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Níveis de verdade

Adam pegou a caixa das coisas de Patrick, abriu a porta e cumprimentou o amigo.

- E aí, fera? – disse Kernel, mas não houve resposta do amigo.

Patrick, com os olhos verdes e cabelo castanho, que estava de terno e muito bem alinhado, perdeu o controle ao ver, de passagem, o que estava acontecendo no sofá do amigo. Empurrou Kernel para o lado. Queria participar.

- Está fazendo uma festinha? – disse Patrick, mas, para seu pavor, entrou na mansão e terminou visualizar o que estava vendo pela metade através da porta entreaberta, deu de cara com a cena de Kate lambendo os seios de Melissa.

- Que merda é essa!? – gritou Patrick, e as duas garotas se assustaram, olhando para ele.

No susto, Kate pulou para o canto oposto do sofá. Os olhos verdes de Patrick encontraram os azuis de Melissa e ela não pôde esconder um leve sorriso triunfal.

- O que está acontecendo aqui? – perguntou Patrick, arfando de ira enquanto se aproximava de Melissa e olhava-a de cima, puto de ódio.

Mel, por sua vez, colocou as mãos na cintura e manteve o olhar firme, aquele olhar triunfante de quem acabara de saciar sua sede de vingança. Depois, o olhar transformou-se em puro cinismo.

- Sexo consentido – respondeu Melissa.

Patrick segurou-a ferozmente pelo pescoço e empurrou-a deitada sobre o sofá. Kate gritou por Adam e saiu correndo para o outro canto da sala. A loira segurou as mãos do agressor, tentando soltar-se, e agora seu semblante estava desesperado. Uma mão surgiu sobre o ombro de Patrick, puxando-o para longe de Melissa: o senhor Kernel tinha vindo na direção de Patrick, à toda velocidade, e puxou o amigo de cima da mulher.

- Você está fora do Círculo – declarou Kernel.

“Círculo?” – pensou Mel, ainda meio sem ar e um tanto perturbada, massageando o próprio pescoço e tossindo um pouco.

- Você não manda no Círculo – respondeu Patrick, arfando.

Patrick se preparou para dar um soco em Adam, mas antes que aquele pudesse fazer qualquer coisa, este simplesmente sacou uma arma de fogo que estava escondida em baixo de uma mesinha de canto ao lado do sofá, apontando-a para Patrick, e disse:

- Saia já daqui antes que eu te dê um tiro.

Patrick, sobressaltado, seguiu em direção à porta, andando de costas por uns momentos e não partiu senão antes dizer:

- Você vai pagar caro por isso.

Após a saída do agressor, os outros três deram suspiros de alívio. Kernel e Kate correram até Melissa. Após cinco minutos de perguntas para certificarem-se de que Mel estava viva e bem, se conseguia respirar, se estava assustada, se estava com sede ou fome, o imponente relógio de coluna da sala de estar deu as doze badaladas da meia-noite. Os três entreolharam-se.

- Feliz aniversário para mim – disse Melissa, que levantou-se e foi vestir sua roupa. Colocou sua lingerie, blusinha branca social e saia longuete preta.

- Sabe, eu imaginei que amanhã iríamos estar rindo pela cozinha de manhã, comendo cupcakes de aniversário que eu ia fazer pra você, Melissa – disse Kernel, conturbado, quebrando o silêncio constrangedor após as batidas do relógio e a frase de Mel, que transformara qualquer aniversário em uma não-comemoração.

- Eu vou até a delegacia imediatamente! – exclamou Melissa.

- Não, Mel! Não faça isso! – exclamou Kate.

- Como é que é? – questionou Melissa, incrédula. – Esse maluco entra aqui, tenta me estrangular e você não quer que eu vá à polícia?

- Patrick é um homem poderoso, ele vai colocar todos os advogados do escritório dele em cima de você! – argumentou Kate.

- Não estou nem aí para isso, ele é um crápula e vai pagar pelo que fez!

- E você esperava que ele fizesse o quê? – perguntou Kate. – Te abraçasse e te desse feliz aniversário?

- Não, achei que íamos ter uma conversa a partir dali – comentou Melissa que, agora, parando para pensar, percebeu sua inocência.

- Você o provocou! – exclamou Kate.

- Isso não justifica ele me estrangular! – exclamou Melissa, apontando para o próprio pescoço. – E vocês são minhas testemunhas!

- Ah, e o que você vai dizer pros tiras? – indagou Kate, cínica. – Eu estava transando com minha melhor amiga enquanto meu chefe me olhava, quando meu ex entrou na sala e tentou me matar, mas meu chefe o ameaçou com uma arma e meu ex foi embora? É isso? Esses caras não entendem!

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- Eu estava transando com minha melhor amiga enquanto meu chefe nos olhava, quando meu ex entrou na sala e tentou me matar, mas meu chefe o ameaçou com uma arma e meu ex foi embora – disse Melissa, para a policial que estava na recepção da delegacia mais próxima da mansão do senhor Kernel.

- Você sabe que não estou aqui para piadas, não é? – disse a policial, que inicialmente estava anotando o que Melissa dizia, mas havia parado a anotação para levantar seu olhar à secretária e erguer uma das suas sobrancelhas a partir do momento que ela falara que o chefe as observava transar.

