela era uma mulher vistosa e vários homens bonitos e interessantes gostavam muito dela, davam em cima o tempo inteiro. Muitas e muitas vezes resistiu à tentação de trair Patrick. Tantas outras vezes chorou por ter resistido à tentação mesmo quando ela e seu namorado estavam brigados ou tinham terminado por uma semana e depois reataram. Ela dedicara sua alma à Patrick e achara que ele fizera o mesmo, mas na verdade ele queria ter um relacionamento aberto. Quer dizer, todas aquelas fotos que ela via na internet dele com outras mulheres, será que elas são namoradas dele ao mesmo tempo? Como isso pode acontecer?

O senhor Kernel saiu de sua sala, ajeitou os cabelos grisalhos para trás e disse:

- Já desligou o computador? Temos meta de energia pra bater esse mês.

- Sim, desliguei.

- Então vamos.

Era comum o senhor Kernel a levar para casa às vezes quando o trabalho ia além do horário normal, mas desta vez Melissa se sentia muito desconfortável, mesmo sendo levada dentro de um Mercedes.

A mulher não sabia para onde olhar, onde colocar as pernas, onde colocar os braços. Melissa passou o cinto de segurança e sentiu-se mal quando ergueu o olhar e viu o rosto do senhor Kernel abaixado para colocar as chaves na ignição, porque, pela primeira vez, Melissa percebeu o quão bonito ele era. Os cabelos grisalhos e curtos, a pele lisa apesar da idade, a barba por fazer, os olhos atraentes. Ela ficou corada quando ele a olhou e disse:

- Vamos?

- S-sim – gaguejou, assustada.

A loira não sabia o que aconteceria na sequência, só sabia que estava com dor de cabeça de tantas perguntas que giravam nela. Parecia que todos os sinais estavam fechados. Parecia que o trânsito estava lotado. Parecia que ela nunca ia chegar em casa.

- Vou colocar uma música, estou achando você muito calada – ele disse, e ligou numa estação de rádio qualquer. Começou a tocar Nirvana. – Kurt... Se matou por causa de drogas.

- Ainda acho que usou drogas justamente por causa de traição – disse Melissa, sem nem sequer pensar no que estava dizendo.

- Não. Foi droga mesmo. Overdose. Depois um tiro na cabeça, se não me engano. Aliás, Melissa, você tem que parar com essa neura de traição. Tudo pra você é traição.

O rosto de Melissa corou como um pimentão vermelho.

- Nos conhecemos há, o quê, oito anos? Você não era assim.

- Até seu melhor amigo me trair.

- Ele estava certo... – suspirou Kernel.

- Certo? Em me trair?

- Não! Ele estava certo de que você não aguentaria uma vida como a nossa.

- Como assim?

- Não aguentaria um relacionamento aberto.

- Ah, claro! Então, eu tenho a cabeça tão fraca que não aguentaria isso?

- Está dizendo que você aceitaria se ele pedisse?

Um silêncio dominou o carro. Exceto pelo som do Nirvana.

"I'm so excited

I can't wait to meet you there, but I don't care

I'm so horny

But that's okay, my will is good

Yeah, yeah"

- Acho que isso é um não – ele disse, referindo-se ao silêncio dela.

- Claro que não – Melissa cruzou os braços e fez um bico infantil. – Mas isso não quer dizer que ele pudesse continuar namorando comigo como se nada estivesse acontecendo! Devia ter terminado comigo antes! Me liberado para ficar com outros, se eu quisesse. Eu fiquei doze anos dando foras em homens, e olha que alguns eram muito, muito, muito mais bonitos que esses homens de Hollywood. Muito melhores que o Patrick!

- Mas esta é a ideia do relacionamento aberto – disse Kernel –, também para não sofrer com esse tipo de pensamento.

- Não, eu não quis dizer isso. O que eu quis dizer é que...

- Pronto! Está entregue! – disse Kernel, estacionando o carro.

De repente, o caminho ficou rápido demais e ela ainda tinha trinta mil perguntas para fazer a ele. Então, Melissa fez uma dessas perguntas, uma que nunca havia feito antes:

- Vamos entrar?

Kernel ficou com um rosto absurdado:

- Eu?

- É. Ainda não terminamos essa conversa.

Os dois desceram do carro. Ele ativou o alarme e entrou no prédio de tijolos expostos em estilo industrial. Subiram as escadas rapidamente e entraram no apartamento 101.

O apartamento de Melissa era simples, um sofá de dois lugares, listrado de branco e vermelho com uma manta negra por cima, o chão, acarpetado em vinho. Em frente ao sofá, uma TV de LCD pregada na parede, antiga em comparação com as atuais. Muitas revistas de casamento estavam espalhadas sobre um rack ao lado de um aquecedor próximo ao sofá, juntamente a um porta-retratos virado com a face para baixo.

- Fique à vontade – disse Melissa.

- Obrigado – respondeu Kernel.

- Vou pegar um copo de água.

- Espera, estou vendo um Bailey’s ali.

- Ah, Pep me deu de natal. Ainda não abri. Vou pegar gelo – ela disse, falando sem querer o apelido de Patrick.

Melissa seguiu para a cozinha enquanto Kernel caminhou até as revistas de casamento. A cozinha era pequena, mal cabia duas pessoas se abrisse a mesa retrátil. Pegando os copos de dose mais chiques que tinha, os serviu com gelo e, ao chegar à sala de estar, viu o senhor Kernel com um porta-retratos nas mãos.

- Esta foto tiramos no natal passado.

- Sério, vocês dois sentados no colo do papai Noel do Central Park.

- Ah, foi uma brincadeira. Éramos um casal divertido na maior parte do tempo – dizia, enquanto servia a bebida irlandesa para os dois. – Sabe, já se passaram mais de seis meses e ainda não consegui me livrar das coisas dele. Nem dos presentes que ele me deu.