Atrás de Melissa, estavam uma carrancuda Kate de braços cruzados e um Kernel que se sentia culpado por ter topado fazer aquela loucura na sua casa. Agora sim, estavam todos enrascados e iriam ser presos por desacato!

- N-não é uma piada. Pode escrever aí.

- Querida, sugiro que vocês resolvam suas questões amorosas e retornem amanhã – disse a policial, fechando o bloco de notas.

- Peraí, você não pode deixar de registrar meu caso! – disse Melissa, sentindo-se ignorada pela força policial.

- Ah, mas é claro que não posso deixar de registrar seu caso, mas eu posso fazer o registro dentro de meia hora, ou em duas horas, vinte e quatro horas, ou até posso, inclusive, mandar você ir para casa e te notificar daqui a até três meses – a policial disse, cínica. – Dependendo da gravidade do caso. Seu caso não me parece muito grave.

- Então olhe para isso – disse Melissa, irritada, afrouxando o nó de sua blusa na altura do pescoço e mostrando-o.

A pele da loira já estava revelando as marcas dos dedos de Patrick em forma de pequenas gotículas de sangue que se acumulavam sob a tez da mulher. A policial empertigou-se. Levou a mão ao rádio da polícia, apertou um botão que fez o rádio chiar por um breve momento, e disse:

- Temos um caso de agressão física contra mulher.

- Ok – responderam do outro lado do rádio, depois de mais dois chiados do aparelho.

- Essas são suas testemunhas? – perguntou a policial. Melissa maneou a cabeça positivamente. – Podem aguardar sentados ali, vou precisar dos documentos de vocês dois. Quanto a você, vou te encaminhar para o exame de corpo de delito dentro de algumas horas. Preencha esse formulário – a policial pegou um formulário embaixo da mesa e entregou para Melissa, apontando para dois locais do papel – e assine aqui, depois aqui.

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Melissa estava sentada em uma cadeira de madeira escura, completamente nua. Estava tudo escuro à sua volta, exceto por uma única luz que a iluminava de cima, como se fosse um holofote de teatro. Quando deu por si, percebeu que seus braços e pernas estavam amarrados no espaldar e nas pernas da cadeira, respectivamente. A mulher tentou se soltar, mas quanto mais ela tentava, mais os nós se reforçavam.

- Olá? – perguntou Melissa, a voz trêmula acompanhando o tremor do próprio corpo ecoou no vazio.

- Você vai pagar caro por isso – disse uma voz ao longe, era a voz de Patrick.

Melissa ficou tonta, como se sua cabeça começasse a girar. Duas mãos brancas e gélidas seguraram seu pescoço por trás, a estrangulando! Ela não conseguia nem mesmo tentar levantar suas mãos, amarradas, para tirar as mãos de Patrick do seu pescoço – apesar de não conseguir ver, ela tinha certeza que eram as mãos dele. Mel foi ficando sem ar aos poucos e seus olhos fecharam. Tentou gritar de desespero, mas não conseguiu. Parecia que os ossos de seu pescoço iam estourar!

- Ahhhh!!! – gritou Melissa, puxando o ar para dentro dos seus pulmões com tanta força que parecia que ela estava submersa na água há vários minutos.

- Melissa! – gritou Kernel de volta, sentando ao lado de Mel.

Os dois haviam acabado de acordar, assustados. Estavam deitados em uma cama. Melissa olhou para o senhor Kernel e o abraçou desesperadamente. Kernel, por sua vez, a abraçou com carinho.

- Shhhh… – sussurrou Kernel enquanto passava os dedos por entre os fios de cabelo dourados de Melissa. – Foi só um sonho… foi só um sonho...

Melissa começou a chorar. Fora apenas um pesadelo. O senhor Kernel a consolou por vários minutos. Quando voltou a si, Mel começou a olhar ao redor e percebeu que estava num lugar que nunca estivera antes, imaginando ser o quarto do senhor Kernel.

O espaço era grande, longo, parecia ocupar todo o comprimento do terceiro andar da mansão. Havia vários sofás e poltronas Luís XV, bem requintados e espalhados pelo ambiente sobre o carpete preto, duas lareiras a gás, janelas com cortinas pesadas de veludo escuro, elegantemente entreabertas revelando tecidos de voil branco por baixo que deixavam a luz passar vagarosamente, mas que, ao mesmo tempo, mantinham a privacidade do recinto. As estruturas de madeira do telhado eram aparentes, quebrando o estilo clássico do ambiente com uma pegada meio… country. A cama em que eles estavam se encontrava no meio do local e era… redonda? Redonda e imensa. Definitivamente, muito baixa, quase no nível do chão.

- Seu quarto é grande – Melissa comentou.

- Não estamos no meu quarto – disse Kernel, rindo-se.

Kernel levantou-se. Trajava apenas a parte de baixo de um pijama de seda, deixando seu torso musculoso à mostra. Agora que dera por si, Melissa percebeu que estava vestida com uma das camisas sociais pretas do senhor Kernel.

- Depois do que aconteceu ontem – ele disse, indo até um dos cabideiros de piso que estavam espalhados pelo “quarto” e pegando um robe preto de seda que estava dependurado ali, vestindo-o –, acho que você merece um dia de folga. Pode ficar aqui o quanto quiser.

- Onde eu estou? Que horas são? – perguntou Melissa, que agora estava repuxando o lençol com desconfiança, cobrindo o próprio corpo. Estariam eles em algum motel?

- Deve ser mais ou menos meio dia. Estamos na minha casa – ele disse, indo na direção de um móvel escuro e rebuscado, que parecia uma espécie de bar. Mel agora percebera, havia uma grande quantidade de outros móveis espalhados por todo o local, como cadeiras, sofás, armários e outros bares de madeira, entalhados com requinte. – Não me permitem trazer pessoas de fora pra cá, mas acredito que hoje foi necessário.

“Como assim, pessoas de fora? De fora de onde?” – pensou Melissa.

O senhor Kernel estava muito elegante para alguém descalço e que havia acabado de acordar. Com aqueles cabelos levemente grisalhos e raramente bagunçados para o alto, ele pegou um copo de uísque e se serviu.

- Com gelo ou sem? – perguntou para Melissa.

- Cowboy – Melissa respondeu à esmo, sem conseguir raciocinar direito.

Agora ela estava entendendo: aquilo parecia um clube social. Havia armários demais, cabideiros demais, bares demais e superfícies macias demais para ser um quarto de uma pessoa só. Melissa engoliu em seco e levantou-se no meio da cama redonda gigante. A cada dia que passava, ela descobria uma coisa nova sobre o senhor Kernel.

- Onde está Kate? – perguntou Melissa.

- Ela não está disponível – respondeu Kernel, caminhando até sua secretária, parada no meio da cama que nem uma boba. Ele entregou um dos copos de uísque para ela e continuou falando –, aparentemente ficou bem chateada com nossa visita à delegacia nessa madrugada.

De repente, toda aquela imensidão de lugar deixou de impressionar Melissa, que tomou o copo em suas mãos e lembrou do que havia acontecido na noite anterior, bem como lembrou-se do sonho que acabara de ter. Caminhou por sobre a cama até descer dela, como se descesse apenas um degrau de escada, e seguiu até uma das poltronas Luís XV. Sentiu a necessidade de engolir todo aquele uísque de uma vez. Foi o que ela fez na sequência, após sentar-se.

- Eu nunca achei que Patrick fosse capaz de fazer uma coisa dessas… – lamentou Melissa.

- Eu também nunca pensei que Patrick fizesse aquilo, só por isso eu concordei em realizar a sua vingança – respondeu Kernel, ainda se sentindo um pouco culpado pela situação toda.

- Quer dizer, ele me traiu e eu terminei com ele, acabou! Então, quer dizer, ele não tem direito de reclamar do que eu faço com minha vida daqui para frente.

- Um relacionamento de doze anos pode mudar as pessoas. Não sei, mas… – disse Kernel, pensativo, e completou: – acho que o Patrick tinha sobre você um sentimento de posse fora do comum. Quer dizer – gesticulou, servindo mais uísque para Melissa –, você não pode seguir com a sua vida amorosa após alguns meses de término? Na cabeça dele, você não pode mais se relacionar com outras pessoas?

- Talvez ele reagiu assim porque o melhor amigo dele estava junto comigo? – ela questionou e, de repente, percebeu que estava vergonhosamente procurando justificativas para a atitude repulsiva de Patrick. – Mas não adianta, nada justifica o que ele fez.

- Não procuro justificar, procuro entender.

- Não há o que entender, senhor Kernel. É completamente irracional.

- É instigante… curioso, eu diria.

- Instigante? Curioso!? O que há de instigante e curioso em um homem que me atacou? Que me estrangulou? Eu podia ter morrido!

Kernel estava com um olhar meio especulativo e meio sonhador ao mesmo tempo, voltado ao fogo da lareira a gás. Parecia que nem estava ouvindo as palavras de Melissa. A secretária ficou com raiva da atitude de seu chefe e resolveu atacá-lo com palavras.

- É aqui que você investe todo o dinheiro da empresa? Dá pra perceber porque é que a Kernel Publicidade nunca cresceu… – criticou Melissa.

A empresa de publicidade do senhor Kernel realmente ganhava rios de dinheiro e se situava na cobertura de um arranha-céu de Manhattan, mas não era um dos melhores arranha-céus e nem era um escritório tão grande assim, tinha cerca de sessenta e nove funcionários apenas. Algumas vezes, Melissa chegava a pensar se eles poderiam ir para um prédio próprio, aumentar a empresa e, por consequência, aumentar o salário dela.

- O que disse? – perguntou Kernel quando Melissa o criticou, saindo do transe em que estava ao olhar as chamas da lareira.

- Eu disse… – respondeu abruptamente, mas parou de falar da mesma maneira que começou.

“… que você é um idiota…” – completou Melissa em pensamento. Não podia falar aquilo. Além de ser falta de educação, ainda por cima ele era seu chefe. Suspirou, estupefata.

- Eu disse que nada justifica o que o Patrick fez comigo.

- Claro que não, querida – disse Kernel, afável, se aproximando dela com o rosto preocupado.

Porém, Melissa não viu o rosto preocupado de seu chefe, mas seu olhar se ateve aos músculos do torso do homem que ficaram à mostra enquanto ia se aproximando dela e o robe preto abria, acompanhando o movimento do corpo dele. Ele disse alguma coisa que ela não conseguiu prestar atenção. Seu coração estava acelerado e, como se estivessem imantados, os corpos do senhor Kernel e de Melissa se aproximaram de forma rápida. Largaram seus copos de uísque numa mesinha próxima e beijaram-se como se estivessem em profundo desespero para fazê-lo há anos.