- Acho que você devia ficar com os presentes – Kernel disse, colocando o porta-retratos de volta no lugar, em pé. – Já as coisas dele, você devia devolver. Mandar entregar na casa dele.

- Hahaha – ela riu. – Talvez você pudesse entregar para mim. É aquela caixa gigante ali, atrás do sofá.

Kernel deu a volta no sofá e pegou uma caixa minúscula. Abriu-a e mexeu nas coisas.

- Sério que em doze anos de relacionamento ele só deixou uma muda de roupas e um Rolex aqui? Escova de dentes? Só?

- Eu disse que ele era reservado. Quer dizer, não havia muito envolvimento, ele não deixava as coisas dele aqui em casa... na verdade, eu parecia ser só mais um compromisso chato na agenda dele.

Eles tomaram nas mãos o Bailey’s e brindaram.

- Ao seu vestido novo – brindou Kernel.

- Que foi ideia da Kate – brindou Melissa.

- Como disse? – ele estava perplexo.

- Quando fui buscar no fim de semana, a reserva estava em nome dela.

Kernel riu. Sorveu um pouco da bebida, apreciando-a, e sentou no sofá junto com Melissa, bem perto dela.

- Ela sente sua falta.

- Kate me disse isso hoje.

- Quer dizer, vocês são amigas de infância...

- Não quero falar sobre isso. Mesmo sabendo que é consentido tudo o que vocês fazem, isso ainda me enoja. Quer dizer... – ela bebeu mais um gole do licor – vocês não têm medo de pegarem uma doença?

- Camisinha. Sempre. Regra número um.

- Sabia que existem doenças que passam mesmo usando camisinha?

- Mas a coisa não acontece a torto e a direito.

- Talvez não com você, mas e com elas? Por exemplo, aquela doidinha de dezoito anos, você sabe sequer se ela tem outros namorados?

- Cinco.

- Cinco!? – exclamou Melissa, boquiaberta.

- É. Tudo é conversado. Eu sei tudo sobre eles. Não sei se eles sabem sobre mim, mas isso não é um problema meu.  Só não gostei muito quando tive que dar dinheiro pra ela comprar presentes pra todos eles de dia dos namorados.

- Você dá dinheiro pra ela!?

- Não! Bem, os pais dela são de classe média baixa, então às vezes compro algumas coisas pra ela. Por exemplo, aquela conta de internet e TV à cabo que você paga em nome da mãe dela.

- Ela se vende pra você! – exclamou Melissa, olhando para o senhor Kernel, esquecendo-se totalmente de que ele era o chefe dela e zombando, rindo do chefe, como se ele fosse algum tipo de sugar daddy.

- Claro que não, são presentes. Se eu quisesse prostitutas, eu ia ao prostíbulo.

- "Prostíbulo". Até essa palavra você fala chique – disse Melissa, rindo.

- O quê? Você quer me ouvir dizer a outra palavra? – disse Kernel, acompanhando a risada dela.

- Não!

- Eu não vou à puteiro – ele sussurrou no ouvido dela. – Eu não como puta.

De repente, o corpo inteiro de Melissa arrepiou-se quando ouviu o senhor Kernel dizer aquelas palavras sujas. Ela deu um tapa no peito dele e riu de novo, tomando já sua terceira dose de bebida, ficando com as bochechas coradas.

- Mel, há quanto tempo você não faz sexo?

Ela afastou-se do corpo dele. Seu cheiro a extasiava. Disse:

- Que tipo de pergunta é essa?

- Quer dizer, estamos nós dois aqui, sozinhos, no seu apê... somos livres e desimpedidos...

- Você não é livre e desimpedido – disse Melissa, corrigindo-o.

- Eu sou sim – ele maneou positivamente a cabeça e pousou a boca no pescoço de Melissa.

- Não! – disse a loira, gemendo. – Eu não quero participar disso.

- Porque não? – disse Kernel, se afastando dela imediatamente.

- Como assim “porque não”? Você é meu chefe, senhor Kernel! – disse Melissa, sobressaltada.

- Então, melhor ainda! Podemos fazer sexo sempre que você quiser, você está todos os dias a uma parede de distância de mim. Sexo sem compromisso. Parece divertido! Que tal?

- N-não Kernel, digo, senhor Kernel... – disse Melissa, mas, à essa altura do campeonato, o que havia entre suas pernas se aqueceu e pulsou.

- Você me chamou aqui para quê, então? – ele perguntou, tão próximo à ela que dava para sentir seu hálito doce de bebida irlandesa.

- Para fazer algumas perguntas... – disse Melissa, sentindo-se totalmente envergonhada.

- Que tipo de perguntas? Está interessada em saber como funciona um relacionamento aberto?

- Não, não é isso... quer dizer... eu gostaria de entender o que se passava na cabeça de Pep.

- Se passava exatamente isso...

E os lábios do senhor Kernel fixaram-se contra os de Melissa, que não aguentou mais segurar sua vontade e, irrefreada pelo efeito do álcool, envolveu-o em seus braços, rendendo-se. Aconteceu tudo ali mesmo. Ele era voraz, o que não combinava com a delicadeza dela, mas logo se habituou ao jeito com que ele puxava seus quadris com violência.

O momento foi puro prazer, uma coisa que ela não sentia com outro homem há anos. Ao final, ela extasiou-se juntamente com ele. Caído por cima dela, enrolados na manta negra do sofá, se beijaram e repetiram aquele mantra durante metade da madrugada, quando caíram no sono, abraçados. Apenas o papai Noel do Central Park e Patrick na foto testemunharam aquela noite, mais quente que o aquecedor jamais teria aquecido aquela sala.

Continua...

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