Kernel e Melissa deitaram-se no primeiro sofá estilo Luís XV que havia perto deles. Habilmente, uma das mãos de Kernel alcançaram um mini gaveteiro em cima da mesa de canto. Ele pegou um preservativo enquanto Melissa puxava-o de volta para o sofá. Parecia que sofás eram o “spot” deles.

Mal tiraram a pouca roupa que usavam e simplesmente transaram com muita vontade. O senhor Kernel fora rápido e intenso, Melissa ficara completamente entregue. O corpo pesado de Kernel deitou sobre o frágil de Melissa. Após recuperarem o fôlego, ela percebeu que ele não a olhava mais nos olhos, mas sim fitava seu pescoço machucado.

- Eu nunca presenciei algo desse tipo como ontem – disse Kernel, ainda deitado no sofá, pegando de volta seu uísque na mesinha.

- Eu esperava que nosso papo de travesseiro não fosse Patrick tentando me matar – disse Melissa, levantando-se.

- Melissa, eu tenho algumas questões para resolver hoje – disse Kernel, levantando-se também, voltando à voz autoritária e macia que usava no escritório. Pigarreou, sorveu o restante de seu uísque. – Sua impressão digital está gravada no sistema do elevador da direita se precisar sair, mas você pode ficar à vontade por aqui, por quanto tempo desejar. Eu preciso ir.

Melissa nem teve tempo de responder ao senhor Kernel e percebeu que havia dois elevadores ali. Seu chefe deu um “tchauzinho” com a mão direita e desceu pelo elevador da esquerda. Após ele ir embora, ela seguiu até o elevador da esquerda e colocou seu dedo no leitor biométrico. A luz em volta do botão ficou vermelha. Foi até o elevador da direita e fez o mesmo. A luz em volta do botão ficou violeta e ela ouviu o zumbido do elevador subindo. Achou estranho haver ali um elevador que levava para lugares diferentes e funcionava por biometria e não se recordava de ter registrado a sua no aparelho. Provavelmente o senhor Kernel registrara quando eles chegaram ali, mesmo com a loira estando desacordada.

Melissa olhou ao redor e ficou imaginando que diabos ela faria ali a tarde inteira, sozinha, depois de ter recebido aquela frase “pode ficar à vontade”. Foi quando seus olhos azuis encontraram uma bela Jacuzzi num canto do enorme salão e o barulho do elevador da esquerda chegando – “PLIM!” – soou ao mesmo tempo que ela teve uma ideia brilhante.

Percebendo melhor os detalhes do local, agora as coisas faziam mais sentido. O lugar era algo como um salão de festas requintado, parecia que havia ambientes separados para cada atividade, como por exemplo um lugar onde era uma pista de dança com o piso quadriculado de preto e branco, meio retrô. De posse do controle remoto que estava por perto, Mel deu o play e esperou por uma surpresa. O barulho de uma corda de violino sendo batida por um arco e de um dedilhado de violoncelo invadiram o ambiente. Era Agnes Obel, The Curse, começando a tocar. Um sorriso de canto de boca brincou no rosto de Melissa e ela se sentiu bem.

Uma vez sozinha naquele salão, Melissa sentiu-se à vontade. Foi até a Jacuzzi e a encheu com água. Demorou algum tempo para terminar de encher, pois havia espaço ali para cerca de oito pessoas! Ao lado da banheira, a secretária viu muitos tipos de sais e espumas de banho, a maior parte deles com a palavra “Hot” no rótulo, seguida de alguma outra palavra sugestiva. Deslizando pelo salão, dançando, Melissa foi até um armário próximo à Jacuzzi esperando encontrar toalhas, e encontrou, mas havia algumas dúzias de outras coisas bem mais interessantes que tolhas ali dentro.

Brinquedos. Vários brinquedos adultos. A maioria deles, Melissa nunca tinha visto antes. Pegou uma toalha rapidamente e fechou o armário, ficando de costas para ele, empurrando as portas com seu dorso, de forma urgente, como se alguém tivesse chegado por trás dela de surpresa e a estivesse censurando. Mas não havia ninguém ali. Ninguém para julgá-la por ter encontrado os “brinquedos proibidos” do senhor Kernel jogados dentro de um armário velho.

Sentiu-se uma bruxa fazendo uma poção quando jogou ingredientes diversos de sais e espumas de banho na Jacuzzi. Serviu-se e sorveu mais um pouco do uísque fino do senhor Kernel. Encontrou pacotinhos de amendoim, azeitonas e outros petiscos dentro de um dos bares espalhados pelo salão. Dançou mais um pouco. Bebeu. Petiscou. Deu uma segunda olhada nos brinquedos do senhor Kernel. Bebeu mais. Petiscou mais. Dançou novamente.

Melissa respirou fundo e absorveu o perfume que saía da Jacuzzi através dos sais de banho. Vez ou outra, o terror da noite anterior lhe invadia a memória. A sensação de falta de ar ainda era palpável. O pescoço doía um pouco. Repentinamente, lembrou que deveria estar tomando remédios para dor. Bebeu mais uma dose para livrar-se da dor no pescoço. E outra dose. E outra. E mais uma...

Melissa desnudou-se da camisa social preta de seu chefe, prendeu os cabelos dourados para cima e entrou na banheira de hidromassagem. A água estava bem quente, cheia de espuma e bem cheirosa, o que lhe fazia se sentir confortável. Havia trocado de bebida: do uísque para uma taça flute de champanhe – combinava bem mais com a hidro. Fazia muito tempo que ela não aproveitava um dia para relaxar e, como vivia endividada e não tinha dinheiro para pagar um spa, resolveu ficar ouvindo música e curtindo a tarde dentro da água quente e borbulhante até que o senhor Kernel, provavelmente, voltasse.

Depois de um bom tempo de relaxamento debaixo dos jatos da hidromassagem, os olhos azuis de Melissa fitaram a toalha de maneira intrigante. Havia um símbolo bordado nela ou era só impressão sua? Aproximou-se da toalha para ver melhor o símbolo, mas suas partes femininas passaram, por acaso, perto de um dos jatos de água da hidromassagem e Melissa simplesmente tremeu em um prazer imediato.

O que era aquela sensação que nunca sentira antes? A secretária foi posicionando seu corpo de volta, para perto do jato de água, e novamente sentiu extremo prazer. Com sua nova descoberta, Melissa passou um par de horas se deliciando e conhecendo melhor como seu próprio corpo reagia a determinados movimentos da água. O conceito de “suar debaixo d’água” estava sendo aprendido por ela naquele exato momento. Quando se deu por satisfeita, voltou para a cama redonda e ali deitou-se, pegando no sono rapidamente.

*~~~~~~~~~~*

- Melissa... Mel... – disse Kernel, com um certo tom de urgência na voz.

- O quê? – disse Melissa, meio grogue, acordando.

- Eu preciso que você se esconda, imediatamente. Eles estão subindo.

- Eles? Quem? – disse a secretária, bêbada de sono.

O chefe a sacudiu e a levantou, às pressas.

- Não tenho tempo para explicar, marcaram a reunião de emergência para agora, só tomei ciência há pouco. Eles já estão subindo, não podem descobrir que subi com você aqui.

Um urgente senhor Kernel encaminhou uma sonolenta Melissa até uma porta ao lado do elevador da direita, perto de uns armários que ficavam na entrada do recinto. Ele abriu a porta, que dava para um quartinho escuro.

- Eu vou ter que trancar a porta. Fique em silêncio e, não importa o que aconteça, não faça barulho e não saia daí. Você confia em mim?

Melissa estava retornando aos poucos às suas faculdades mentais normais, as quais o álcool ingerido em excesso e o sono interrompido faziam força para que ela não alcançasse.

- Eu confio, sim – respondeu, com o pouco que conseguiu raciocinar. – Espera, eu vou ficar trancada aqui?

- Vai haver uma reunião do Círculo, vai ser rápido. Se descobrirem que eu deixei você subir aqui, estarei encrencado.

- Mas essa é a sua casa – disse Melissa, tentando captar alguma mensagem subliminar naquela conversa.

- É, mas esse espaço é comum. Mel, por favor, entre aí – Kernel falou, apontando o quarto escuro, mas logo o elevador fez “PLIM!” e ele não teve outra escolha a não ser pegar Melissa pelo braço e encaminhá-la para dentro do quartinho escuro – Me desculpe, não queria fazer isso à força, por favor confie em mim e não saia daí, não importa o que aconteça – disse urgentemente, fechando rapidamente a porta e trancando-a por fora.

Melissa estava, literalmente, em um quarto escuro. Ela tinha meio que perdido o equilíbrio quando o senhor Kernel deliberadamente a empurrara para dentro do cômodo. Sem entender muito bem o que estava acontecendo e completamente nua, Mel ficou intrigada. Seu cérebro terminou de despertar. Seus olhos demoraram a se adaptar à escuridão do ambiente e ela tateou perto da porta, procurando um interruptor. Não havia. Mais abaixo, ao lado da porta, procurou por alguma tomada e fio de abajur. Não encontrou nada. Mal conseguia ver, mas ouvia lá fora o que estava se passando.

Algumas pessoas estavam chegando, ela não sabia precisar ao certo a quantidade de gente que cumprimentava uns aos outros do lado de fora, quando sua visão captou uma réstia de luz entrando tímida pela fechadura da porta assim que Kernel tirou a chave dali. E foi assim que os olhos azuis de Melissa puderam ver quase tudo o que acontecia lá fora, através do buraco da fechadura.

- É, eu ainda não arrumei os assentos – comentou Kernel, olhando para trás várias vezes, como se estivesse conferindo se havia realmente trancado a porta do quarto com Melissa dentro.

- Eu ajudo... – disse um sujeito usando um terno muito bem alinhado.

O homem era alto, jovial e com o cabelo bem vermelho. Melissa sabia quem ele era: Mattew Murray, o dono de uma das maiores revistas masculinas de Manhattan. Quando ele ia ao escritório do senhor Kernel, Melissa e Mattew passavam várias horas conversando após as reuniões e ele sempre a levava para tomar um drink no fim das contas. Como ele pagava e Melissa tinha o bolso com um furo eterno que nunca deixava o dinheiro ficar lá dentro, ela aceitava animadamente. Após vários drinks, o cara sempre fazia umas perguntas para Mel sobre o universo feminino e dizia que um dia ainda conseguiria convencê-la a posar nua em sua revista. Na semana seguinte, a coluna de Murray no periódico, sobre o universo feminino, revelava alguma coisa ligada à conversa que os dois tiveram anteriormente.

Em seguida, uma mulher extremamente elegante aproximou-se do senhor Kernel e lhe deu um “selinho”. Alguma coisa nessa cena incomodou Mel por dentro. Melissa estava curiosa para saber quem a mulher era, mas não demorou muito e ela se avizinhou da porta o suficiente para ser reconhecida por Mel como a melhor das melhores clientes da Kernel Publicidade: Hannah Dean, dona da Vox Arquitetura. Ela era simplesmente a mulher mais fantástica que Melissa conhecia: poderosa e linda. Graças ao trabalho da campanha publicitária do senhor Kernel, a Vox se tornou a melhor empresa para se contratar um projeto de arquitetura em todo o estado, rumo à conquista do país, da Alemanha e, quem sabe, do mundo.

Outros quatro homens e três mulheres chegaram e, por incrível que parecesse, Melissa conseguiu reconhecer cada um que estava ali como um cliente do senhor Kernel. E não era como reconhecer apenas clientes, eram seus melhores clientes. Melissa ficou tentando imaginar o que aquelas pessoas faziam ali. Eles conversavam sobre coisas aleatórias e arranjavam as Luiz XV em círculo, ali mesmo perto da entrada, e com uma das poltronas no meio. Seria um grupo de apoio a empresários?

À medida que as pessoas iam chegando, Mel ficou com um pouco de frio e estendeu a mão para um dos lados da porta, o que não foi sua surpresa quando tateou um cabideiro que carregava um robe atoalhado. Vestiu-se com o robe e continuou olhando pela fechadura da porta, curiosíssima.

Aos poucos, as pessoas apareciam novamente no campo de visão de Melissa. Todos vestiam roupas iguais, umas capas estranhas e brilhantes como se fossem de seda, com capuz, todos estavam descalços e seus rostos eram encobertos por... máscaras. As máscaras venezianas eram douradas, de rosto inteiro, com temas de rostos demoníacos e Mel começou a pensar se eles estariam fazendo parte de algum tipo de culto para pedir sucesso publicitário ao diabo. E o diabo era o senhor Kernel, que geralmente vestia mesmo Prada.

Mas, logo, Melissa descobriu que não era nada disso. Todos estavam em profundo silêncio quando o elevador da esquerda fez seu barulho característico e, para a surpresa de Mel, entraram, primeiro, uma outra pessoa mascarada e, depois, Patrick, seu maldito ex.

- Bando de idiotas, para que me chamaram aqui? – reclamou Patrick. As pessoas abriram caminho e Patrick passou por entre elas. – Isso é algum tipo de intervenção? Não acredito nisso...!

Parecendo que sabia exatamente o que deveria fazer, Patrick seguiu até a cadeira Luiz XV que estava no meio do círculo de cadeiras e sentou, com o rosto completamente contrariado. Pela visão que Melissa tinha, ela via Patrick sentado de perfil. Ao redor de Patrick, todos formaram um círculo e ficaram de pé. Algum dos mascarados deu um passo à frente, parando bem em frente a Patrick. O mascarado falou e, pela voz e formato dos pés descalços, Melissa sabia que se tratava do senhor Kernel.

- Somos um grupo de pessoas livres, honestas e que desejam alcançar o autoconhecimento através da felicidade gerada pelo prazer. Acreditamos, sobretudo, na liberdade individual e em respeito mútuo. Acreditamos que, na jornada em busca do prazer sensorial humano, devemos respeitar esses valores. Sabemos que não é justificável, de modo algum, sobrepujar o livre arbítrio do próximo, especialmente no que tange a lesionar a integridade física e psicológica de outro ser humano. Portanto, devido a acontecimentos recentes envolvendo um membro do Círculo, nos reunimos aqui, em caráter de urgência.  Inicia-se, então, a reunião de hoje do Círculo Dourado.

- Patrick Smith, você tem algo que deseja voluntariamente declarar? – disse uma voz masculina que Melissa não conseguiu identificar direito.

- Eu tenho – ele respondeu e todos sentaram-se à sua volta. Após isso, como se fosse ensaiado, ele levantou da cadeira e continuou a falar. – Sabemos que o respeito é um de nossos maiores valores. O respeito é o princípio e a finalidade de tudo. Porém, não estamos falando apenas de respeito. Nosso valor não é apenas respeitar, mas sim respeitar e ser respeitado. Respeito mútuo. Eu presenciei dois membros do Círculo praticando sexo com minha namorada sem o meu consentimento. Eu perdi o controle e reagi. Não me orgulho disso, mas não fui eu quem iniciou o desequilíbrio do fluxo na ocasião.

Neste momento, Melissa ficou vermelha de fúria. Era revoltante ver Patrick falando meia dúzia de palavras bonitas e, na sequência, tentar se safar do crime de agressão que cometera. E, ainda por cima, culpar Kate e o senhor Kernel de terem causado sua “falta de equilíbrio do fluxo”. Que diabos era essa ideia de fluxo?

Patrick sentou-se. Novamente a voz irreconhecível perguntou se alguém tinha algo mais a acrescentar. Todos ficaram calados, como que se fosse combinado.

- Pois bem. Passemos a palavra a Adam Kernel – disse a pessoa misteriosa.

Kernel levantou-se e disse:

- A honestidade deve ser elevada, o momento aparenta ser adequado para tal. Eu e a senhorita Katherine Diaz estávamos com a senhorita Melissa Sanders na ocasião em que os fatos se desenrolaram, porém, Sanders não mais é a futura senhora Smith. O relacionamento entre Melissa Sanders e Patrick Smith terminou há aproximadamente seis meses, como é sabido por todos os membros do Círculo, presentes ou ausentes na noite de hoje. Fato este que, inclusive, se desenrolou devido à falta de honestidade de Patrick Smith para com Melissa Sanders.

- Como é que eu posso participar de um Círculo desses e contar para minha noiva o que estava rolando por aqui? – interrompeu Patrick, ferozmente. – Vir pra cá não é a mesma coisa que falar com minha namorada, casualmente, que “estou indo ali na padaria comprar pão”. Só um psicopata como o Adam consegue manter um casamento e participar do Círculo ao mesmo tempo.

A maneira com que Patrick alternava as palavras entre namorada e noiva irritava Melissa mais ainda. Ela sentiu que não significava mais nada para ele, no fim das contas. Se é que algum dia o relacionamento deles tivera significado para Patrick...

- Por favor, sem ofensas – disse outra voz misteriosa.

O senhor Kernel pigarreou e continuou falando:

- A maneira que lido com minha vida pessoal não é o assunto de hoje. De toda forma, tenho Kate como testemunha e, no grupo, já foi conversado nessa tarde tudo o que deveria ser conversado.

Melissa ficou tensa. Por baixo da voz macia do senhor Kernel, ela sentiu aquele tom de voz escondido que ele sempre usava com os funcionários da Kernel Publicidade quando eles faziam algo errado. Era um tom de profunda decepção embutido em cada palavra, com um leve toque de irritação. De repente, toda a formalidade de falas em nomes e sobrenomes havia acabado.

- Você tentou estrangular a minha secretária, na minha casa, na minha frente. Não importa as circunstâncias, não importa quantos advogados você tem no seu escritório de merda, não importa quantas vezes você tenha a traído, nada justifica o que você fez com Melissa. Mesmo que eu tente entender o que se passa nessa sua cabeça, não há o que entender. É completamente irracional.

Melissa sentiu-se lisonjeada e identificou, de pronto, que o senhor Kernel parecia não estar prestando atenção no que ela estava falando mais cedo, mas na verdade ele estava completamente focado em cada palavra dela, pois praticamente repetira os mesmos termos que conversaram mais cedo.

- A participação de Patrick no Círculo será encerrada hoje – finalizou Kernel.

Após aquela cartada final, o silêncio se dissipou rapidamente e um burburinho incômodo se espalhou por entre os participantes do Círculo, todos foram falando meio que ao mesmo tempo, quando alguém bateu em um pequeno gongo que havia sobre uma das mesinhas do salão e os participantes silenciaram.

- Abertura para votação – disse um dos encapuzados, com pés femininos, que, pela voz, Melissa detectou claramente como sendo sua amiga Kate. – Aqueles que são contra a saída de Patrick do Círculo Dourado, levantem a mão.

Patrick levantou a própria mão e nenhum dos outros encapuzados o fez.

- Ah, por favor... – ralhou Patrick, irritado.

- Aqueles que são a favor da saída de Patrick do Círculo Dourado, levantem a mão – disse Kate.

Todos os outros membros do Círculo levantaram as mãos. E tudo o que aconteceu na sequência foi muito rápido, mas para Melissa pareceu acontecer em câmera lenta. Ao mesmo tempo, cada um dos encapuzados colocou a mão dentro da capa e sacou uma arma de fogo, apontando diretamente para o peito de Patrick, que levou a mão ao rosto, tentando proteger-se. Melissa levou as mãos à boca, mas não pôde conter o grito urgente que veio diretamente do seu coração para a garganta ao mesmo tempo que ela bateu na porta pelo lado de dentro exatamente no momento em que onze tiros descompassados foram disparados contra Patrick.

Uma lágrima correu pelo rosto de Melissa e ela fechou os olhos, não conseguiu continuar olhando lá fora através do buraco da fechadura, quando se surpreendeu ao ouvir:

- Caralho, seus filhos da puta! Vocês vão pagar por isso, bando de imbecis!

Era a voz de Patrick, gritando e reclamando. Sobressaltada e de joelhos, Melissa colou o corpo de volta na porta e olhou pelo buraco da fechadura. Ela sofreu uma grande onda de sentimentos confusos, contraditórios. Estava prestes a chorar a morte do ex, com um misto de medo de ser a próxima, descobrira seu chefe e a melhor amiga como assassinos à sangue frio e, segundos depois, viu a cara de idiota de Patrick, todo sujo de tinta seguindo em direção ao elevador. Melissa ficou aliviada, porém ainda estava chocada. A visão de Melissa era limitada por causa do buraco da fechadura, mas olhando novamente, em uma segunda observação, algumas armas dos mascarados possuíam pontas laranja e outras tinham cartuchos com bolinhas em cima do cano. Patrick havia sido atingido por balas de airsoft e de paintball.

- Essa porra dói – reclamou Patrick para si mesmo, esperando o elevador chegar.

- Patrick Smith, você está morto para o Círculo Dourado – disse uma mulher com a voz misteriosa, que caminhou até o elevador para sentenciar Patrick.

- A Vox vai pagar caro por isso – disse Patrick, voltando-se para Hannah, dona da voz feminina misteriosa e da Vox Arquitetura. Tomou a arma de paintball das mãos da arquiteta, jogando-a no chão com muita força, destruindo completamente o equipamento. Parte das bolinhas com tinta vermelha se espatifaram no chão.

Completamente desmoralizado, Patrick entrou no elevador da esquerda e foi embora. Kernel se aproximou de Hannah e perguntou se estava tudo bem com ela. Melissa não quis mais olhar lá fora. Estava muito confusa e aquela coisa de Círculo Dourado não parecia nada saudável. Que diabos estava acontecendo?

Kernel se despediu dos outros membros do Círculo e, em menos de cinco minutos, destrancou e abriu a “jaula” de Melissa. Ela estava em frente à porta, de pé, os braços cruzados. Seu rosto era de completa decepção. Seus olhos azuis estavam marejados.

- Melissa, eu sinto muito que você tenha sido obrigada a... – ele começou a dizer, mas ela apenas lhe deu um belo tapa na cara, com toda a força que tinha.

Melissa seguiu pelo salão, meio que a esmo, procurando suas roupas. O roupão atoalhado que ela encontrara tateando no escuro se revelou como sendo do mais forte vermelho, assim como estava o tom em formato de sua mão marcada na bochecha de seu chefe. Enquanto isso, Kernel não pareceu precisar controlar-se e não demonstrou qualquer sinal de ira ou ódio frente ao tapa na cara que, além de dolorido, é um ato completamente desmoralizante.

- Onde estão minhas roupas? – Melissa reclamou, passando em cada armário do salão, jogando tudo no chão e deixando-o aberto antes de ir para o próximo armário.

- Estão na primeira gaveta no móvel ao pé da cama redonda – disse Kernel, nem pensando que era impossível uma cama redonda ter um pé.

Melissa pegou suas roupas no móvel que estava entre a cama e a lareira e dirigiu-se ao elevador da esquerda, jurando que nunca mais voltaria naquele lugar cheio de gente maluca.

*~~~~~~~~~~*

Alguns dias se passaram. Melissa e o senhor Kernel mal trocaram palavras no escritório, nem bom dia, somente o fundamental para dar andamento ao serviço da agência. O celular de Melissa não parava de tocar, ela teve que colocar o aparelho no modo silencioso para que Patrick parasse de importuná-la ligando a cada meia hora. Fora bloqueado em todos os aplicativos de mensagem, então Patrick enviara várias SMSs pedindo perdão, dizendo o quão arrependido ele estava e que queria conversar, etecetera. Melissa simplesmente ignorou.

Finalmente, chegara o dia e horário da terapia de Melissa. Ela contou à terapeuta tudo o que aconteceu: sobre o Círculo Dourado, sobre as pessoas que lá estavam, sobre os tiros e sobre seus sentimentos no meio de tudo aquilo.

- Eu ainda estou me sentindo perdida, porque não sei mais em quem acreditar, em quem confiar... – confessava Melissa. – Eu fiquei com muito medo do Patrick morrer... muito medo. Fiquei muito assustada, apavorada.

- Você estava em uma situação extrema – disse a psicóloga. – É compreensível, até. Digo, é compreensível você se sentir confusa.

- Isso tudo que aconteceu e o fato de Patrick ficar me ligando e mandando mensagem toda hora está me fazendo repensar se, talvez, eu tenha sido muito dura com ele por ter sido traída. Apesar de ter mais ódio ainda pensar que ele não me traiu uma vez só, ou mais de uma vez com uma mulher só. Ele tinha um relacionamento longo com um círculo de várias pessoas. Me sinto perdida...

“É como se a verdade fosse um buraco profundo. Você sabe que não se deve entrar em um buraco, mas ainda assim você entra, pois acredita na ideia de que tudo vai se resolver quando você encontrar a verdade que existe lá no fundo. Mas a verdade não é uma luz no fim do túnel. É um prêmio imaginário dentro de um buraco. E, diferente do túnel, um buraco não tem saída do outro lado. Mas, quanto mais fundo você vai, quanto mais escuro fica, quanto mais você descobre coisas no meio do barro ali no fundo, mais você quer descer e chegar no prêmio da verdade no último nível do buraco.

“Quer dizer, primeiro descobri que fui traída. Depois descobri que ele me traiu mais de uma vez. E, agora, entrando mais fundo nesse buraco, descendo mais um nível, descobri que na verdade ele me traía com um grupo de pessoas. Eu achava que nada de pior poderia acontecer nessa nossa história, mas a cada dia que passa eu descubro uma coisa nova... algo novo que Patrick fez de ruim para mim... e... eu sei que eu não deveria me enfurnar ainda mais nesse buraco, mas... às vezes... me sinto instigada a querer descobrir mais... a querer descobrir a tal da verdade que está lá no fundo, no último nível...

Continua...

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